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Vontade de Deus (COP)
//Henri Crouzel – Orígenes e Plotino (COP)//
Capítulo I: Pai em Orígenes e Uno em Plotino
[tabby title=“PLOTINO” “Para o Uno não há bem algum nem vontade de bem algum”. De fato, como vimos, o Bem não é bom para si mesmo e portanto não tem desejo. Há nele, porém, uma vontade que não se distingue de seu ato, logo de si mesmo. Um tratado inteiro, o trigésimo nono, intitulado “Sobre o voluntário (hekousiou) e a vontade (thelêmatos) do Uno”, é dedicado a esta questão. No capítulo 1, o problema é colocado sobre a onipotência dos “deuses” e sobretudo do Uno. Não se pode compreendê-la no Uno como uma mistura de potência e ato, no sentido aristotélico da distinção, pois não há em Deus potência desse tipo - ele é ato sem potência. Mas Plotino deixa de lado por enquanto essa questão e investiga o livre arbítrio (eph'hêmin, ep'autô, autexousion) do homem. O problema da conciliação entre a vontade divina e o livre arbítrio do homem se impõe fortemente a Plotino, como se impunha também aos cristãos de seu tempo e como se imporia em toda a história do cristianismo. Quem não tem em si uma mistura de ato e potência é livre: não se trata então de livre arbítrio, mas de algo que lhe é superior. Se é do Bem que recebemos nosso livre arbítrio, como ele não teria a liberdade de querer que nós temos? A opinião que recusa ao Uno essa liberdade é desenvolvida, qualificada de “discurso temerário”. Ser livre é ser senhor de sua ação, e este é eminentemente o caso dos seres eternos. Ora, o Bem não existe por acaso e, se age segundo sua natureza, nem por isso deixa de ser livre. Sua solidão não vem do fato de que seria impedido por outro, mas de si mesmo. Não se pode negar sua liberdade sob pretexto de que é o Bem porque permanece em si mesmo sem se mover para outra coisa. O que é como sua substância se confunde com o que é como seu ato: os dois “como” exprimem o fato de que, no que concerne ao Uno, esses termos são apenas analógicos. Encontra-se frequentemente a mesma expressão (hoion) em toda a obra de Plotino quando se trata do Uno: ela exprime ao mesmo tempo o caráter impróprio e analógico do que se diz dele. O livre arbítrio não é no Uno um acidente. Temos dificuldades para nos expressar sobre isso, pois representamos a liberdade do Uno a partir da das criaturas, sem poder falar dela adequadamente. Em todo caso, sua existência não provém do acaso, e não é possível que o que vem do acaso ou por acidente seja o princípio de todas as coisas. O princípio deve ser melhor que tudo o que dele deriva. O Uno não está submetido à necessidade, que só se encontra no que está depois dele. Não é fácil resumir o raciocínio que segue. Digamos, interpretando talvez um pouco, que o Uno se põe a si mesmo sem que se possa falar de necessidade ou acidente no modo como o faz: essa afirmação se justifica por sua absoluta espontaneidade. Ele é o Bem. O acaso é incompatível com o princípio de toda razão, ordem, definição que é a Inteligência: com mais forte razão com aquele que está antes da Inteligência e é melhor que ela. Não há nada antes do Bem, ele é o primeiro, não há portanto nada a buscar além dele: ele é o melhor. A necessidade vem dele e não o governa. Mas não se pode dizer nada de uma realidade que tem a existência sem tê-la recebido: o princípio não tem princípio. Não há portanto o que buscar, seria em vão. Plotino denota nesse tipo de questão uma representação local implícita: de onde vem ele? Ora, se ele não tem nem lugar, nem quantidade, nem qualidade, nem forma, mesmo inteligível, nada absolutamente chega ao Bem por acidente. Se pudéssemos nos expressar sobre isso em termos de teologia cristã, diríamos que Plotino se detém diante do “mistério” do Uno. Chega à mesma constatação a partir das ideias de substância (ousia) e ato. Não se pode dizer que sua substância o domina, pois ele é sua substância e seu ato: tudo isso não faz mais que um, ao contrário do que ocorre conosco. Na verdade, substância, vontade, ato são tudo um para ele: ele é completamente senhor de si. Os seres inferiores a ele buscam o bem, gostariam de ser o bem, mas ele não quer ser outra coisa que o que é, o Bem. Sua vontade se identifica com sua existência, ele é o que quer. Os capítulos seguintes exprimem sob diferentes aspectos as mesmas ideias. Assinalemos porém algumas questões colocadas: poderia ele se fazer diferente do que se fez? Para fazer o bem é preciso poder fazer o mal? É projetar sobre o Uno a condição imperfeita em que se encontra o homem, que pode produzir contrários, o que é antes sinal de impotência. O Uno, por sua substância, é inteiramente vontade, inteiramente Bem. Com efeito, o poder de escolher entre o bem e o mal, ou melhor, de escolher o mal contra o bem, é próprio do homem e manifesta uma deficiência da vontade. Deus é o Bem por sua própria natureza, que se identifica a sua vontade. Ao se pôr a si mesmo, se assim se pode falar, ele manifesta o Bem e os valores que se identificam com ele. O conhecimento desses valores pelo homem é consequência do desejo de Deus no homem. Mas o homem deve aderir por si mesmo a esses valores, e é por isso que possui o livre arbítrio. O objeto próprio do livre arbítrio e da vontade é o bem; fazer o mal é usar mal de seu livre arbítrio. Ao escrever isso, temos consciência de interpretar à nossa maneira o pensamento de Plotino, tentando dar conta dele. De qualquer forma, a identificação que Plotino faz entre o Uno e o Bem mostra que Deus mesmo é o critério dos valores. Ou, para responder a um falso problema que se colocou na história cristã da filosofia, o mundo que vem de Deus é pelo próprio fato de vir dele o melhor dos mundos, porque o ato divino é a norma de todo valor. Não cremos, ao escrever isso, estar muito longe do que Plotino exprime.
ORÍGENES
Fala-se muitas vezes da vontade de Deus no Peri Archon e no Contra Celso, e essa vontade é considerada frequentemente como uma realidade objetiva, sem que seja examinado como compreender essa faculdade de querer. Ela é atribuída igualmente ao Filho e ao Espírito. Ela se exerce na geração do Filho, na criação realizada por bondade, no governo do mundo a fim de prover ao bem dos homens, nas funções e nos nomes atribuídos aos anjos, na profecia e no apostolado dos discípulos: igualmente em numerosas citações de textos neotestamentários que falam da vontade de Deus ou de Cristo. A petição do Pai-Nosso - “Seja feita a tua vontade assim na terra como no céu” - poderia ter sido para Orígenes, no Tratado da Oração, ocasião de se exprimir sobre o modo de conceber a vontade de Deus. Mas a passagem que lhe é consagrada tem uma orientação mais pastoral e alegórica que metafísica, e as poucas outras citações de Mt 6,10 não nos ensinam nada sobre esse ponto. Para tentar adivinhar o que Orígenes pensa a esse respeito, é preciso reportar-se a seu tratamento dos antropomorfismos divinos. Eles exprimem realidades misteriosas, que não devem ser compreendidas humano modo: é preciso portanto abstrair de todas as limitações que comporta a condição humana com sua corporeidade, sua fragilidade, sua mobilidade. A vontade de Deus, tantas vezes afirmada pela Escritura e pelo próprio Orígenes, corresponde portanto a uma realidade. Mas não se deveria concluir do fato de que a geração do Filho é um ato da vontade divina que o Filho poderia não ter sido, pois seria então julgar a vontade divina sobre o modelo da vontade do homem. Para Orígenes como para Plotino, a vontade de Deus se identifica com seu ato, aqui a geração do Filho. Parece porém que a vontade de Deus tenha para Orígenes um conteúdo mais firme que para Plotino, pois a noção da personalidade divina é nele bem mais precisa. Não se trata apenas do que se exprime na criação e no funcionamento do mundo, mas também numa Providência em que Deus, voltado para sua criatura, se ocupa realmente dela, com o Filho e o Espírito. Por outro lado, a vontade de Deus é apresentada ao livre arbítrio do homem como um dever moral a cumprir. Tudo isso se encontrará quando tratarmos do homem. Nada se faz sem a Providência de Deus, mas muitas coisas se fazem sem sua vontade. Essa é a consequência do livre arbítrio com que Deus dotou o homem. Ele fez o homem livre para que pudesse aderir por si mesmo à vontade de Deus, mas o homem pode também não lhe obedecer: o pecado é a consequência lamentável do livre arbítrio. E mesmo nesse caso Deus respeita o livre arbítrio do homem: isso não é sem relação com a polêmica frequente de Orígenes contra a concepção que os montanistas faziam da inspiração profética. Orígenes não aceita que nesse caso o Espírito divino expulse a inteligência do profeta para tomar seu lugar e servir-se dele como de um simples instrumento. Deus não manipula o homem, mas respeita a inteligência e a liberdade daquele que criou inteligente e livre.
