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Tratado da Oração (Peri Euches OPE)

Orígenes — Peri Euches, Tratado da Oração, Tratado da Prece (OPE)

Preâmbulo

Há coisas de máximo valor, tão elevadas acima do homem, que tanto superam a nossa natureza mortal, que não podem ser compreendidas por nossa precária razão. O desígnio de Deus, porém, nos torna possíveis esses bens, pela múltipla e imensa graça divina, derramada nos homens por Deus, por meio de Jesus Cristo, mediador dessa graça infinita em nosso favor, com a cooperação do Espírito. Como, pois, é impossível à natureza humana adquirir a sabedoria pela qual tudo foi criado (“tudo, com efeito, segundo Davi, Deus fez em sabedoria”- Sl 103,24), o impossível se torna possível por nosso Senhor Jesus Cristo, “o qual foi feito por Deus sabedoria para nós, e justiça e santidade e redenção”(l Cor 1,30).

“Qual dos homens, em verdade, conhecerá o conselho de Deus? Ou quem pensará o que quer o Senhor? Pois são tímidos os pensamentos dos mortais e vacilantes as suas reflexões! E que o corpo corruptível pesa sobre a alma, e a tenda de terra sobrecarrega a mente que revolve muitas ideias. E se imaginamos dificilmente as coisas da terra, quem poderá investigar as do céu?” (Sb 9, 13-16).

Quem, pois, não diria ser impossível ao homem investigar as coisas do céu?

Esse impossível, contudo, torna-se possível pela imensa graça de Deus.

Aquele, com efeito, que foi raptado ao terceiro céu, talvez investigou o que há nos três céus, pois escutou “palavras inefáveis que não é lícito ao homem falar”(2 Cor 12,4). Quem, pois, pode dizer que ao homem é possível conhecer o pensamento do Senhor? Mas também isto Deus concede por Cristo.

E, sim, vontade do seu Senhor, não no sentido de ensinar sua vontade qual Senhor, mas qual amigo daqueles de quem era Senhor.

De fato, “ninguém entre os homens conhece as coisas do homem, senão o espírito do homem que nele está, assim ninguém conhece as coisas de Deus, senão o Espírito de Deus” (1 Cor 2,11).

Mas, se ninguém conhece as coisas de Deus, senão o Espírito de Deus, é impossível aos homens conhecer as coisas de Deus. Como, pois, se torna isto possível? Presta atenção: “Nós não recebemos o espírito do mundo, mas o Espírito que vem de Deus, a fim de conhecermos as coisas que Deus nos concedeu por graça. Tais coisas, nós não as ensinamos com palavras da sabedoria humana, mas com a doutrina ensinada pelo Espírito” (1 Cor 2,12-13).

II Apresentação aos destinatários

1 É razoável a ti, Ambrósio, varão temente a Deus e trabalhador infatigável, e a ti também, Tatiana, adornada de virtudes e de coragem, (e com a qual me regozijo de já ter sido liberta, como outrora Sara, de certos incômodos femininos), é razoável, repito, que vos pergunteis a vós mesmos por que eu, pretendendo tratar da Oração, comecei falando de coisas impossíveis aos homens, mas possíveis pela graça de Deus.

Uma das coisas impossíveis, segundo me parece, tendo em vista a nossa fraqueza, é precisamente falar, de modo claro, justo e digno da oração, como convém orar, o que dizer a Deus na oração, e quais os tempos favoráveis à oração (…) Aquele que, por causa da magnitude das suas revelações, temia que alguém o julgasse superior ao que via e escutava (a respeito dele), confessava não saber orar como convém (cf. 2 Cor 12, 6-7), dizendo: “Não sabemos o que orar como convém” (Rm 8,26).

Necessário é, pois, não só orar, mas também orar como convém, e pedir o que convém. Na verdade, embora possamos compreender o que convém orar, isto seria insuficiente se não ajuntássemos como convém pedir. Mas de que serviria saber como convém, se não soubéssemos pedir aquilo que convém?

2 Uma destas duas exigências, isto é, o que pedir, são as próprias palavras da oração.

Quanto à outra, isto é, como convém orar, é a condição do próprio orante. Eis, por exemplo, o que convém pedir: “pedi coisas grandes, e as pequenas vos serão acrescentadas”2 “Pedi as coisas celestes e as terrenas vos serão acrescentadas” (cf. Mt 6,33); e ainda, “orai pelos que vos caluniam” (Mt 5,44); e também: “pedi ao Senhor da messe que mande operários para a sua messe” (Mt 9,38); e de novo: “orai para não cairdes em tentação” (Lc 22,40); ou esta: “orai para que a vossa ruga não aconteça no inverno ou num sábado” (Mt 24,20); e ainda: “orando, não multipliqueis as palavras” (Mt 6,7), e outras coisas parecidas.

Sobre o modo de orar, ouçamos o Apóstolo: “Quero que os homens orem em todo lugar, elevando as mãos puras, sem ira nem discussão. Igualmente, as mulheres, que elas tenham roupas decentes, se enfeitem com pudor e modéstia, sem trancas nem objetos de ouro, pérolas ou vestuário suntuoso, mas que se ornem, antes, com boas obras, como convém a mulheres que se professam piedosas” (1 Tm 2, 8-10). Orar do modo que convém, nos é ensinado também por esta palavra: “Portanto, se estiveres para trazer a tua oferta ao altar, e ali te lembrares que o teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa a tua oferta diante do altar, e vai primeiro reconciliar-te com teu irmão, e depois virás apresentar a tua oferta” (Mt 5,23).

Qual, com efeito, é o dom da criatura racional que pode ser mais agradável a Deus, do que a palavra suave da oração, que parta duma consciência isenta da pestilência do pecado? Ao modo de orar aplica-se também esta palavra: “Não vos recuseis um ao outro, a não ser de comum acordo e por algum tempo, para que vos entregueis à oração; depois disso, voltai a unir-vos, a fim de que Satanás não vos tente por causa da vossa incontinência” (1 Cor 7,5).

Tais coisas impedem o modo conveniente de orar, a não ser que o ato próprio do mistério conjugal (do qual convém precipuamente calar) se faça com decoro, mais rara e desapaixonadamente.

O consenso, de que aí se fala, faz desvanecer a perturbação das paixões, suprime a incontinência e impede a insolência de Satanás.

Além disto, também nos ensina como devemos orar, a seguinte palavra: “Quando vos levantais para orar, perdoai, se tendes alguma coisa contra alguém”(Mc 11,25). Acrescentemos ainda o que diz Paulo: “Todo homem orando ou profetizando com a cabeça coberta, desonra a sua cabeça” (1 Cor 11, 4-5). Isto se refere ao modo conveniente de orar.

3 Mas Paulo sabia tudo isso. Teria podido atingir muitas coisas mais da Lei, dos Profetas e da plenitude do Evangelho, e expor de modo variado e abundante cada uma delas. Entretanto, não só com modéstia, mas com verdade, vendo, depois de tudo isso, quanto está longe de saber o que orar e como orar, ele afirma: “Não sabemos o que orar, como convém” (Rm 8,26).

A esta palavra, ele ajunta como tal defeito pode ser suprido por aquele que, embora não sabendo, se esforça por ser digno de ver suprida a sua inépcia. Diz, com efeito, que “o próprio Espírito suplica por nós a Deus com gemidos inefáveis. Aquele que perscruta os corações, conhece o pensamento do Espírito, que suplica a Deus pelos santos” (Rm 8, 26-28). O Espírito que grita nos corações dos bem-aventurados, “Abba, Pai”, e sabe que, sem dúvida, os gemidos emitidos pelos pecadores e transgressores nesta nossa tenda servem-lhes mais de gravame do que de alívio, roga junto de Deus com gemidos inefáveis, acolhendo em sua bondade e misericórdia os nossos gemidos.

Vendo em sua sabedoria, “humilhada na terra a nossa alma”, que se acha “contida num corpo humilhado” (cf. Sl 43,26), ele roga junto de Deus com gemidos, não quaisquer, mas inefáveis, afins “daquelas palavras arcanas que não é lícito ao homem proferir” (2 Cor 12,4).

Não contente de rogar, aquele Espírito usa uma oração mais intensa por aqueles que, simplesmente, segundo minha opinião, triunfam, como era Paulo, ao dizer: “Mas em todas estas circunstâncias triunfamos” (Rm 8,37).

Mas é provável que ele rogue apenas pelos incapazes de “triunfar”, por aqueles que não se deixam vencer, mas simplesmente vencem.

4 Esta palavra: “Não sabemos o que orar como convém, mas o próprio Espírito suplica por nós a Deus com gemidos inefáveis”(Rm 8,26), é afim daquela outra: “Orarei em espírito, orarei também na mente; salmodiarei em espírito , salmodiarei também na mente” (1 Cor 14,15).

Não pode, com efeito, a nossa mente orar, a não ser que antes, fique à escuta do Espírito a orar. Como não pode ela cantar nem louvar com melodia, medida e harmonia o Pai em Cristo, a não ser que o Espírito, que tudo perscruta, inclusive as profundezas de Deus (cf. 1 Cor 2, 10), comece a louvar e cantar Aquele, do qual perscrutou as profundezas, e como podia, as compreendeu.

A meu ver, foi pela consciência da insuficiência e fraqueza humanas para captar e conhecer o modo conveniente de orar, e sobretudo, pelas palavras sábias e sublimes que o Salvador pronunciara em sua oração ao Pai, que um dos discípulos de Jesus disse, depois que o Senhor cessou de orar: “Senhor, ensina-nos a orar, como também João ensinou aos seus discípulos” (Lc 11,1).

Este dito consta do seguinte contexto: “Aconteceu que, estando Jesus a orar em certo lugar, ao terminar, um dos seus discípulos lhe disse: Senhor, ensina-nos a orar, como também João ensinou aos seus discípulos”.

É, acaso, possível que um homem nutrido pelo ensino da Lei, pela audição das palavras dos profetas, assíduo em frequentar a sinagoga, não soubesse orar antes de ter visto o Senhor orar à em determinado lugar? É absurdo dizer isto. Na verdade, ele orava conforme o costume judaico, mas percebeu que precisava de maior conhecimento a respeito da oração.

Que é, pois, que João ensinava sobre a oração aos seus discípulos vindos de Jerusalém e de toda a Judeia e das vizinhanças, para serem batizados por ele?

Acreditaríamos, talvez, que, sendo ele mais do que um profeta, teria visto em matéria de oração algumas coisas que não ensinava a qualquer um que viesse para ser batizado, mas apenas, em segredo, aos que se tornavam seus discípulos, antes mesmo de serem batizados.

5 Tais orações, em realidade espirituais, pois o Espírito ora no coração dos santos, são descritas como repletas de doutrinas secretas e maravilhosas.

Com efeito, no Primeiro Livro dos Reis, assim é, ao menos em parte, a oração de Ana. Ela não precisou de fórmula, “quando multiplicava preces em presença do Senhor, falando-lhe no seu coração” (cf. 1 Sm 1,11-13).

Entre os Salmos, o décimo sexto tem por título: “Oração de Davi”, e o 89 é uma “oração de Moisés”, servo de Deus. O Sl 101 é a “oração de um pobre, quando estava aflito e derramou a sua oração diante do Senhor”. Estas orações, sendo realmente preces feitas e pronunciadas no Espírito, são cheias de ensinamentos da Sabedoria divina, de modo que se pode dizer das coisas que nelas se anunciam: “Quem é sábio e entende estas coisas? Quem é inteligente, e as conhecerá?” (Os 14,10).

Assim, sendo tão difícil falar da oração que exige a iluminação do Pai, o ensinamento do Verbo Primogênito e a cooperação do Espírito Santo, para se entender e para se tratar dignamente desse assunto, pedirei como homem (pois não pretendo compreender a oração do Espírito, antes de ter sido esclarecido sobre a natureza da oração), que me seja concedida uma palavra plena e espiritual, e assim possa explicar as orações comuns do Evangelho. Importa, pois agora, começar o discurso sobre a oração.

III Os nomes da oração

1 O nome “oração” (euchê), segundo o que pude observar, se encontra pela primeira vez, quando Jacó, fugindo da cólera de seu irmão Esaú, partiu para a Mesopotâmia a conselho de Isaac e de Rebeca.

Assim reza esta passagem: “E Jacó fez um voto (euchê), dizendo: Se o Senhor Deus estiver comigo e me guardar nesta viagem que empreendo, se me der pão para comer e roupa para vestir, e se eu voltar são e salvo à casa de meu pai, o Senhor será o meu Deus e esta pedra, que levantei como coluna em lembrança, será para mim Casa de Deus; e de tudo que me deres te oferecerei a décima parte” (Gn 28,20-22). (…)

2 Aí se faz necessário notar que a palavra “oração” (euchê) é muitas vezes usada em sentido diverso da palavra “voto” (proseuchê); a primeira se refere a alguém que promete com voto tais ou tais coisas, se conseguir de Deus tais ou tais bens. Usa-se, no entanto, aquele vocábulo também no sentido ordinário de “oração”. É o que podemos ver, por exemplo, no livro do Êxodo, depois da praga das rãs, que é a segunda das dez pragas (…). “O Faraó chamou Moisés e Aarão e lhes disse: Orai (eúcsasthe) ao Senhor, por mim, para que me liberte a mim e ao meu povo das rãs, e eu enviarei teu povo a fim de que sacrifique ao Senhor” (Ex 8,4).

Se alguém, diante da palavra “orai” usada pelo Faraó, tiver dificuldade em admitir que ela tenha, além do sentido habitual de “voto”, o significado de “orar”, deve ler o que se segue: “Moisés disse ao Faraó: Ordena-me quando devo orar (eúcsomai) por ti e por teus servos e por teu povo, a fim de remover as rãs de ti e do teu povo, e elas se conservem somente no rio” (Ex 8,5).

3 Nós porém, observamos que a respeito dos mosquitos, na terceira praga, nem o Faraó pede que se faça oração, nem Moisés ora.

Quanto às moscas, na quarta praga, diz Faraó: “Orai por mim” (Ex 8,24 e seguintes). Então lhe diz Moisés: “Logo que eu tiver saído da tua presença, orarei ao Senhor, e as moscas se afastarão do Faraó e dos seus servos e do seu povo”. E pouco adiante: “Saiu Moisés da presença do Faraó e orou a Deus” (Ex 8,26).

De novo, porém, na quinta e na sexta praga, nem o Faraó pediu que orasse, nem Moisés orou.

Por ocasião da sétima praga, o Faraó mandou chamar Moisés e Aarão e disse-lhes: “Desta vez eu pequei. O Senhor é justo; eu e o meu povo, porém, somos ímpios. Rogai ao Senhor, pois já bastam esses grandes trovões e essa chuva de pedras e relâmpagos” (Ex 9,27-28).

E um pouco adiante, diz-se: “Afastou-se Moisés do Faraó e da cidade, e levantou as mãos para o Senhor e cessaram os trovões”. Por que não se diz que ele orou, como nos casos precedentes, mas, sim, estendeu as mãos para o Senhor? Tratarei disso em outro lugar mais oportuno.

Quando houve a oitava praga, disse o Faraó: “E orai ao Senhor vosso Deus para que me livre desta morte. E partindo Moisés da presença do Faraó, orou ao Senhor” (Ex 10, 17-18).

4 Dissemos muitas vezes que o termo “oração” (euchê) não é sempre usado em seu sentido habitual, como vimos por Jacó. Também no Levítico se diz: “Disse o Senhor a Moisés: Fala aos filhos de Israel e dize-lhes: Se alguém quiser cumprir um voto ao Senhor, relativo ao valor da sua pessoa, se for um homem entre vinte e sessenta anos, dará cinquenta siclos de prata, conforme a medida do santuário” (Lv 27, 1-3). E no livro dos Números: “O Senhor falou a Moisés, dizendo-lhe: Fala aos filhos de Israel, dizendo-lhes: Quando um homem ou uma mulher fazem solenemente o voto (eúcsetai euchên) de santificar-se e consagrar-se ao Senhor, se absterão do vinho e de toda bebida inebriante” (Nm 6,1-3), e tudo mais que se refere ao nazireato.

Um pouco depois: “E santificará a sua cabeça naquele dia em que se consagrar ao Senhor, dia do seu voto (euchês)” (Nm 6,11).

E mais adiante: “Esta é a lei daquele que fez voto (tou eucsaménou): No dia em que completar os dias do seu voto (euchês)” (Nm 6,13)…

E pouco depois: “Feito isto, o consagrado poderá beber vinho. Esta é a lei do nazireu que votou (tou eucsaménou) a sua oferta a Deus, em condições superiores à sua possibilidade, pagará o voto (euchê) que fez segundo a lei da santidade” (Nm 6,20-21).

No fim do livro dos Números: “Moisés falou aos chefes das tribos de Israel: Esta é a palavra que o Senhor ordenou: quem quer que faça um voto ao Senhor, ou se comprometa por juramento numa promessa formal, não violará a sua palavra, e executará tudo que sair da sua boca. Se uma mulher fizer voto ao Senhor ou assumiu um compromisso na casa do seu pai, sendo ainda jovem, e seu pai toma conhecimento do seu voto e não diz nada, então são válidos os seus votos e o compromisso que assumiu” (Nm 30, 2-5). Em seguida, a Lei contém mais prescrições sobre o assunto.

A mesma prescrição se encontra nos Provérbios: “É um laço para o homem, dizer à ligeira: É Santo! e só refletir depois de o fazer” (Pr 20,25).

E no livro do Eclesiastes: “É melhor não fazer um voto, do que depois não o cumprir” (Ecl 5,4). E nos Atos dos Apóstolos: “Tínhamos quatro homens que haviam feito um voto” (At 21,23).

IV Conclusão da terminologia da oração

1 Não me pareceu portanto irracional, distinguir, primeiro, os dois sentidos da palavra “oração” 1)) na Escritura (isto é, oração-voto).

Ocorre o mesmo com a palavra oração-invocação (proseuchê). Esta, além do sentido comum e ordinário, assumiu o sentido raro de “voto”, na narração sobre Ana, no primeiro livro de Samuel: “O sacerdote Eli estava sentado em seu banco diante da porta do santuário do Senhor. Ana, com o coração cheio de amargura, orou (proseúcsato) ao Senhor, chorando com gemidos, e fez um voto (eúcsato euchên), dizendo: Senhor dos Exércitos, se te dignares de olhar a aflição da tua serva, se te lembrares de mim e não esqueceres tua serva, se deres à tua serva um filho varão, eu o entregarei ao Senhor por todos os dias da sua vida, e a navalha não passará em sua cabeça” (1 Sm 1,9-11).3

2 Aqui poderia alguém, não sem razão, comparando as expressões “orou ao Senhor” e “fez um voto”, dizer que Ana fez duas coisas, isto é, invocar o Senhor e fazer um voto. A palavra “orar” ou “invocar” (proseúcsato) seria usada no sentido habitual de oração. Quanto à segunda teria aqui o mesmo sentido que no Levítico e nos Números. A frase “Eu o entregarei ao Senhor por todos os dias da sua vida, e a navalha não passará em sua cabeça”, não é propriamente oração (proseuchê), mas aquela espécie de prece 2)) que fez Jefté, quando disse: “Jefté fez um voto (euchên) ao Senhor, dizendo: Se entregares em minhas mãos os filhos de Amon, quem quer que, primeiro, sair da porta da minha casa ao meu encontro, ao voltar eu vencedor dos filhos de Amon, pertencerá ao Senhor, e eu o oferecerei em holocausto” (Jz 11, 30-31).

V — Objeções contra a oração

1 Depois disso, se, como quereis, devem ser expostos, em primeiro lugar os argumentos daqueles que acham que nada se obtém com a oração e, por conseguinte, afirmam a sua super-fluidade, não nos recusamos a estudar esta dificuldade, na medida das nossas forças, empregando o termo oração na acepção mais comum e mais simples. (…)

Tal opinião é tão indigna e desprovida de defensores ilustres, que dificilmente se encontrará entre os que admitem a Providência e sabem ser Deus o Senhor de todas as coisas, alguém que não aceite a oração.

Esta é a opinião dos que são inteiramente ateus e negam a existência de Deus, como também daqueles que admitem a Deus, de nome, mas rejeitam a Providência. É, porém, o poder inimigo (cf. 2 Ts 2, 4.9) que, desejando opor as doutrinas mais ímpias ao nome de Cristo e ao ensinamento do Filho de Deus, pôde persuadir a alguns que não é preciso orar. São desta opinião os que negam totalmente as coisas sensíveis e não fazem uso nem do Batismo nem da Eucaristia, distorcem com seus sofismas as Escrituras, como se elas não quisessem a oração, mas ensinassem coisa muito diversa.

2 Estas poderiam ser as razões dos que combatem a oração, embora afirmem um Deus que governa o universo e aceitem a Providência. Não pretendo agora examinar o que dizem aqueles que rejeitam totalmente a Deus e a Providência. É assim que propõem seu pensamento: Deus conhece todas as coisas antes que comecem a existir e nada de quanto existe lhe é conhecido só quando se realiza, pois já antes disso lhe era conhecido. Que necessidade, pois, de dirigir uma oração Àquele que, antes que o façamos, já conhece aquilo de que precisamos? “O Pai celeste já conhece aquilo de que precisamos, antes que a ele pecamos” (Mt 6,8). E isto parece justo, porque o Pai e Criador do universo “ama todos os seres e não sente desgosto por nenhuma das coisas que criou” (cf. Sb 11,24).

De um modo salutar, Deus dispensa a cada um o que lhe é necessário, sem que seja preciso de o pedir. É como um pai que vela por seus filhos, sem esperar que eles lho peçam, ou porque são muito pequenos para pedir, ou porque desejam por ignorância ter justamente o contrário do que lhes é proveitoso e benéfico. E nós humanos somos bem mais distantes de Deus que a idade infantil é do coração dos seus pais,

3 É natural que Deus não só conheça o futuro, mas que também o predisponha, para que nada aconteça sem que seja por ele previsto.

Assim, se alguém rezasse para que o sol se levante, seria considerado um tolo, ao pensar que acontece por sua oração £ aquilo que se dá sem ela.

Igualmente, insensato seria o homem que pensasse advir-lhe pela prece tudo que lhe viria, mesmo sem ela. Mas ultrapassa todo limite da loucura aquele que sofre pelas queimaduras do sol de verão em regiões quentes e pensa que por sua oração pode mudar a temperatura do sol como se estivesse na primavera.

Do mesmo modo, superaria todo grau de loucura aquele que pensasse por sua oração escapar às condições inevitáveis que são impostas ao gênero humano.

4 Se “os pecadores se transviaram desde o seio materno” (Sl 57,4), e se “o justo é escolhido desde o seio materno” (Gl 1, 15) e “antes de nascer e de cometer qualquer coisa de bem ou de mal, de modo que o desígnio de Deus se manifesta por pura eleição e não pelas obras, porque o maior servirá ao menor” (cf. Rm 9,11) — é supérfluo orarmos pela remissão dos pecados, ou para recebermos o Espírito de fortaleza, a fim de que tudo possamos, ajudados pela força de Cristo (cf. Fl 4,13).

Se, pois, somos pecadores, somos transviados já desde as entranhas maternas; se somos predestinados desde o seio de nossa mãe, obteremos a parte melhor, mesmo sem a ter pedido. Que orações tinha feito Jacó, do qual foi predito, antes que nascesse, que dominaria a Esaú e que este haveria de servi-lo? Que falta havia cometido Esaú para ser odiado antes de nascer? E por que ora Moisés, como faz no Salmo 89, se Deus é um refúgio desde antes que se formassem as montanhas e que existissem a terra e o mundo? (cf. Sl 89, 1-2). (…)

5 De todos os que devem ser salvos está escrito na Carta aos Efésios que “o Pai os elegeu nele, isto é, em Cristo, antes da criação do mundo, para que fossem santos e imaculados em sua presença, na caridade. Predestinou-os em vista da adoção como filhos por Jesus Cristo” (Ef 1, 3-5). Em consequência, portanto, nenhum dos eleitos antes da criação do mundo, pode perder tal eleição, e assim, não precisa de orar.

Se, ao contrário, não foi eleito nem predestinado, ora inutilmente, e a sua oração, mesmo se for repetida mil vezes, não será ouvida. “Pois os que ele de antemão conheceu, os predestinou a serem conformes à imagem do seu Filho. Aqueles que predestinou, ele os chamou; aqueles que chamou, ele os justificou; aqueles que justificou, ele os glorificou” (Rm 8, 29-30).

Por que, afinal, Josias estava ansioso por saber o que pedir e se a sua oração seria ouvida ou não, se o profeta vaticinara seu nome, muitas gerações antes, e tudo quanto haveria de fazer fora não só conhecido de antemão, mas até mesmo anunciado diante de muitos ouvintes?

Por que também rezaria Judas, de tal modo que até a sua oração se tornaria pecado, se desde os tempos de Davi fora predito que o seu episcopado lhe seria tirado e um outro o sucederia em seu lugar? (cf. Sl 108, 7-8).

Por isto, considerando que Deus é imutável, prevê todas as coisas e permanece fiel aos seus decretos, não convém orar a Deus, opinando que a oração mudará o plano de Deus, como se ele não tivesse determinado tudo e ficasse a esperar a oração de cada um para ajeitar as coisas segundo as conveniências de quem ora, e só então ordenasse o que é reto, em vez de o prever.

6 A respeito do que precede, vou colocar aqui, usando as tuas próprias palavras, o que me escreveste em tua carta: Primeiro: se Deus conhece de antemão o futuro, tal como deve acontecer, vã é a oração.

Segundo: se tudo se faz segundo a vontade de Deus, são firmes os seus decretos, e nada do que ele quer pode ser mudado, vã é a oração.

Necessário é, pois, a meu ver, ter presentes estes pontos, para responder às objeções que se movem contra a oração.

VI O fatalismo e o livre arbítrio

1 Tudo o que se move é movido por impulso proveniente de fora. Exemplo disto são as coisas inanimadas que apenas mantêm a unidade por coesão interna. Mesmo em relação aos naturalmente animados, o movimento não procede deles mesmos como tais e, sim, à maneira daqueles que se mantêm por coesão interna.

Assim são as pedras extraídas da mina ou as árvores arrancadas. Só se mantêm por sua coesão. São movidas de fora. Mas os próprios corpos dos animais e as plantas que podem ser transplantadas, quando são mudados de lugar por intervenção de um outro, não se movem enquanto plantas e animais, mas sim como pedras ou árvores cortadas. Ainda quando se movem, já que todos os corpos são instáveis e fluentes, eles se corrompem e, em consequência, têm o movimento da corruptibilidade.

Em segundo lugar estão os seres que se movem em virtude da sua própria natureza ou alma. Destes diz-se que se movem por si mesmos, segundo os que se exprimem com esmero. A terceira espécie de movimento é a dos animais. Denomina-se movimento por si mesmo.

Quanto ao movimento dos seres racionais, penso que se movem por si mesmos, por sua própria iniciativa. O animal, sem o movimento que procede de si mesmo, nem poderá mais chamar-se animal, pois será semelhante a uma planta que tem apenas movimento natural, ou a uma pedra que é lançada por um agente externo.

Mas se algo é dotado de movimento próprio, que dizemos ser proveniente de si mesmo, este ser é necessariamente racional.

2 Por isso, os que afirmam que não temos livre decisão, professam necessariamente o maior contra-senso. Primeiro, porque não seríamos seres vivos; segundo, porque nem seríamos racionais, e sim, semelhantes aos seres movidos de fora, e não nos moveríamos a nós mesmos, de modo tal que conviria dizer que esse agente exterior faz as coisas que pensamos fazer por nós mesmos.

Ao contrário, preste cada um atenção às suas próprias sensações, e veja se pode negar descaradamente ser ele mesmo quem quer, come, anda, dá e aceita certas opiniões ou rejeita outras como falsas.

Existem, de fato, certas opiniões que ninguém poderá ser obrigado a abraçar, embora apresentadas com razões engenhosas e argumentos persuasivos.

Assim, é impossível fazer alguém crer, quanto aos atos humanos, que nenhum deles esteja em nosso poder. Quem, com efeito, crera que nada pode ser compreendido? Ou quem pode viver, duvidando de todas as coisas, quaisquer que sejam elas?

Quem não pune o seu servo, quando perceber mentalmente que ele fez algo de mau? Quem não reprova o seu filho, por não prestar respeito a seus pais? Quem não lamenta e não condena, por sua vida ignominiosa, uma mulher adúltera? A verdade, com efeito, nos impele, por sua própria força, apesar de mil contradições, a agir, a louvar ou censurar, pressuposto que tudo isso está em nosso livre arbítrio, e mereça realmente o louvor ou a condenação.

3 Se, pois, se ressalva o livre arbítrio, todas as tendências para a virtude ou o vício, para o dever ou o descuidar-se dele, devem com todo o resto, ter sido conhecidas por Deus, tais quais haveriam de ser, antes da criação e da constituição do mundo. E em tudo isso que Deus preordenou, levando em conta o que ele previu dos atos da nossa liberdade, ele dispôs, segundo exige cada ato do nosso livre arbítrio, o que acontecerá em virtude da sua Providência e o que acontecerá por força do encadeamento natural das coisas futuras. Isto não significa, porém, que a previsão de Deus seja causa de todas as coisas que serão, inclusive daquelas que haveremos de fazer pela ação da nossa liberdade.

Se, por hipótese, Deus não conhecesse as coisas futuras, nem por isso nós deixaríamos de fazer ou de querer estas mesmas coisas. Mas da presciência divina resulta que toda coisa submetida ao nosso livre arbítrio é disposta em utilíssima harmonia com o governo do universo e a ordenação do mundo.

4 Por conseguinte, se Deus conhece antecipadamente toda coisa que está em nosso livre arbítrio, é lógico que tudo quanto ele prevê seja disposto pela Providência, conforme o merecimento de cada um.

Assim, Deus levará em conta o objeto da oração do fiel, as suas disposições, e o que deseja que se lhe faça. Tudo previsto, cada coisa será compreendida de modo conveniente no plano universal da Providência.

Eu ouvirei — dirá Deus — o homem que orou com prudência, por causa mesmo da sua prece. A outro eu não escutarei, porque ele é indigno ou porque ele pede coisa tal que não lhe será útil receber e não me convém conceder. Assim, por exemplo, pode acontecer que não escutarei determinada oração, ao passo que a outra, eu escutarei. Se alguém se deixa perturbar, pensando que a infalível presciência de Deus introduziria uma fatalidade necessária nas coisas previstas, eu responderia que Deus conhece necessariamente isto, isto é, sabe que tal homem não quer necessariamente nem com firmeza o que é melhor ou que desejará de tal modo o pior, que será incapaz de mudar-se para melhor.

Em vez disso — poderia o Senhor dizer: Farei alguma coisa por esse homem que ora. Isto me convém, porque ele irá pedir de modo não indigno, e não se entregará à oração de forma negligente. A este, logo que orar, eu lhe concederei “em medida muito superior ao que pede e pensa” (Ef 3,20). Pois a mim convém vencê-lo em generosidade e conceder-lhe mais do que é capaz de pedir.

A quem vier a ser assim, enviarei um anjo que o ajude e desde então começará a cooperar para sua salvação e o acompanhará até este ponto.

A tal outro, por exemplo, enviarei um anjo mais poderoso, porque será melhor do que o primeiro. Em compensação, porém, ao homem que depois de se dedicar a uma doutrina mais excelente, regredir a concepções terrenas, lhe tirarei o seu anjo protetor e quando este se afastar dele, como merecerá, uma potência maligna aproveitará a ocasião para armar ciladas à sua negligência e o precipitará neste ou naquele pecado, visto que foi ele que se expôs ao pecado.

É assim, portanto, que falará Aquele que dispõe de antemão todas as coisas. Por exemplo: Amon gerará Josias, o qual não imitará os pecados do seu pai, mas, tomando o caminho que leva à virtude, com a ajuda dos que o acompanham, será bom e honrado. Destruirá o altar construído criminosamente por Jeroboão (cf. 2 Rs 21-23).

Sei que Judas, quando o meu Filho se manifestar entre os homens, começará sendo bom e honrado. Mas depois se perverterá e cairá no pecado dos homens, e por isso, será justo que sofra tais e tais penas.

Esta presciência, possivelmente existe em relação a todas as coisas, mas, com certeza quanto a Judas e a outros mistérios, o Filho de Deus a tem, ele que, contemplando o desenrolar dos acontecimentos futuros, vê em espírito Judas e os pecados que irá cometer, de tal modo que, antes mesmo de Judas nascer, predisse por Davi: “Ó Deus, não faças calar o meu louvor” etc. (Sl 108,1).

Igualmente, conhecendo o futuro e qual o esforço que Paulo fará pela religião, dirá Deus: Em mim mesmo, antes do início das coisas e da criação do mundo, eu o escolherei e o confiarei desde o seu nascimento às potências que ajudam os homens a se salvarem, separando-o para mim desde o seio materno. Permitirei que no princípio, em sua juventude, seja movido de zelo conjunto à ignorância e persiga, a pretexto da religião, aqueles que crerem em meu Cristo, e guarde as vestes dos que apedrejarão o meu servo e testemunha Estevão (cf At 22,20). Desse modo, passada a petulância da juventude, achará ocasião para se converter e não se vangloriar diante de mim, e sim, de dizer: “Eu não sou digno de me chamar Apóstolo, porque persegui a Igreja de Deus” (1 Cor 15,9). Considerando — continua — os meus futuros benefícios, depois dos erros cometidos em sua juventude a pretexto da religião, Paulo confessa: “Pela graça de Deus, sou o que sou” (1 Cor 15,10). E finalmente a consciência do que, jovem ainda, perpetrou contra Cristo o impedirá de se gloriar da excelência das revelações que receberá por graça minha.

VII Exemplo tirado das concepções sobre os astros

1 Quanto à oração antes do nascer do sol, cumpre dizer o seguinte: Também o sol goza de alguma liberdade, pois que com a lua canta o Senhor, segundo diz a Escritura: “Louvai o Senhor, sol e lua” (Sl 148,3).

O mesmo vale, é claro, para a lua e, por consequência, para todas as estrelas: “Louvai o Senhor, todas as estrelas e a luz”. Como dissemos, Deus se serve do livre arbítrio de cada um de nós na terra, e o ordena em vista do bem de todos. Devemos, igualmente, supor que ele se serve da liberdade do sol, da lua e das estrelas, e como essa liberdade é imutável, firme, estável e sábia, ele dispõe em ordem tanto o ornato do céu, como os movimentos harmônicos dos astros no universo. Se, pois, não é em vão que eu oro pelas coisas que dependem da minha liberdade, com maior razão o faço em relação às coisas subordinadas à liberdade dos corpos celestes, que dançam ordenadamente no céu, de modo salutar para todo o universo.

Pode-se, é verdade, dizer das coisas da terra, que certas imagens fantasiosas provindas de várias circunstâncias, provocam o que em nós é fraco e inclinado ao mal, e nos levam a falar ou agir desta ou daquela forma.

Mas, no caso das criaturas celestes, que imagem ou fantasia pode removê-las do seu curso benéfico para o mundo? Pois cada uma delas tem uma alma dotada de inteligência, que conhece também a causa dessas fantasias, e um corpo etéreo e puríssimo.

VIII Condições da oração

Não é absurdo usar de exemplos, como o seguinte, para levar os homens a orar e afastá-los da sua negligência. Como, em verdade, não é possível ter filhos sem o concurso da mulher e do ato necessário à geração, assim também ninguém obterá isto ou aquilo, senão orando de tal modo, com tal fé, e não tiver antes de orar vivido da seguinte maneira. Assim, portanto, não multipliques as palavras, não peças coisas insignificantes, nem coisas terrenas, nem venhas à oração encolerizado e de ânimo perturbado.

É também incompreensível que alguém se entregue à oração sem a devida purificação. Como também não pode aquele que ora alcançar o perdão dos seus pecados, se não tiver, de coração, perdoado o irmão que o ofendeu e lhe pede indulgência (cf. Mt 18,21-22).

Penso que muitas são as vantagens destinadas a quem ora conforme convém ou se esforça a isto, na medida das suas forças.

Antes de mais nada, é do maior proveito que a pessoa, preparando-se em espírito antes da oração, guarde essa atitude enquanto ora, e imagine que está na presença de Deus e lhe fala, como a alguém que por sua vez, também o vê e lhe está presente.

Assim como certas imaginações e lembranças guardadas na memória mancham os pensamentos delas oriundos, assim também — devemos crer — é útil essa recordação da presença de Deus em quem pusemos a nossa confiança, e que conhece todos os movimentos da alma em suas últimas profundezas. Ele conhece, assim, que aquela alma se compõe para lhe agradar como a alguém que está presente e olha e açode a todo pensamento, aquele que examina os corações e perscruta os rins (cf. Sl 7,10).

Ainda que, por hipótese, aquele que dispõe o seu espírito para orar não colhesse disto nenhum fruto, não seria de pouco valor para ele ter-se recolhido tão piamente na hora da oração. Quantos pecados são evitados, quantas virtudes concorrem para esse hábito, sabem-no perfeitamente, por experiência, aqueles que assiduamente se dedicam à oração. Se, com efeito, a lembrança e a consideração de um homem bondoso e sábio nos provocam à emulação e refreiam as nossas inclinações ao mal, quanto mais a recordação de Deus, Pai de todas as coisas, unida à oração a ele dirigida, ajudará aqueles que estão certos de se encontrar na presença de Deus, estar junto dele, escutá-lo e com ele falar!

IX Disposições ditadas pela Escritura

1 Vamos provar pelas divinas Escrituras o que acima foi dito, do seguinte modo:

Deve o orante levantar mãos puras, (cf. 1 Tm 2,8) perdoando todas as injúrias recebidas, removendo da sua alma a paixão da cólera e não guardando rancor contra ninguém.

Ao mesmo tempo, a fim de que o espírito não fique ocupado por pensamentos estranhos durante o tempo da oração, é preciso então esquecer tudo aquilo que seja alheio à prece. Esse estado, como não há de ser felicíssimo? É o que ensina Paulo em sua Primeira Carta a Timóteo: “Quero, pois, que os homens orem em todo lugar, levantando mãos puras, sem cólera nem discussões” (1 Tm 2,8).

Quanto à mulher, além disso, principalmente quando ora, deve ser bem composta e ornada na alma e no corpo. Sobretudo na hora da oração, seja ela reverente a Deus, e expulse da mente todo pensamento desordenado e mulheril. Adorne-se não com cabelos trançados, nem com ouro e pérolas nem vestes preciosas, mas com o que convém a uma mulher que faz profissão de piedade.

Espanta-me que alguém possa duvidar da felicidade duma tal mulher que já por essa atitude mental se prepara à oração. É o que Paulo ensina na mesma Carta, com estas palavras: “Igualmente, as mulheres, em vestidos decorosos, se ornem com pudor e modéstia, não com cabelos trançados, nem com ouro e pérolas nem vestes preciosas, mas com boas obras, como convém a uma mulher que faz profissão de piedade” (1 Tm 2, 9-10).

2 Também o profeta Davi diz que o homem santo, que ora, deve ter muitas outras qualidades. Não será inoportuno declará-las, a fim de que nos sejam manifestas as grandes vantagens que, por si só, apresentam a atitude e a preparação à oração para aquele que foi consagrado a Deus. Diz ele: “ Para ti levantei os meus olhos, a ti que habitas no céu” (Sl 122,1). E também: “A ti elevei a minha alma, Deus” (Sl 24,1).

Os olhos do espírito se levantam quando não se fixam nas coisas terrenas, nem se enchem mais de imagens das coisas materiais, mas chegam a tal altura, que desprezam as coisas passageiras e pensam somente em Deus, a quem escutam com reverência e a quem falam com modéstia.

Como estas coisas tão sublimes não poderiam ser de máximo proveito a olhos que “contemplam com face descoberta a glória do Senhor, como num espelho e que se transformam na sua imagem, de glória em glória”? (cf. 2 Cor 3,18). Estes, então, participam do influxo de certa percepção intelectual mais divina, como se vê do seguinte: “A luz da tua face, Senhor, brilhou sobre nós” (Sl 4,7). A alma se eleva e, seguindo o Espírito, se separa do corpo. Não somente segue o Espírito, mas nele se transforma, como transparece destas palavras: “A ti elevei a minha alma” (Sl 24,1).

Como não dizer, depois disso, que a alma abandona, então, a sua natureza (tó eínai) e se torna espiritual ( psychê pneumati-quê)?

3 O maior rasgo de virtude é o perdão de injúrias, no qual, como disse o profeta Jeremias, se resume toda a Lei: “Não mandei isto aos vossos pais quando saíram do Egito, mas eis o que mandei: Cada um perdoe de coração ao seu próximo” (Jr 7,22-23).

Quando, pois, vamos orar, perdoemos primeiro, e cumpramos o preceito do Salvador, que diz: “Quando vos puserdes de pé para orar, perdoai, se tendes algo contra alguém” (Mc 11,25). É evidente que com tais disposições, já conseguimos o melhor.

X Utilidade demonstrada pela oração

1 Ainda que, por hipótese, nada mais conseguíssemos com a nossa oração, já teríamos obtido o máximo lucro, aprendendo a orar como convém e a agir de forma consequente. É evidente que aquele que ora dessa maneira, enquanto fala e contempla a virtude do que o escuta, ouvirá esta palavra: “Aqui estou”, se, antes da oração, depôs todo sentimento contra a Providência.

É o que demonstra o versículo: “Se te livrares de todas as cadeias, do gesto ameaçador, do resmungo de murmuração” (Is 58,9).

Efetivamente, aquele que fica tranquilo em tudo que acontece, é livre de todo grilhão, não estende a mão contra Deus, que ordena tudo quanto quer para nosso exercício, e não murmura em ocultos pensamentos, embora não os escutem os homens. Tal murmuração, é própria dos maus servidores, que não acusam abertamente as ordens do seu senhor. Eles murmuram sem ousar fazê-lo em alta voz, mas com toda a alma, contra o que lhes acontece, como se quisessem esconder à Providência e ao Senhor do Universo aquilo que sofrem com impaciência. A meu ver, é disso que está escrito no livro de Jó: “Em tudo isso não pecou Jó com os lábios diante de Deus” (Jó 1,22; 2,10), ao passo que da tentação precedente, está escrito: “Em tudo isso que lhe sucedeu, Jó não pecou diante do Senhor” (id.).

Preceito de não fazer isso é esta palavra do Deuteronômio: “Presta atenção, que no teu coração não surja este pensamento vil, e digas: Aproxima-se o sétimo ano” (Dt fó,9), e o que se segue. -^

Aquele que ora assim, depois de ter recebido tantos benefícios, torna-se mais capaz de se unir ao “Espírito do Senhor que encheu toda a terra”, e que encheu o céu e a terra e assim fala pelo Profeta: “Porventura, não encho eu o céu e a terra, diz o Senhor?” (Jr 23,24).

Além disso, pela purificação acima dita, participará também da oração do Filho de Deus, que está igualmente no meio daqueles que o ignoram e não falta à oração de nenhum deles, e com seus protegidos, ora ao Pai.

O Filho de Deus é, de fato, o Sumo Sacerdote das nossas oferendas e o nosso Advogado junto do Pai. Ele ora com os que oram e suplica junto com os que suplicam. Mas não roga por aqueles que não oram assiduamente em seu nome. Não será advogado junto de Deus, como é por seus familiares, em favor daqueles que não obedecem ao seu mandamento: “É preciso orar sempre, sem desfalecer” (Lc 18,1). Como está escrito: “Contava-lhes uma parábola sobre o dever que tinham de orar sempre e não desfalecer: Havia numa cidade um juiz”, etc. (Lc 18,1-2). E em outra passagem: “E ele lhes disse: Se algum de vós tem um amigo e vai à sua casa à meia-noite e lhe diz: Amigo, empresta-me três pães, porque um amigo meu chegou a mim de viagem e não tenho nada para lhe oferecer” (Lc 11,5-6).

E pouco depois: “Digo a vós, ainda que não se levante e lhe dê os pães por ser amigo, ele se levantará por causa da sua importunação e lhe dará tudo quanto for necessário” (Lc 11,8). Quem, portanto, entre os que acreditam na palavra de Cristo que não mente, não se sentirá inflamado a orar diligentemente, ao ouvir: “Pedi e dar-se-vos-á, pois todo aquele que pede, recebe”?(Mt 7,7-8; Lc 11,9-10).

O bom Pai dá o pão natural que lhe pedimos, e não a pedra que o Inimigo quer dar em alimento a Jesus e aos seus discípulos. Ele o dá àqueles que dele receberam o espírito de filiação adotiva; “O Pai concede o bom presente, fazendo-o descer do céu, aos que lho pedem” (Mt 7,11).

XI Orar com Cristo, com os anjos e com os santos

1 Não é somente o Sumo Sacerdote que ora com aqueles que oram do modo devido, mas também os anjos que no céu mais se alegram “com um pecador que faz penitência, do que com noventa e nove justos que não precisam de penitência” (Lc 15,7), bem como também as almas santas dos que já adormeceram (no Senhor).

Isto se mostra com a passagem em que Rafael ofereceu a Deus um sacrifício espiritual por Tobias e Sara. Com efeito, após a oração de ambos, diz a Escritura: “A oração de ambos foi ouvida na presença da glória do grande Rafael, e ele foi enviado a curar os dois” (Tb 3,16-17).

O mesmo Rafael, ao dar a conhecer o que por eles fizera, como anjo enviado por Deus, declara: “Quando fazias a tua oração com tua esposa Sara, era eu que apresentava a vossa oração diante do Santo” (Tb 12,12).

E pouco adiante: “Eu sou Rafael, um dos sete Anjos que oferecem as orações dos santos e penetram diante da glória do Santo” (id. 12,15). Assim, pois, segundo a palavra de Rafael, “é boa coisa a oração unida ao jejum, à esmola e à justiça” (id. 12,8).

Também Jeremias é apresentado no livro dos Macabeus como “ilustre por sua idade e glória, de modo que a sua fama era admirável e mais excelente do que a de outros. Ele estendeu a mão direita e deu a Judas uma espada de ouro” (2 Mc 15,13. 15). Do mesmo deu testemunho Onias, um outro santo, já falecido: “Este é Jeremias, o Profeta de Deus, que muito ora pelo povo e pela cidade santa” (id. 15,14).

2 Considerando que o conhecimento no tempo presente é dado aos santos como que através de uma visão, em espelho e em enigma, ao passo que na vida futura será face a face, é absurdo não recorrer a esta mesma analogia para julgar as outras virtudes, principalmente porque aquilo que é preparado nesta vida, conseguirá a perfeição na outra.

Uma das mais altas dessas virtudes, segundo a palavra divina, é a caridade para com o próximo.

É preciso pensar que os santos, que já morreram, a praticam em relação aos que lutam nesta vida, muito mais do que aqueles que ainda vivem na fraqueza humana e ajudam os fracos em sua luta.

Não é somente aos que estão no mundo, que se aplica esta palavra: “Se um membro sofre, sofrem com ele todos os membros, e se um membro é honrado, todos os membros se alegram com isto” (1 Cor 12,26). Pois outro tanto se pode dizer da caridade dos que deixaram esta vida: “Na solicitude de todas as igrejas, quem desfalece, que eu também não desfaleça? Quem se escandaliza, e eu também não me abrase?” (2 Cor 11, 28-29).

O próprio Cristo, aliás, afirmou que é enfermo em cada um dos santos que são enfermos, e que está preso, que está nu, que está sem teto, e tem fome e está com sede (Mt 25,35-40). Quem, pois, ignora, entre os que leram o Evangelho, que Cristo declara seus os sofrimentos dos fiéis?

3 Se “os anjos de Deus, aproximando-se de Jesus o serviram” (Mt 4,11), não é correto pensar que o ministério dos anjos se exercia, por pouco tempo, durante a sua permanência corporal entre os homens, e enquanto ele esteve no meio dos fiéis, não como aquele que se assenta à mesa, mas como aquele que serve (cf. Lc 22,27).

Quantos anjos, portanto, podemos pensar que sirvam a Jesus a congregar os filhos de Israel um depois do outro (cf. Is 27,12), a reunir os dispersos (cf. Jo 7,35), a resgatar os que o temem e o invocam (cf. Rm 10,12-13)?

Mais do que os Apóstolos, os anjos trabalham pelo crescimento e extensão da Igreja. No livro do Apocalipse, João diz que certos anjos presidem às Igrejas.

Não é, pois, em vão que os anjos de Deus sobem e descem sobre o Filho do Homem (cf. Jo 1,51), vistos por aqueles que têm os olhos iluminados pela luz de conhecimento superior.

4 Assim, os anjos, durante o tempo da oração, se tornam conscientes daquilo que falta àquele que ora, e fazem o que podem por ele, cumprindo um mandamento que receberam, de alcance universal.

É preciso recorrer a uma imagem, para melhor mostrar o que estamos dizendo.

Imaginemos um médico consciencioso. Ele atende a um doente que lhe pede a própria cura. Sabe como curar a doença daquele enfermo que o procurou. É evidente que esse médico se empenha em curar o homem que lho pede, mas, não sem razão, supõe que este é o plano de Deus que escutou a oração do paciente a pedir a cura.

Ou, então, imaginai um homem que possui em grande quantidade os bens deste mundo e que, por ser generoso, escuta a oração de um pobre que se dirige a Deus em suas necessidades.

É também evidente que esse homem, ao satisfazer ao desejo do pobre, coopera com a vontade paterna de Deus. Foi Deus, com efeito, que, no tempo da oração, conduziu ao mesmo lugar, o suplicante e aquele que pode ajudar, o qual por seu coração generoso não pode desprezar a indigência do outro.

5 Quando tais coisas acontecem, não devem ser consideradas obra do acaso. Pois “aquele que contou todos os fios de cabelo da cabeça dos santos” (cf. Mt 10,30; Lc 12,6), harmoniosamente juntou, no tempo da oração, o que vai ser ministro do benefício e o que precisa de auxílio e orou com fé. Assim, podemos pensar que os anjos, inspetores e ministros de Deus, estão junto do homem que ora e se unem à sua petição. De outro lado, o anjo de cada um de nós, inclusive dos menores na Igreja, “sempre contemplando a face do Pai que está no céu” (Mt 18,10), e vendo a divindade do nosso Criador, ora conosco e faz tudo que pode para cooperar conosco em nossos pedidos.

XII A oração e a vida dos santos

1 Ademais, penso que são cheias de força as palavras da oração dos santos, principalmente quando os que oram, oram com espírito e inteligência (cf. 1 Cor 14,15).

Essa inteligência é uma luz que surge da alma do orante e sai da sua boca para destruir, pela potência de Deus, o veneno espiritual instilado pelas forças hostis nas almas dos que negligenciam a oração, e não observam o que Paulo diz, conforme às exortações de Cristo: “Orai sem cessar” (1 Ts 5,17). Como um dardo, a prece sai da alma do orante, pelo seu conhecimento, sua palavra, sua fé, ferindo de morte e destruição os espíritos contrários a Deus, que querem prender nos laços do pecado.

2 Como as obras de virtude e o cumprimento dos mandamentos fazem parte da oração, ora sem cessar aquele que une a oração às obras de preceito, e as ações à oração.

Somente assim é que podemos compreender como possível a ordem de orar sem cessar, isto é, se definimos a vida do cristão como uma só contínua oração, da qual não é senão uma parte aquela que costumamos chamar de oração. Esta parte, porém, temos de praticá-la pelo menos três vezes ao dia, como aparece no livro de Daniel, o qual rezava três vezes ao dia, mesmo que por isso corresse grande perigo (cf. Dn6,13).

E Pedro, “subindo ao andar superior para orar à hora sexta, quando viu a toalha suspensa no céu pelas quatro pontas” (At 10, 9.11), nos indica o segundo dos três tempos de oração, conforme, antes dele, lembrava Davi: “De manhã, escutarás a i minha oração; de manhã, me levantarei para ti e verei” (Sl 5,4). O último tempo de oração está indicado assim: “A elevação das minhas mãos é o sacrifício vespertino” (Sl 140,2). Mas não passaríamos de modo conveniente o tempo da noite sem a respectiva oração, como diz Davi: “Eu me levantava à meia-noite para te louvar pelos teus justos decretos” (Sl 118, 62). E Paulo, como se vê nos Atos dos Apóstolos, à meia noite orava e louvava a Deus com Silas, em Filipos, e todos os outros presos os ouviam (cf. At 16,25).

XIII Cristo, a Escritura, a experiência

1 Se Jesus ora, e não em vão, obtendo pela oração aquilo que, talvez, não receberia sem a oração, quem de nós poderá ser negligente em orar?

Marcos, com efeito, diz: “Levantando-se bem cedo, (Jesus) foi a um lugar deserto, e ali orava” (Mc 1,35). Lucas, por sua vez, escreve: “E aconteceu que, estando ele em oração em certo lugar, ao cessar, disse um dos seus discípulos” (Lc 11,1). E em outra passagem: “Passou a noite em oração a Deus” (Lc 6,12). E João assim descreve a sua oração: “Assim falou Jesus e, elevando os olhos ao céu, disse: Pai, veio a hora, glorifíca o teu Filho, para que o teu Filho te glorifique” (Jo 17,1). As palavras: “Eu sabia que tu me escutas sempre” (Jo 11,42), ditas pelo Senhor, segundo o mesmo evangelista, mostram que aquele que sempre ora, é sempre ouvido.

Será, acaso, necessário recordar aqueles que, tendo rezado como convém, obtiveram de Deus os maiores benefícios? Cada um pode facilmente escolher muitos exemplos da Escritura.

Ana, por exemplo, privada de prole, rogou ao Senhor com fé, e gerou Samuel (cf. 1 Sm 1,10), comparado a Moisés (cf. Jr 15,1). Ezequias, ainda sem filhos quando Isaías lhe anunciou que ia morrer, orou e pôde ser inscrito na genealogia do Salvador (cf. Is 38,1-2; Mt 1,9-10).

Quando o povo estava ameaçado de perecer por um decreto devido às intrigas de Amã, a oração de Mardoqueu e de Ester, unida ao jejum, foi atendida, e além da festa instituída por Moisés, o dia de Mardoqueu trouxe alegria ao povo (cf. Est 3,6.7; 4,16; 7,1; 9,26-28).

Também Judite, depois de ter elevado a Deus uma santa oração, com a sua ajuda, venceu Holofernes, e assim uma mulher hebreia envergonhou a casa de Nabucodonosor (cf. Jt 13,4-9). Ananias, Azarias e Misael foram ouvidos em sua oração, e mereceram ver soprar “um vento fresco” que impediu a ação do fogo (cf. Dn 3,24-50). E na cova da Babilônia, as orações de Daniel fizeram fechar a boca dos leões (cf. Dn 6,18.22). E Jonas, que não perdera a esperança de ser escutado no ventre da baleia que o engolira, dali saiu e pôde cumprir a sua missão profética entre os ninivitas (cf. Jn 2,3-4).

E nós mesmos, quantos benefícios teríamos de narrar cada um de nós, se os quisermos recordar para, de ânimo grato, louvar a Deus?

Almas por longo tempo estéreis, quando tomaram consciência de não ter feito nada e de ser espiritualmente estéreis, conseguiram por sua oração perseverante, pelo Espírito Santo assim conceber, e gerar palavras de salvação, cheias de conhecimento da verdade.

E quantos também, foram os inimigos prostrados, dentre os milhares adversários que nos atacam muitas vezes, tentando derrubar-nos tirando-nos a fé?

Mas nós não desanimamos, invocando: “Uns confiam nos carros, outros nos cavalos, enquanto nós confiamos no Nome do Senhor” (Sl 19,8), e vemos que “é inútil o cavalo para a salvação” (Sl 32,17).

Entretanto, até o príncipe da milícia inimiga, de palavra enganadora e insinuante, que atemoriza muitos dos que se consideram fiéis, é batido por aquele que confia no louvor de Deus. O nome de Judite significa justamente: Louvor. Quantos são, com efeito, os que, vítimas de tentações difíceis e mais ardentes do que o fogo, nada sofreram, saindo delas totalmente ilesos, livres mesmo do menor odor das chamas do inimigo? (cf. Dn Cântico dos Três Jovens 3,25-45. 51-90). Que necessidade temos de dizer mais? Quantos animais ferozes, cheios de raiva contra nós, isto é, os espíritos malignos e homens perversos, irritados contra nós, tiveram a boca fechada graças à oração, de modo que não puderam ferrar os seus dentes em nossos membros, membros do Cristo? Muitas vezes, na verdade, por algum dos seus santos, “o Senhor quebrou os dentes dos leões, e eles foram aniquilados como água que escorre” (Sl 57,7-8).

Soubemos, muitas vezes, de homens que se afastaram dos mandamentos divinos e, feitos prisioneiros da morte, foram por ela devorados. Pela penitência, no entanto, foram, em seguida, salvos de tão grande mal, porque, apesar de já presos no ventre da morte, não desesperaram da salvação: “A morte, prevalecendo, os devorara, mas Deus, de novo, enxugou as lágrimas de toda face” (Is 25,8).

4 Julguei ser necessário dizer tudo isso, depois de enumerar aqueles que foram beneficiados pela oração. Meu propósito é dissuadir os que aspiram à vida espiritual em Cristo, de pedir na oração, coisas terrenas e sem importância. Possam os leitores deste escrito anelar pelos bens místicos, dos quais são imagens os exemplos acima mencionados. Toda oração voltada para tais dons espirituais e místicos, sempre é feita por quem milita “não segundo a carne”(2 Cor 10,3), mas mortifica “com o espírito os atos da carne” (Rm 8,13), preferindo os bens oferecidos a quem busca o sentido espiritual da Escritura, em vez dos que parecem beneficiar aos que oram segundo a letra.

Devemos, com efeito, cuidar, com todo empenho que não fiquemos inteiramente sem filhos e estéreis mas, sim, que escutemos com ouvidos espirituais a lei espiritual. Assim seremos ouvidos como Ana e Ezequias. E seremos libertos, como aconteceu a Mardoqueu, a Ester e a Judite, dos inimigos espirituais e malignos que nos lançam ciladas. O Egito é um forno de ferro (cf. Dt 4,20; Jr 11,4), símbolo de toda condição terrena. Assim, todo aquele que foge do mal existente na vida humana, e não se deixou inflamar pelo pecado, e não tem o coração cheio de fogo como uma fornalha, há de dar graças como aqueles que foram provados pelo fogo que refrigera, como rocio (cf. Dn Cântico dos Três Jovens 3, 25-45.51-90).

Igualmente, quem foi ouvido ao orar e dizer: “Não entregues às feras a alma que te confessa” (Sl 73,19), e que nada sofreu da parte da serpente e do basilisco, por ter, em virtude do Cristo, caminhado sobre eles e esmagado o leão e o dragão (cf. Sl 90,13); quem, enfim, usou do nobre poder dado pelo Cristo de “calcar serpentes e escorpiões e toda potência do inimigo, que pisou leões e dragões” (Sl 90,13; cf. Lc 10,19), e não sofreu deles nenhum dano, deve dar maiores graças do que Daniel, pois ficou livre de feras mais ferozes e nocivas. Além disso, quem compreendeu de qual fera é símbolo a baleia que engoliu a Jonas, e entendeu que é dela que fala Jó, ao dizer: “que a amaldiçoem os que amaldiçoam o dia, dispostos a despertar a grande Besta” (Jó 3,8), este homem, se por acaso, em razão de alguma desobediência, vem a se achar no ventre desse monstro, se arrependa e ore, e daí será libertado. Saindo de lá, e perseverando fiel aos mandamentos de Deus, poderá, com a ajuda do Espírito que sopra, profetizar aos nini-vitas que então se perdiam, e ser para eles ocasião de salvação. Pois tal homem já tem experiência da misericórdia de Deus e espera que ele não seja rigoroso com os que se arrependem.

5 Segundo a Escritura, Samuel realizou com a sua oração um grande prodígio. Aquele que está sinceramente unido a Deus, pode fazer o mesmo agora, espiritualmente falando. Está, com efeito, escrito: “Agora, levantem-se para ver o grande prodígio que o Senhor está para fazer diante dos seus olhos. Não estamos nós na hora da colheita do trigo? Invocarei o Senhor e ele dará trovões e chuva” (1 Sm 12,16-17). E pouco adiante: “Samuel invocou o Senhor, e o Senhor deu trovões e chuva naquele dia” (1 Sm 12,18). A todo santo, a todo discípulo autêntico de Jesus, diz o Senhor: “Levantai os olhos e vede os campos, como já estão brancos para a colheita. Já o ceifeiro recebe o seu salário e recolhe fruto para a vida eterna” (Jo 4,35.36).

No tempo da colheita, o Senhor realiza um grande prodígio diante daqueles que escutam os profetas. A todo aquele que, preparado pelo Espírito Santo, invoca o Senhor, Deus envia do céu trovões e a chuva que irriga a alma. Desse modo, quem antes estava em pecado, passe agora a ter grande reverência pelo Senhor e dispensador de graças divinas, revelado como venerável e augusto por escutar as suas orações.

Elias, que fechou os céus por três anos e meio aos ímpios, os reabriu depois por ordem de Deus. É o que faz também aquele que, por meio da oração, recebe a chuva da alma, que antes lhe faltava por causa do pecado (cf. Tg 5,17-18; Lc 4,25; 1 Rs 17,8-16).

XIV O que devemos pedir na oração

1 Depois de ter explicado os benefícios advindos aos santos pela oração, pensemos nestas palavras: “Pedi as coisas grandes, e as pequenas vos serão acrescentadas”. “Pedi os bens celestes, e os bens terrenos vos serão acrescentados” (id.). Todos os bens simbólicos e típicos, em comparação com os bens verdadeiros e espirituais, são pequenos e terrestres. É bem por isso que o Verbo divino nos exorta a imitar a oração dos santos, pedindo a realização, em verdade, daquilo que eles conseguiram em figura. Pois, como ele diz, os dcns celestes e grandes são indicados pelas coisas terrenas. Isto quer dizer: Vós que desejais ser espirituais, pedi em vossas orações os bens celestes e grandes. Ao consegui-los enquanto celestes, herdais o reino do céu; enquanto grandes, gozareis dos bens maiores. Então, os bens pequenos e terrestres, de que tendes necessidade para a vida corporal, o Pai vo-los dará na medida do necessário.

2 Como o Apóstolo na primeira Carta a Timóteo usa quatro nomes para designar as quatro maneiras diretamente relacionadas com a oração, será útil, depois de citar o seu texto, ver se bem compreendemos a significação de cada uma.

Eis o que ele diz: “Antes de tudo, recomendo que se façam pedidos, orações, súplicas e ações de graças por todos os homens” (1 Tm2,l).

A meu ver, o pedido (déesis) é a oração suplicante que alguém faz para obter aquilo de que necessita. A oração (proseuchê) é a prece mais nobre, feita com louvor de Deus, em vista de bens melhores.

A súplica, por sua vez, (énteuxis) é a demanda feita a Deus com certa ousadia por quem já tem muito e pede mais alguma coisa.

A ação de graças (eucharistia) é o reconhecimento, expresso em orações, dos bens concedidos por Deus, seja quando a grandeza do beneficio é notória, seja quando essa grandeza só aparece ao agraciado.

3 Eis exemplos da primeira forma, isto é, da oração-pedido (déesis). Assim foi com a palavra de Gabriel a Zacarias, quando este pedia, como é provável, o nascimento de João : “Não temas, Zacarias, porque foi ouvida a tua oração, e tua mulher Isabel te dará a luz um filho, que chamarás coniíO nome de João” (Lc 1,13).

Outro, no livro do Êxodo, quando fizeram o bezerro de ouro. Está escrito: “Moisés orou diante do Senhor, dizendo: Por que, Senhor, a tua cólera se inflama contra o teu povo, que fizeste sair da terra do Egito, com grande força?” (Ex 32,11). E no Deuteronômio: “E orei (déesis) pela segunda vez diante do Senhor, como da primeira vez, por quarenta dias e quarenta noites, sem comer pão nem beber água, por causa de todos os pecados que cometestes” (Dt 9,18).

No livro de Ester, “Mardoqueu, recordando todas as obras do Senhor, pediu (edeéthe) a Deus: Senhor, Senhor, rei onipotente” (Est 4,17). A própria Ester pediu ao Senhor, Deus de Israel: “Ó Senhor, nosso rei!” (id.).

4 Exemplos da segunda forma de oração (proseuchê) no livro de Daniel: “Ficando de pé, Azarias orou (proseúcsato) e, abrindo a boca em meio ao fogo, disse” (Dn 3,25). E no livro de Tobias: “E eu orava (proseucsámen) com dor, dizendo: Justo és, Senhor, e todas as tuas obras são misericórdia e verdade; e juízo verdadeiro e justo proferiste eternamente”(Tb 3,1-2).

Visto que a passagem de Daniel acima citada foi marcada com óbelo, isto é, foi cancelada pelos judeus por não constar do texto hebraico da Bíblia, e como os mesmos judeus rejeitam o livro de Tobias, citarei as palavras de Ana no primeiro livro de Samuel: “Ela orou ao Senhor, chorando com gemidos e fez um voto (proseúcsato), dizendo: Senhor dos Exércitos, se te dignares de olhar a aflição da tua serva”, etc. (1 Sm 1, 10-11). E no livro de Habacuc: “Oração do profeta Habacuc, em tom de lamentações: Senhor, ouvi a tua voz e tive medo. Senhor, refleti sobre as tuas obras e fiquei estupefato. No meio de dois animais, tu serás conhecido; no suceder dos anos serás manifestado” (Hab 3,1-2).

Esta palavra deixa bem clara a definição de oração(proseuchê), que une ao pedido o louvor de Deus.

Também no livro de Jonas se lê: “Do ventre da baleia orou (proseúcsato) Jonas ao Senhor, seu Deus, e disse: Clamei na minha angústia ao Senhor, meu Deus, e ele me escutou. Do fundo do sepulcro ele ouviu o meu clamor; lançaste-me no fiando do mar e rios me envolveram” (Jn 2,2-4).

5 Um exemplo da terceira forma de oração, isto é, da súplica (enteuxis) se encontra no Apóstolo. Acertadamente, ele atribui d a nós a oração (proseuchên), enquanto a súplica (énteuxin) ele atribui ao Espírito, por ser ele mais poderoso e ter liberdade de falar em face daquele ao qual suplica: “Não sabemos o que orar (proseuchê), como convém, mas é o próprio Espírito que suplica por nós a Deus com gemidos inefáveis. Aquele que perscruta os corações, conhece o pensamento do Espírito, que suplica a Deus pelos santos” (Rm 8,26-28). O Espírito, como se vê, suplica e suplica com insistência (hypérénteuxis), nós apenas oramos (proseuchómetha). A mim, também, parece que foi uma súplica a oração de Josué para que o sol parasse em Gabaon: “Então falou Josué ao Senhor, no dia em que Deus entregou os amorreus às mãos de Israel”, quando venceu em Gabaon, e eles foram destruídos diante dos filhos de Israel. E Josué disse: “O sol fique parado sobre Gabaon, e a lua sobre o vale de Aialon!” (cf. Js 10,12). Em minha opinião, no livro dos Juizes, foi uma súplica que Sansão fez, dizendo: “Morra a minha alma com os filisteus”, quando, “sacudindo fortemente as colunas, fez a casa desmoronar sobre os príncipes e toda a multidão que aí se achava” (Jz 16,30).

Embora não esteja escrito que Josué e Sansão “suplicaram”, mas apenas que “disseram”, no entanto, parece ser uma súplica (énteuxis), que julgamos diferente da oração (proseuchê), se tomamos os vocábulos no sentido próprio.

Exemplo de ação de graças são as palavras do Senhor quando diz: “Eu te glorifico, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e aos inteligentes, e as revelaste aos pequeninos”(Mt 11,25; Lc 10,21).

A expressão “glorifico” significa o mesmo que “dou graças”.

6 A oração de pedido, a súplica e a ação de graças podem, sem absurdo, ser dirigidas aos santos. Destas, a segunda e a terceira se endereçam não só aos santos, mas também aos homens. Mas a primeira, isto é, o pedido (déesis), só é feita aos santos, por exemplo, a Pedro e a Paulo, para que nos ajudem a obter os frutos do poder que lhes foi dado de perdoar os pecados (cf. Mt 16,19; 18,18).

Também, se cometemos injúria a alguém que não é santo, podemos, ao tomar consciência do nosso pecado contra ele, dirigir-lhe um pedido (deetênai) a fim de que nos perdoe a injustiça.

Se podemos dirigir pedidos aos santos, com maior razão devemos dar graças a Cristo, que tantos benefícios nos fez pela vontade do Pai!

A ele podemos igualmente suplicar (énteuxis), como fez Estêvão, com estas palavras: “Senhor, não lhes imputes este pecado!” (At 7,60). Ou, imitando o pai daquele lunático, podemos dizer: “Peço, Senhor, tem piedade do meu filho” (Mt 17,15; Lc 9,38), ou, também, de mim mesmo, ou de qualquer outro.

XV A oração a Deus só

1 Se bem entendermos o que seja a oração, não seria correto orar a nenhuma criatura, nem mesmo ao Cristo, mas somente ao Deus, Senhor de todas as coisas e Pai, ao qual o nosso Salvador orava, como acima dissemos (cf. X,2) e nos ensina a orar.

Ouvindo, com efeito, as palavras: “Ensina-nos a orar” (Lc 11,1), ele ensina a orar não a ele mesmo, mas ao Pai, dizendo: “PAI NOSSO, que estás no céu” , etc. (Mt 6,9). Porque, conforme se mostra em outro lugar , se o Filho é Pessoa distinta do Pai, segue-se que se deveria orar ao Filho e não ao Pai, ou então a um e outro, ou, enfim, só ao Pai. Ora, dizer que se deve orar ao Filho e não ao Pai, é uma afirmação absurda e contrária a toda evidência. Se é a um e outro que devemos orar, é claro que devíamos fazê-lo no plural, e diríamos em nossa oração: “Ajudai-nos, beneficiai-nos, concedei-nos, guardai-nos” e expressões semelhantes.

Tal coisa é absurda em si mesma. E ninguém pode demonstrar que nas Sagradas Escrituras alguém tenha falado assim. Em consequência, não resta senão a possibilidade de dirigir a oração somente a Deus, o Pai de todas as coisas, mas não separado daquele Pontífice que foi constituído pelo Pai com juramento: “Eu jurei e não me arrependerei: Tu és Sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedec” (Sl 109,4).

2 Assim, quando os santos em suas orações dão graças a Deus, eles o fazem por meio de Cristo Jesus. Deste modo, aquele que deseja orar corretamente, não convém que ore àquele que também ora, Jesus Cristo, mas, sim, àquele que nosso Senhor Jesus Cristo nos ensinou a invocar em nossas orações, isto é, ao Pai. Assim, nenhuma oração dirigida ao Pai deve ser feita sem Cristo.

É o que ele mesmo nos mostra claramente, quando diz: “Em verdade, em verdade, eu vos digo, se pedirdes ao Pai alguma coisa, ele vo-la dará em meu nome. Até agora não pedistes nada em meu nome. Pedi e recebereis, para que a vossa alegria seja plena” (Jo 16,23-24).

Ele, com efeito, não disse: Pedi a mim. Também não diz: Pedi ao Pai, simplesmente, mas sim, “se pedirdes ao Pai alguma coisa, ele vo-la dará em meu nome”.

Até o dia em que Jesus ensinou isso, ninguém ainda pedira ao Pai em nome do Filho. Era, pois, verdadeiro o que Jesus dissera: “Até agora não pedistes nada em meu nome”. E verdadeira igualmente a outra palavra: “Pedi e recebereis, para que a vossa alegria seja plena”.

3 Se alguém, perturbado pela palavra “adorar” (proskyneín), pensa que se pode orar ao próprio Cristo, porque no Deuteronômio se diz, em referência expressa ao Cristo, que “o adorem todos os Anjos de Deus” (Dt 32,43; Hb 1,6), a resposta a dar é a seguinte: a própria Igreja, que os profetas chamam de Jerusalém, deve ser adorada pelos reis e pelas rainhas que são os seus pais e mães nutridos, conforme se diz na seguinte passagem: “Eis que eu levanto a minha mão para as nações, e para as ilhas levantarei o meu estandarte. Elas trarão teus filhos em seus braços, e carregarão tuas filhas em seus ombros. E serão reis os teus protetores e princesas as tuas amas de leite. Com a face em terra te adorarão e lamberão o pó dos teus pés. E saberás que eu sou o Senhor, e que não se envergonharão os que em mim esperam” (Is 49, 22-23).

4 Segundo a mente daquele que disse: “Por que me chamas bom? Ninguém é bom, a não ser somente Deus, o Pai” (Mc 10,18; Lc 18,19), podemos supor que ele mesmo diria: Por que oras a mim? Somente ao Pai se deve orar, a quem eu próprio oro, conforme aprendeis das Escrituras. Não deveis, com efeito, orar àquele que para vós foi constituído Pontífice (cf Hb 5,3-6; 8,3), pelo Pai, e que o Pai vos deu como Advogado.

Deveis, sim, orar por meio do Pontífice, do Advogado “que pode compadecer-se das vossas fraquezas, provado em todas as maneiras como vós, salvo o pecado” (Hb 4,15). “Aprendei, pois, como é grande o dom que recebestes do meu Pai, pelo renascimento em mim, obtendo o espírito de filiação, para que possais chamar-vos filhos de Deus e meus irmãos (cf. Rm 8,14; Gl 4,5-6). Lestes o que, por meio de Davi, eu falei ao Pai por vós: “Anunciarei o teu nome aos meus irmãos, no meio da Igreja eu te louvarei” (Sl 21,23). Não é lógico, na verdade, que orem ao seu irmão aqueles que foram considerados dignos de ter com ele o mesmo Pai. Deveis, portanto, comigo e por meio de mim, dirigir a oração somente ao Pai”.

XVI Nossa resposta ao convite de Jesus

1 Ouvindo, pois, o que nos diz Jesus, oremos a Deus por meio dele, afirmando todos a mesma coisa, sem nos dividirmos uns dos outros pela maneira de orar.

Não somos, acaso, divididos, se uns oram ao Pai, outros ao Filho?

Os que dirigem a sua oração ao Filho, seja com o Pai, seja sem o Pai, pecam por ignorância e excessiva simplicidade, por falta de critério e de devido exame.

Oremos, portanto, a ele, como a Deus; supliquemos a ele, como a um Pai; pecamos a ele, como ao Senhor; demos graças a ele, como a Deus, Pai e Senhor, embora não seja Senhor de um escravo.

O Pai, com razão, pode ser considerado também Senhor do Filho, e Senhor de todos os que, por meio dele, se tornaram filhos. Como não é Deus dos mortos, mas dos vivos (cf. Mt 22,32), também não é o Senhor de escravos sem dignidade, mas daqueles que, no princípio, em sua infância escravos do temor, aceitaram depois, pela caridade, uma servidão mais feliz do que a do temor. São, com efeito, marcados em sua alma pelo caráter de servos e de filhos de Deus, visível só àquele que vê os corações.

2 Todo aquele, portanto, que pede a Deus coisas terrenas e sem importância desobedece ao que ele mandou, isto é, que peçamos bens celestes e grandes a Deus, que não sabe conceder nada de terrestre e pequeno.

Se objetarmos que aos santos foram concedidos bens corporais pela oração e até mesmo a palavra do Evangelho nos ensina que os bens terrestres e pequenos nos são dados em acréscimo, a resposta deve ser esta:

Quando alguém nos dá um objeto qualquer, não se pode dizer que ele dá a sombra do objeto em questão, visto que ele não teve a intenção de dar duas coisas, isto é, o objeto e a sua sombra. Sua intenção era de oferecer aquele objeto, mas ao dom do objeto se acrescenta para nós, em consequência, recebermos também a sua sombra.

Do mesmo modo, se ponderamos com atenção, os dons grandes e celestes que Deus nos dá são dons espirituais, aos quais são unidos outros terrenos, concedidos aos santos, para o bem comum (cf. 1 Cor 12,7), ou em proporção com a sua fé (cf. r Rm 12,6), ou por desígnio do doador (cf. 1 Cor 12,11). Seu desígnio é sábio, embora não estejamos em condições de compreender em cada caso a razão do doador.

3 A alma de Ana, quando foi curada de esterilidade, recebeu fecundidade maior do que o seu corpo ao conceber Samuel. Ezequias gerou filhos para Deus, mais espiritualmente do que por sua descendência corporal. Ester, Mardoqueu e o povo foram salvos mais das maquinações espirituais do que da conspiração de Amã e seus cúmplices. Mais do que a força de Holofernes, Judite destruiu o poder do príncipe das trevas que procurava perder a sua alma.

Quem não afirmaria que sobre Ananias e seus companheiros em rica medida, desceu a bênção espiritual prometida a todos os santos, desde Isaac, quando diz a Jacó: “Deus te dê o orvalho do céu” (Gn 27,28), bem mais que o orvalho material que apagou as chamas de Nabucodonosor? O profeta Daniel fechou a boca mais a leões invisíveis, para que nada pudessem contra a sua alma, do que aos leões visíveis, como todos entendemos ao ler a Escritura.

E quem escapa do ventre da baleia que foi vencida pelo nosso Salvador Jesus, e que devora todo aquele que foge de Deus, como Jonas? E ele, sendo santo, se tornou capaz de receber o Espírito Santo.

XVII O espírito e a carne

1 Não é de espantar se todos os que recebem os corpos que, por assim dizer, produzem sombra, não recebem sombra semelhante, ou se a alguns não se dá sombra alguma. Isto, aliás, ocorre com os corpos físicos, como observam os que estudam questões relativas a relógios de sol e, em particular, a relação das sombras com o respectivo corpo luminoso. Com efeito, para alguns observadores, a coluna não dá sombra, por um certo tempo. Para outros, por assim dizer, ela projeta uma sombra curta; para alguns, uma sombra mais longa, em tempos diversos.

Nada, pois, de espantar, se, conforme os desígnios inefáveis e místicos e secretos daquele que distribui os bens excelentes em harmonia com os que os recebem e com os tempos em que os recebem, nenhuma sombra segue, às vezes, tais bens. Ou, se outras vezes, alguns e não todos os dons se acompanham de sombras menores, relativamente a maiores de outros.

A quem busca os raios do sol, é indiferente se há ou não sombra, pois consegue o mais importante, a luz do sol, embora sem sombra ou com sombra mais curta ou mais comprida. Assim, enquanto não temos os bens espirituais e somos iluminados por Deus na posse completa desses bens verdadeiros, não devemos preocupar-nos dessa coisa indiferente que é a sombra.

Todas as coisas materiais e corporais, quaisquer que sejam, se reduzem a uma sombra passageira e frágil e não podem ser comparadas aos dons salutares e santos de Deus, Senhor do universo.

Como se poderiam comparar as riquezas materiais com aquelas que nos tornam “ricos em toda palavra e em toda sabedoria” ? (1 Cor 1,5).

E quem, senão um louco, compararia a saúde da carne e do osso com a do espírito, com a força da alma e com a reta coordenação dos pensamentos? Tudo isso, todos os sofrimentos corporais, se regulados pela palavra de Deus, não são, em verdade, senão arranhões sem importância e até menos do que isso.

Quem entendeu o que é a beleza da esposa amada pelo esposo, que é o Filho de Deus, isto é, a beleza da alma que floresce com uma beleza superior à do céu e do universo, se envergonhará de dar esse mesmo nome à beleza corporal de uma mulher, de uma criança, de um homem. A carne não poder ser beleza de verdade, pois toda ela é fealdade. Toda carne é como a erva, e a sua glória, que se manifesta na pretensa beleza das mulheres e das criancinhas, é comparada a uma flor, segundo a palavra do profeta: “Toda carne é como a erva, e toda a sua glória é como a flor do campo. A flor murcha, a erva seca, mas a palavra do nosso Deus permanece para sempre” (Is 40,6-8).

Igualmente, quem chamará de nobreza a que vem por nascimento, segundo os homens, depois que se conhece a nobreza dos filhos de Deus?

O espírito que contemplou o reino indestrutível do Cristo (cf. Hb 12,28), como poderá deixar de ter como indigno de consideração todo reino da terra?

E quem tiver visto o exército dos anjos e dos chefes das forças do Senhor — os arcanjos, os tronos e dominações, os principa-dos e potências supracelestes — , (nos limites permitidos a um espírito ainda ligado ao corpo) quando vier a compreender que pode obter do Pai as mesmas honras, acaso não desprezará ele os bens, fracas sombras, admirados pelos insensatos, vendo-os como bens obscuros e insignificantes diante daqueles? Ainda quando lhe oferecessem todas as coisas, não desprezaria ele tudo, para não perder os verdadeiros principados e as dignidades divinas?

Devemos, pois, pedir e pedir para obter aqueles que são os bens principais, verdadeiramente grandes e celestes. Quanto aos bens que acompanham como sombra os bens principais, deixemo-los à livre vontade de Deus. Pois ele “sabe o que nos é necessário (para o nosso corpo mortal), antes que o pecamos” (Mt 6,8).

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