Pátria (OCM)
E aconteceu que, quando Jesus terminou estas parábolas, ele saiu daquele lugar. E, chegando à sua pátria…'. Já que examinamos mais acima se, quando Jesus falava às multidões, se tratava de parábolas, e de similitudes quando ele falava aos discípulos, e já que todas as observações que fizemos a respeito desta questão, como penso, não são de se desprezar, é preciso reconhecer que elas parecerão contraditas por estas palavras que visam não somente as parábolas, mas também o que nomeamos similitudes: “E aconteceu que, quando Jesus terminou estas parábolas, ele saiu daquele lugar.” Também nos perguntamos se é preciso rejeitar todas estas palavras (como inautênticas), ou distinguir duas espécies de parábolas, uma endereçada às multidões e a outra reservada aos discípulos, ou mesmo considerar o termo de “parábola” como um homônimo, ou fazer o trecho “aconteceu que, quando ele terminou estas parábolas”, se referir apenas às parábolas que precedem as similitudes. Pois, por causa das palavras: “A vós, é dado conhecer os mistérios do reino dos céus, aos outros é em parábolas…”, é impossível dizer que tenha sido aos discípulos, pois eles não são “gente de fora”, que, nestas parábolas, o Salvador se dirigiu. Disso resulta que ou bem o trecho: “Aconteceu que, quando Jesus terminou estas parábolas, ele saiu daquele lugar”, se refere às parábolas precedentes, ou bem que a palavra “parábola” é um homônimo, ou que há duas espécies de parábolas, ou que não são de modo algum parábolas, o que chamamos de similitudes.
A pátria de Jesus
Observe que é fora da sua pátria que ele fala em parábolas e somente “quando ele as terminou, que ele saiu daquele lugar para ir à sua pátria, onde ele os ensinava na sua sinagoga”. Marcos diz por seu lado: “E ele foi à sua pátria e os seus discípulos o seguem.” Convém, portanto, se perguntar, diante deste texto, se ele designa Nazaré, como a sua pátria, ou Belém: Nazaré, pois “ele será chamado Nazareno”, Belém já que foi lá que ele nasceu. Eu me pergunto também se, embora os evangelistas pudessem dizer: ele foi a Belém, ou ele foi a Nazaré, não o fizeram, mas falaram “da sua pátria”, para dar algum ensinamento espiritual nesta passagem que diz respeito à sua pátria, ou seja a Judeia inteira, na qual ele foi desprezado, segundo a palavra: “Um profeta só é desprezado na sua pátria.” E se se observa que Jesus-Cristo, “escândalo para os Judeus”, entre os quais, até os dias de hoje, ele é perseguido, é “proclamado entre as nações onde se crê nele”, pois “a sua palavra correu até os confins do mundo”, se perceberá que Jesus, na sua pátria, não era honrado, mas que entre os “estranhos às alianças”, as nações, ele é honrado. Quais ensinamentos ele dava, quando falava na sua sinagoga? os evangelistas não o escreveram, contudo eles dizem que eram tão cheios de grandeza e de beleza “que todos ficavam estupefatos”; é provável também que o que ele disse estava acima do que eles escreveram. No entanto é na sua sinagoga que ele ensinava, pois ele não se separava dela, nem a rejeitava.
A família de Jesus
Quanto à exclamação: “De onde lhe vem esta sabedoria?” ela mostra claramente a sabedoria superior e brilhante das palavras de Jesus, que mereceu o elogio: “E há aqui mais que Salomão.” E os milagres que ele realizou eram maiores que os de Elias e Eliseu, maiores até mesmo que os, mais antigos, de Moisés e de Josué filho de Num. Eles diziam, estas pessoas que se espantavam, pois não sabiam que ele tinha nascido de uma virgem ou não o criam, mesmo se lhes dissessem, mas supunham que ele era filho de José o artesão: “Não é ele o filho do artesão?” E cheios de desprezo por tudo o que parecia ser a sua mais próxima parentela, eles diziam: “A sua mãe não se chama Maria, e os seus irmãos, Tiago, José, Simão e Judas? E as suas irmãs não estão todas entre nós?” Eles o tomavam, portanto, pelo filho de José e de Maria. Quanto aos irmãos de Jesus, alguns pretendem, apoiando-se no evangelho intitulado “segundo Pedro”, ou no livro de Tiago, que eles seriam os filhos de José, nascidos de uma primeira mulher que ele teria tido antes de Maria. Os defensores desta teoria querem salvaguardar a crença na virgindade perpétua de Maria, não aceitando que este corpo, julgado digno de estar a serviço da palavra dizendo: “O Espírito de santidade virá sobre ti e o poder do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra”, conhecesse o leito de um homem, depois de ter recebido “o Espírito de santidade e o poder descido das alturas, que a cobriu com a sua sombra”. Para mim penso que é razoável ver em Jesus as primícias da castidade viril no celibato, e em Maria as da castidade feminina; seria com efeito sacrilégio atribuir a uma outra que ela estas primícias da virgindade.
Tiago, é aquele de quem Paulo diz, na sua Epístola aos Gálatas, que ele o visitou, pois ele escreve: “Não vi nenhum dos apóstolos, a não ser Tiago, o irmão do Senhor.” — Tal foi o brilho de que Tiago brilhou, no meio do povo, pela sua santidade, que Flávio Josefo, o autor das Antiguidades Judaicas em vinte volumes, querendo estabelecer a causa das provações que o povo judeu sofreu e que resultaram na destruição do templo, dizia que tudo isso lhes tinha acontecido porque Deus, na sua cólera, os punia pelo que tinham ousado fazer a Tiago, o irmão de Jesus, que se chama Cristo. E “o que há de espantoso”, é que, embora não tendo admitido que o nosso Jesus era o Cristo, ele não tenha por isso deixado de render testemunho à santidade tão extraordinária de Tiago. Ele diz também que o povo cria ter suportado estes sofrimentos por causa de Tiago. Judas, por seu lado, escreveu uma epístola que só tem alguns versos, mas que é cheia de palavras eficazes da graça celestial; no seu prólogo ele disse: “Judas, servo de Jesus-Cristo e irmão de Tiago”. Sobre José e Simão nós, quanto a nós, não descobrimos nada.
Jesus é um ser à parte
As palavras: “E as suas irmãs não estão todas entre nós?” me parecem ter o seguinte significado: a sabedoria delas é a nossa, não a de Jesus, e não há nada nelas que nos seja estranho, cuja compreensão seja difícil, como em Jesus. É possível que através destas palavras se manifeste uma dúvida sobre a natureza de Jesus, que não seria um homem, mas um ser superior, já que, embora sendo, como eles criam, filho de José e de Maria, embora tendo quatro irmãos, assim como também irmãs, ele não se parece com nenhum dos seus próximos, e que, sem ter recebido instrução, sem ter tido mestre, ele atingiu um tal grau de sabedoria e de poder. E de fato, eles dizem em outro lugar: “Como este conhece as letras, sem ter estudado?” Este texto se parece com o que é dito aqui. Contudo aqueles que falavam assim, cheios de uma tal dúvida e de um tal espanto, longe de crer, se escandalizavam a respeito dele, como se os olhos da sua inteligência estivessem escravizados por poderes dos quais ele devia triunfar sobre a madeira, no momento da sua paixão.
O profeta rejeitado da sua pátria Então Jesus lhes disse: “Um profeta só é desprezado na sua pátria.” A questão é saber se esta palavra tem um sentido geral e se aplica a todo profeta, significando que cada um dos profetas só foi desprezado na sua própria pátria e não que todos aqueles que foram desprezados o foram (também) na sua pátria, ou se, porque estas palavras foram pronunciadas a propósito de um caso único, elas se referem apenas a um profeta. Ora se elas se aplicam apenas a um só, o que já dissemos basta, já que aplicamos este texto ao Salvador. Mas se há aqui um sentido geral, a história o contradiz, pois Elias não foi desprezado em Tisbe de Gileade, nem Eliseu em Abel-Meolá, nem Samuel em Ramataim, nem Jeremias em Anatote e contudo estas palavras permanecem totalmente verdadeiras, num sentido alegórico. É preciso, com efeito, interpretar a pátria deles como a Judeia, os seus próximos, como este povo de Israel, e a sua casa, talvez, como o seu corpo; pois todos foram desprezados na Judeia pelo “Israel segundo a carne”, quando eles estavam ainda na sua vida corporal, como está escrito, nos Atos dos Apóstolos, sob forma de censura ao povo: “Qual dos profetas, com efeito, os vossos pais não perseguiram? Eles mataram os profetas que anunciavam a vinda do Justo.” E Paulo, na primeira Epístola aos Tessalonicenses, disse da mesma forma: “Pois vós, irmãos, vos fizestes os imitadores das Igrejas de Deus que estão na Judeia, no Cristo Jesus, pois vós suportastes, da parte dos vossos próprios compatriotas, os mesmos sofrimentos que os Judeus lhes fizeram suportar, que mataram o Senhor Jesus e os profetas, que nos perseguiram, que desagradam a Deus e são os inimigos de todos os homens.” Portanto “um profeta não é desprezado” entre as nações: ou bem, com efeito, elas o ignoram totalmente, ou bem, o tendo reconhecido e acolhido, elas honram o profeta. É o mesmo para os profetas da Igreja. Assim os profetas são desprezados: primeiro, eles foram perseguidos pelo povo, segundo o sentido histórico, em seguida a sua profecia não encontrava nenhum crédito no povo. Pois se eles criam em Moisés e nos profetas, eles creriam no Cristo que demonstrou que é lógico, para quem crê em Moisés e nos profetas, crer no Cristo, e para quem não crê no Cristo, não crer em Moisés. Além disso, da mesma forma que é dito que o pecador “ao transgredir a lei, despreza a Deus”, da mesma forma, ao se recusar a crer naquele que é profetizado, se despreza o profeta, pelo fato de que não se dá fé às suas profecias.
Os sofrimentos dos profetas
Mas é útil recorrer à história e ler nela os sofrimentos que Jeremias suportou entre o povo e de que ele disse: “E eu disse: não falarei mais e não nomearei mais o nome do Senhor”, e ainda em outro lugar: “Fui continuamente objeto de riso.” E o que lhe fez sofrer aquele que reinava então sobre Israel, está igualmente escrito na sua profecia. De Moisés também, está escrito que, várias vezes, as pessoas do seu povo vieram para lhe atirar pedras, e a sua pátria, para ele, não é alguma região pedregosa mas aqueles que o tinham seguido, o povo, entre os quais, ele também, não foi honrado. Isaías foi serrado ao meio pelo povo, a história nos diz. E se se desconfia da história porque ela se baseia num Isaías apócrifo, que se dê confiança ao que está escrito na Epístola aos Hebreus, nestes termos: “Eles foram apedrejados, eles foram serrados, eles foram provados.” Com efeito as palavras: “Eles foram serrados” se referem a Isaías, da mesma forma que o trecho: “eles pereceram pela morte da espada”, se aplica a Zacarias, assassinado “entre o santuário e o altar”, como nos ensinou o Salvador, apoiando com a sua autoridade, no que eu creio, uma Escritura que não faz parte dos livros comumente recebidos, mas que é provavelmente apócrifa. Eles foram “desprezados” também “na sua pátria”, entre os Judeus, quando “eles erraram sob peles de carneiro ou de cabra, privados de tudo, oprimidos”, e a continuação. Pois “todos aqueles que querem viver, em toda piedade, no Cristo Jesus serão perseguidos”. Sem dúvida Paulo sabia que um “profeta” não obtém honra “na sua própria pátria”, ele que pregou o Logos um pouco por toda parte, mas não o pregou em Tarso. E os Apóstolos, pela mesma razão, abandonaram Israel, executando a ordem do Salvador: “Ensinai todas as nações”, e “sereis as minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e a Samaria, e até os confins da terra”. Claro que eles cumpriram esta ordem na Judeia e em Jerusalém; mas já que um “profeta não obtém honra na sua própria pátria”, e como os Judeus recusaram acolher a palavra, eles foram “para as nações”. Pergunte-se, além disso, se, por causa da predição: “Derramarei do meu espírito sobre toda carne e eles profetizarão”, que foi realizada depois da vinda do Salvador nas igrejas saídas da gentilidade, se pode dizer que aqueles que eram antes “do mundo”, e que, porque creram, “não são mais do mundo”, vivendo “na sua própria pátria”, que é o mundo, e que, depois de terem recebido o Espírito-Santo, profetizaram, longe de receber honra, são desprezados. É por isso que bem-aventurados são eles, quando sofreram os mesmos sofrimentos que os profetas, segundo a palavra do Salvador: “Os pais deles agiram com efeito da mesma maneira em relação aos profetas.” Se alguém presta uma justa atenção a estas palavras, e se acontecesse que, porque ele vive generosamente e censura os pecadores, ele fosse odiado e que se conspirasse contra ele, sabendo que ele é perseguido e injuriado “pela justiça”, não apenas não sentirá nenhuma tristeza, mas até mesmo “se regozijará, exultará”, persuadido de que em troca ele possui “um bom salário nos céus”, o tendo daquele que o comparou aos profetas, pois eles sofreram os mesmos sofrimentos. É, portanto, o desprezo, entre o mundo e os pecadores irritados pela sua vida de justiça, que deverá suportar aquele que procura imitar a vida dos profetas e pôde acolher o espírito que estava neles.
A fé e o milagre
O momento chegou de estudar a passagem: “Lá, ele não fez muitos milagres, por causa da incredulidade deles.”
Estas palavras nos ensinam que os milagres se produziam no meio dos crentes, pois “a quem tem se dará e ele superabundará”, enquanto que entre os incrédulos, os milagres não somente não agiam, mas, como Marcos escreveu, não podiam nem mesmo agir. Preste atenção, com efeito, a estas palavras: “Ele não pôde fazer lá nenhum milagre”; de fato ele não disse: “Ele não quis…”, mas “ele não pôde…”, porque sobrevém, sobre o milagre em vias de agir, uma colaboração eficaz vinda da fé daquele sobre quem o milagre age, e que a incredulidade impede esta ação. Também — observe-o — àqueles que disseram: “Por que razão não pudemos expulsá-lo?” ele respondeu: “Por causa da vossa pouca fé”, e, a Pedro que começava a afundar, foi dito: “Homem de pouca fé, por que duvidaste?” Ao contrário a hemorroíssa, sem ter pedido a sua cura, dizia a si mesma simplesmente que “se ela tocasse a franja do seu manto”, ela seria curada, e ela o foi imediatamente; e o Salvador reconhece este modo de cura, quando ele lhe diz: “Quem me tocou? pois eu soube que um poder saía de mim.” Da mesma forma que, quando se trata dos corpos, alguns exercem uma atração natural sobre outros, como a pedra imantada sobre o ferro e o que se chama de nafta sobre o fogo, da mesma forma uma tal fé atrai talvez o milagre divino; é por isso que foi dito também: “Se tiverdes uma fé como um grão de mostarda, direis a esta montanha: ‘Desloca-te daqui para ir para lá, e ela se deslocará.” Mas Mateus e Marcos, me parece, quiseram nitidamente estabelecer a superioridade do poder divino, capaz de agir mesmo no meio da incredulidade, sem contudo ter o mesmo poder que diante da fé daqueles que se beneficiam do milagre, quando o primeiro disse não que “ele não fez milagres, por causa da incredulidade deles”, mas que “lá ele não fez muitos milagres”, enquanto que Marcos, quando disse: “Ele não pôde fazer naquele lugar nenhum milagre”, não parou por aí mas acrescentou: “a não ser que ele impôs as mãos a alguns doentes e os curou”, pois o poder que está nele triunfa da incredulidade mesmo nestas condições.
A meu ver, da mesma forma que, quando se trata dos bens materiais, o trabalho do solo não pode bastar para preparar a colheita se não colaborar com ele a semente que se fecha nele e mais ainda o meio que a contém, segundo a vontade daquele que organiza e realiza isso como ele entende, nem tampouco este meio que a contém bastaria sem o trabalho do solo — ou antes, a Providência não faria levantar da terra as plantas que devem germinar, sem que o solo tenha sido trabalhado, pois ela só o permitiu uma vez quando disse: “Que a terra faça germinar as plantas para pastagens, a semente que semeia segundo a sua espécie e a sua semelhança”, — da mesma forma a energia miraculosa, sem a fé do doente, não manifesta a sua eficácia em vista da cura, nem tampouco a fé, qualquer que seja a sua qualidade, o consegue sem o poder divino. O que está escrito da sabedoria, se aplicará à fé e às virtudes particulares, transpondo o texto da seguinte maneira: “Com efeito, mesmo se alguém é perfeito — em fé — entre os filhos dos homens, se lhe falta o poder que vem de ti, ele será contado por nada”, ou bem “se ele é perfeito — em inteligência — entre os filhos dos homens, se lhe falta a inteligência que vem de ti, ele será contado por nada”, ou bem: “se ele é perfeito — em justiça ou nas outras virtudes —, se lhe falta a justiça e as outras virtudes que vêm de ti, ele será contado por nada.” Portanto “que o sábio não se glorie da sua sabedoria, nem o forte da sua força”; pois o que é digno de louvor não é nosso, mas é um “dom de Deus”: a sabedoria que vem dele, a força que vem dele, e da mesma forma para as outras virtudes.
