Rede (OCM)
Como interpretar as similitudes? O reino dos céus é ainda semelhante a uma rede lançada ao mar… Assim como, quando se trata de quadros e de estátuas, as similitudes não são similitudes totais em relação aos objetos que lhes serviram de modelos, mas que, por exemplo, um quadro pintado a cera sobre uma superfície de madeira, dá uma similitude de perspectiva unida à da cor, sem conservar os vazios e as saliências, mas apenas a sua aparência, e que a modelagem da estátua tenta conservar a semelhança dos vazios e das saliências, ao mesmo tempo que abandona a das cores, e, se se trata de uma efígie de cera, tenta conservar um e outro — quero dizer a exatidão da cor e a dos vazios e das saliências — sem ser contudo a imagem do que há no interior do corpo, da mesma forma, reflete, por favor, sobre o fato de que, nas similitudes do Evangelho, o reino dos céus, comparado a algum objeto, não é comparado a ele por todas as propriedades do objeto da comparação, mas por algumas, necessárias ao ensinamento dado.
Não há “naturezas” de almas
É assim que, nesta passagem, “o reino dos céus é semelhante a uma rede lançada no mar”, não no sentido em que alguns entendem que pretendem descobrir, sob estas palavras, a existência de naturezas diferentes de maus e de justos capturados na rede, a ponto de crer que por causa da passagem “que recolhe toda espécie de peixes”, há naturezas numerosas e diferentes de justos, assim como de maus; pois uma tal interpretação é contradita por todas as Escrituras que revelam o livre arbítrio e que acusam os pecadores, enquanto aprovam aqueles que se conduzem bem, e seria injusto que a culpa acompanhasse uns, por causa da sua espécie má que seria tal por natureza, ou o louvor os outros por causa da sua espécie superior. Pois se há peixes maus e bons, a causa não é a sua alma de peixe, mas o fato que a Palavra conhece quando ela diz: “Que as águas produzam répteis vivos!” e também quando “Deus fez os monstros marinhos e todos os seres rastejantes que as águas produziram segundo a sua espécie”. Portanto, naquele momento, “todos os seres rastejantes” são “as águas que os produziram segundo a sua espécie”, sem que a sua alma tivesse a ver com isso. Agora, pelo contrário, nós mesmos somos responsáveis, se pertencemos a uma espécie boa e digna de entrar nos cestos de que o texto fala, ou bem a espécies más que merecem ser atiradas para longe; pois não é a nossa natureza que, em nós, é causa do mal, mas o nosso livre arbítrio que faz o mal sem coação. Da mesma forma, não é tampouco a nossa natureza que é causa da nossa justiça, como se ela fosse incapaz de pecado, mas é a palavra que recebemos que modela os justos: e de fato, quando se trata das espécies aquáticas, não é possível vê-las passar de uma má qualidade, enquanto espécie de peixes, para uma qualidade superior, nem, de melhores que eram, se tornarem mais más, enquanto que, quando se trata dos homens, sempre se pode ver os justos ou os maus se esforçarem para passar do mal para a virtude, ou bem se deixarem escorregar do progresso para a virtude à decadência para o mal.
Conversão para o bem ou para o mal
E é por isso que, em Ezequiel, a propósito daquele que se desvia da impiedade para observar os mandamentos divinos, está escrito: “E se o ímpio se desviar de todas as impiedades que cometeu”… e a continuação, até “… que ele se desvie do caminho da perversão e que viva”, e a propósito daquele que se deixa escorregar do progresso para o bem à decadência para o mal, está escrito: “Mas quando o justo se desvia da sua justiça e comete a injustiça…”, e a continuação, até “… nos pecados que cometeu, é lá que ele morrerá”. Ora! que nos digam, aqueles que tiram da parábola da rede a existência das naturezas de almas: “o ímpio” que, em seguida, “se desvia de todas as impiedades que cometeu”, “observa todos os mandamentos” do Senhor, e pratica “a justiça e a misericórdia”, qual era a sua natureza, quando ele era ímpio? Certamente não aquela que merece o louvor. Mas se ela era censurável, qual natureza se lhe atribuiria razoavelmente, quando ele “se desvia de todas as impiedades que cometeu”? Pois se a sua natureza era má, por causa da sua primeira atitude, como ele se melhorou? Mas se ela era boa dada a sua conduta ulterior, como, com esta boa natureza, ele era ímpio? Se encontrará no mesmo embaraço a propósito do “justo que se desvia da sua justiça” e que “comete a injustiça caindo em todas as impiedades…”. Pois antes de se desviar da justiça, vivendo na prática das obras justas, ele não tinha uma natureza má: com efeito uma natureza má não viveria na justiça, já que “uma má árvore — o mal — não pode produzir bons frutos” — os da virtude. Mas, por outro lado, se a sua natureza era boa e imutável, ele não se teria desviado do bem, depois de ter se comportado como homem justo, “abandonando a sua justiça”, para “cometer a injustiça, caindo em todas as impiedades que cometeu”.
Isto posto, é preciso pensar que “o reino dos céus” é comparado “a uma rede lançada no mar e que recolhe toda espécie de peixes”, para mostrar a diversidade do livre arbítrio nos homens, pois eles manifestam as maiores diferenças, de modo que se realiza a expressão: “ele traz (homens) de toda espécie”, merecendo louvor ou censura, conforme estejam inclinados às formas das virtudes ou às dos vícios.
A rede são as Escrituras
E é ao entrelaçamento variado de uma rede que o reino dos céus é comparado, pois elas são tecidas de pensamentos diversos e variados, as Escrituras antigas e novas. Da mesma forma que os peixes capturados pela rede são descobertos ora num lugar desta rede, ora em outro, e cada um sob a malha que o dominou, da mesma forma descobriria também, a propósito daqueles que vieram para a rede das Escrituras, que alguns foram dominados pelo entrelaçamento profético, por exemplo o de Isaías, em tal de seus textos, ou de Jeremias ou de Daniel, outros por aquele da Lei, outros por aquele do Evangelho, e outros pelos escritos do Apóstolo. No início, com efeito, quando alguém é pego pela Palavra ou parece sê-lo, é por uma parte somente do conjunto da rede que ele é retido. Mas não é absurdo pensar que alguns dos peixes pegos são prisioneiros de todo o entrelaçamento da rede das Escrituras, e que, retidos de todos os lados e dominados, incapazes de fugir, mas, por assim dizer, escravizados por toda parte, eles não são mais livres para escapar da rede. Esta rede foi “lançada no mar”, na vida dos homens do universo inteiro, agitada pelas ondas, (nas quais eles são balançados), nadando entre as realidades salobras da vida. Mas esta rede, antes do nosso Salvador Jesus, não era totalmente acabada: faltava com efeito ao entrelaçamento da lei e dos profetas, aquele que disse: “Não creiais que vim para abolir a lei ou os profetas; não vim para abolir, mas para acabar.” E o entrelaçamento da rede foi acabado nos evangelhos e nos ensinamentos do Cristo transmitidos pelos Apóstolos. Eis, portanto, por que “o reino dos céus é semelhante a uma rede, lançada no mar, que recolhe toda espécie de peixes”.
O juízo final
Mas, além do que acabamos de dizer, o texto: “Recolhendo toda espécie de peixes” pode significar a chamada das nações de toda raça. Aqueles que estão a serviço “da rede lançada no mar”, é o Senhor da rede, Jesus-Cristo, assim como os anjos que se aproximam para servi-lo, e que não retiram a rede do mar para a arrastar, longe dele, na margem das realidades estrangeiras a esta vida, se a rede não estiver cheia, ou seja se “o pleroma das nações” não entrou nas suas malhas. Mas quando ele entrou, então eles a puxam para longe das realidades de cá, a levam sobre o que é representado pela margem: lá se porão a trabalhar aqueles que a puxaram e que, sentados ao longo da margem onde eles estarão instalados, colocarão cada um dos bons peixes pegos na rede, no lugar que lhe cabe no que é chamado aqui de seus cestos, e, aqueles que estão em disposições contrárias e chamados de maus peixes, eles os atirarão para fora. Este “fora”, é a fornalha de fogo, segundo a interpretação do Salvador: “Assim será na consumação do século: chegarão os anjos que separarão os maus do meio dos justos, e os atirarão na fornalha de fogo.” Além disso é preciso observar que, já, pela parábola do joio e a precedente similitude, aprendemos que os anjos devem receber a missão de julgar e separar os maus dos justos, pois é dito mais acima que “o Filho do homem enviará os seus anjos e (que) eles recolherão, no seu reino, todos os escândalos e aqueles que cometem a impiedade, para os atirar na fornalha de fogo: lá haverá choro e ranger de dentes”. Aqui é dito que “virão os anjos, que separarão os maus do meio dos justos e os atirarão na fornalha de fogo”.
Superioridade dos santos anjos sobre os homens
Eis o que contradiz a opinião de alguns, para quem os anjos, mesmo santos, são inferiores aos homens salvos no Cristo. Como, com efeito, poderíamos comparar aqueles que são atirados pelos santos anjos nos cestos àqueles que os atiram nestes cestos, já que eles são colocados sob a sua autoridade? Dizemos isso, além disso, sem ignorar que alguns anjos, aos quais uma tal missão não foi confiada — e ainda não todos —, são inferiores aos homens que serão salvos no Cristo; pois nós também lemos o texto: “sobre as quais os anjos desejam se debruçar”, onde não é dito: “todos os anjos”. Sabemos também que “julgaremos os anjos”, sem que seja dito: “todos os anjos”.
Há maus na rede
Depois desta explicação sobre a rede e aqueles que se encontram na rede, quem quer que queira que antes “da consumação do século”, e sem esperar que “os anjos venham separar os maus do meio dos justos”, não haja, sob a rede, “maus de toda espécie”, parece não ter compreendido a Escritura e desejar o impossível. Não sejamos, portanto, surpreendidos, se, antes “da separação dos maus do meio dos justos”, pelos anjos delegados a esta tarefa, vemos também os maus presentes em grande número nas nossas assembleias. Mas possam eles não ser mais numerosos que os justos, aqueles que serão atirados “na fornalha de fogo”!
É um bem ser capturado na rede
Além disso, já que dissemos, ao começar, que a interpretação das parábolas e das similitudes não se prende a todos os detalhes destas parábolas e destas similitudes, mas somente a alguns, devemos também demonstrar, na continuação da nossa exposição, que, quando se trata dos peixes, no que concerne à sua vida, é uma desgraça que lhes acontece quando são descobertos na rede — pois é da vida que a sua natureza lhes deu que eles são privados, e, que sejam colocados nos cestos ou atirados para longe, não há para eles destino mais funesto que o de perder a sua vida de peixes. Ao contrário, segundo a interpretação da parábola, é uma desgraça se encontrar no mar e não entrar na rede para ser colocado nos cestos com os bons. Da mesma forma, os peixes de má qualidade, se livram deles e os atiram para longe, mas os maus que a similitude proposta concerne, são “atirados na fornalha de fogo”, a fim de que o que Ezequiel escreveu a respeito da fornalha chegue a eles também: “E a palavra de Deus me chegou dizendo: Filho do homem, eis, que para mim todos os habitantes da casa de Israel se tornaram uma mistura de latão e de ferro…, e a continuação, até: … e sabereis que eu, o Senhor, derramei a minha cólera sobre vós.”
