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Platão e o conhecimento de Deus (HCOP)

Platão representa para Orígenes o auge do pensamento grego, o auge do pensamento humano fora da revelação: “ele não largava Platão”, diz Porfírio. Apenas a Bíblia supera Platão, pela distância incomensurável que separa a Palavra de Deus da dos homens. A influência de Platão sobre Orígenes não pode ser comparada a nenhuma outra fora da Escritura, salvo talvez à de Fílon, por quem lhe chegam ainda elementos platônicos, misturados a elementos estoicos e já confrontados com a revelação judaica. Sua visão de mundo é profundamente informada pelo exemplarismo de Platão, pela representação de um universo em dois planos, o celeste e o terrestre, o modelo e a imagem: ele é encontrado em sua cristologia, sua antropologia, sua mística, sua ascese e sua moral; ele exerce talvez alguma influência em sua tendência ao subordinacionismo. O platonismo parece responsável pelo ponto mais aberrante do pensamento origeniano, o único que é claro a partir da própria obra do alexandrino, a hipótese da preexistência das almas: ele a utilizou, no entanto, como P. Nemeshegyi mostrou, com um objetivo cristão, para salvar a bondade paterna de Deus dos ataques marcionitas, tirando do Criador a responsabilidade do mal e da desigualdade das condições humanas.

Platão falou de Deus melhor que todos os outros filósofos. Pode-se ler assim no Contra Celso textos admiráveis que Celso pretende opor ao cristianismo: Orígenes os aprova muitas vezes, os contradiz algumas vezes. Essa discussão é conduzida em um contexto mesoplatônico: pode-se comparar as interpretações de Celso e de Orígenes com as de Albino, de Numênio, de Máximo de Tiro e também de Plotino. As aprovações e as críticas de Orígenes permitem ver o que lhe parece no platonismo assimilável ou inassimilável para um cristão.

Celso invoca um texto da Carta II: Todos os seres gravitam em torno do Rei do universo: ele é o objetivo de tudo e a causa de toda beleza. As realidades segundas gravitam em torno do segundo e as terceiras em torno do terceiro. A alma humana deseja aprender essas realidades e o que elas são, pois ela olha para o que tem parentesco com ela e nenhuma delas lhe é suficiente. Mas no que diz respeito ao Rei e ao que eu falei, não é o mesmo. A reação de Orígenes é à primeira vista bastante obscura: ele aproxima desse texto os serafins de Isaías, cujas asas escondiam a face e os pés de Deus e os querubins de Ezequiel, sobre os quais Deus era carregado; em seguida ele recusa se explicar mais a fundo por causa das insígnias. Suas exegeses permitem penetrar essa obscuridade: serafins e querubins são frequentemente interpretados como o Filho e o Espírito. É, portanto, a Trindade que ele lê nessa passagem e ele não é o primeiro a fazê-lo. Ele parece sobretudo preocupado em estabelecer que foi Platão quem copiou os profetas e não o contrário.

A respeito do mundo onde Deus reside ele cita o Fedro: Quem dentre nossos poetas cantou ou cantará dignamente o lugar supraceleste?… A realidade que é verdadeiramente sem cor, sem forma e intocável, aquela que apenas o piloto da alma, a inteligência, pode contemplar, e que é o objeto da verdadeira ciência, habita esse lugar. Isso concorda demais com sua visão de mundo para que Orígenes possa fazer alguma objeção: ele confirma, ao contrário, essas frases por textos das Escrituras.

O Deus platônico não criou os corpos. De acordo com Celso parafraseando o Timeu… Deus não fez nada de mortal, ele criou apenas os imortais. Os mortais são obra de outros seres. A alma é obra de Deus, o corpo tem outra natureza. O corpo do homem não difere em nada do de um morcego, de um verme ou de uma rã: é a mesma matéria e igualmente corruptível. Essa opinião se opõe à dos cristãos e dos estoicos para quem Deus é criador dos corpos. Orígenes tem de fato Deus como criador dos corpos e da matéria: ele fez tudo ex nihilo. Como tudo o que é sensível, o corpo é imagem das realidades celestes. É preciso ultrapassar o visível para atingir o que não se vê: ficar na imagem é o pecado supremo, que quebra o dinamismo natural da alma. Mas em si mesmo o corpo é bom, como todos os seres sensíveis, tais como Deus os fez. Se o mundo material é por um lado “o lugar onde a alma é maltratada, onde somos humilhados”, o estabelecimento de correção onde Deus colocou as almas após sua queda, o corpo é também o templo do Espírito Santo, o santuário onde a alma oficia como um sacerdote.

Platão falou de um Demiurgo, filho de Deus e organizador do mundo corporal, esboço, segundo Orígenes, do Logos cristão: (Celso) não quis relatar o que Platão disse em suas cartas e que nós mencionamos mais acima: aquele que organizou esse universo é o Filho de Deus. Ele teve medo de ser forçado pelo próprio Platão, de quem ele faz tão grande caso, a reconhecer que o Demiurgo desse universo é o Filho de Deus, que o Deus primeiro e universal é seu Pai. Trata-se da última frase da Carta VI: Esse Celso que pretende saber tudo e apresentou tantas passagens de Platão, passa em silêncio, voluntariamente eu creio, a palavra concernente ao Filho de Deus, dita por Platão na carta a Hérmias e Coriscos. Eis seus próprios termos: “Jurando pelo Deus do universo, chefe dos seres presentes e futuros, pai e senhor do chefe e da causa, a quem, se filosofamos verdadeiramente, conheceremos todos claramente, tanto quanto é possível aos homens bem-aventurados.” O Verbo tem para Orígenes um duplo papel na criação, o de executor ad extra da vontade do Pai e o de modelo, enquanto ele é Sabedoria, Mundo inteligível contendo as ideias e as “razões” dos seres. Mas, segundo o alexandrino, platônicos afirmam que o universo é deus, não o primeiro como os estoicos, mas o segundo ou o terceiro: este último deve ser a terceira hipóstase da tríade segundo Albino e Numênio, prefigurando a de Plotino, na dependência da Alma do mundo, segundo o Timeu.

O conhecimento de Deus e das realidades espirituais só é possível na luz que emana de Deus: Deus se encontra no meio dos objetos inteligíveis como o sol entre os visíveis. Assim fala Celso, inspirado pelo livro VI da República: Realidade (ousia) e devir (genesis) são um inteligível, o outro visível: do lado da realidade a verdade, do lado do devir o erro; a respeito da verdade a ciência (episteme), a respeito da verdade e do erro a opinião (doxa). Compreende-se o inteligível, vê-se o visível. A inteligência conhece o inteligível, o olho o visível. O que o sol é entre os objetos visíveis, não sendo nem o olho, nem a visão, mas o que permite ao olho ver, à visão existir, aos objetos visíveis serem vistos, a todo o sensível subsistir, e ao próprio sol ser olhado, aquele (Deus) o é entre os inteligíveis, não sendo nem a inteligência, nem a intelecção, nem a ciência, mas a causa que dá à inteligência de compreender, à intelecção de se produzir, à ciência de conhecer, a todos os inteligíveis, à verdade e à realidade elas mesmas de existirem; e ele está além de tudo, inteligível para uma potência inefável. Orígenes não tem nada a objetar.

Esse texto traduz apenas um dos aspectos da graça cristã, o único que o platonismo conheceu: para que essa luz, emanando de Deus e permitindo o conhecimento, seja a graça do cristianismo, é preciso representá-la como o dom de amor de uma pessoa livre e não, mais ou menos, como um resplendor que atinge necessariamente aquele que se coloca em certas condições. Orígenes marca nitidamente a oposição respondendo a uma frase do Timeu: O Criador e Pai do universo, é laborioso encontrá-lo, e, quando se o encontrou, impossível de falar dele a todos. Orígenes reconhece que essas palavras são nobres e não de todo desprezíveis: no entanto ele as contradiz. É “impossível” e não “difícil” encontrar Deus dignamente: o próprio Platão não o fez, o que manifesta sua idolatria; Nós, nós afirmamos que a natureza humana não é de forma alguma capaz de procurar Deus e de o encontrar em sua pureza, a menos que ela seja ajudada por aquele que ela procura. Encontra-se Deus quando se reconhece, depois de ter feito tudo o que está em seu poder, que se tem necessidade dele; então ele se manifesta a quem ele julga bom, na medida em que Deus pode ser conhecido por um homem e em que uma alma ainda ligada a um corpo pode conhecer Deus. Orígenes tem uma ideia plenamente cristã da graça, manifestada por muitos textos: uma pessoa divina ou um ser angélico só é visto se voluntariamente se faz ver; a atitude do cristão na espera do conhecimento não pode ser mais que a humildade. Ele deve fazer “tudo o que está em seu poder”, mas não há proporção entre esses esforços e um conhecimento que Deus lhe dará se ele quiser. Ao contrário, se para Platão é laborioso encontrar Deus, isso é possível para quem se empenha. A resposta de Orígenes não recusa um conhecimento natural de Deus: muito frequentemente ele fala, de acordo com Rom. i, 19 sq., daquele que os pagãos tiveram, subindo em direção a Deus a partir de sua criação. Mas ela já é uma revelação, de acordo com as próprias palavras do apóstolo: ela não pôde se fazer pelas únicas forças do homem, independentemente do dom de Deus.

Nesse texto do Timeu, Platão não diz claramente que Deus é inefável, mas apenas “que é impossível de falar dele a todos”. Orígenes responde: “Nós, nós dizemos que Deus é inefável e outras coisas com ele”: assim as “palavras inefáveis” ouvidas por Paulo segundo II Cor. xii, 4.

Finalmente, Celso prolonga assim a frase citada: Nós tomamos do inominável e do Primeiro uma certa ideia (epinoian) que o mostra, seja por síntese com outras coisas, seja por análise a partir delas, seja por analogia. A palavra epinoia significa que essa ideia de Deus ainda permanece bastante subjetiva. As três vias indicadas aqui por Celso se reencontram nos mesoplatônicos, por exemplo na Epitome de Albino. A primeira, por abstração (kat' aphaireisin) é análoga à dos geômetras, definindo o ponto por abstração de todo o resto: a análise de Clemente consiste da mesma forma em abstrair de Deus todo o sensível, tudo o que não lhe convém. A segunda via de Albino é a de analogia: em conformidade com o texto de Celso citado anteriormente, Deus está no meio dos inteligíveis como o sol entre os sensíveis. O terceiro processo segundo Albino é inspirado pela dialética do Banquete: subir da beleza dos objetos naturais à das almas e das realidades espirituais, em seguida à de Deus. A síntese mencionada por Celso não consistiria em reunir em Deus as qualidades encontradas nas criaturas levando-as ao seu mais alto grau de perfeição?

Em sua resposta, Orígenes trata com uma certa ironia esses procedimentos de geômetras, utilizados para “chegar até o limiar do Bem”. Hal Koch, no entanto, reencontrou nele as duas últimas vias de Albino e sua discussão com Celso sobre os nomes divinos mostra que ele não ignora as de afirmação e de negação, como elas serão nomeadas mais tarde. Mas ele está sobretudo preocupado em afirmar o mais fortemente possível diante dos pagãos, seus leitores, a necessidade da graça, dom voluntário da bondade divina: Mas o Verbo de Deus disse: “Ninguém conhece o Pai senão o Filho, e aquele a quem o Filho o revela”, por uma graça divina, que não se produz na alma sem a ação de Deus, mas é uma espécie de transporte divino (enthousiasmos): e assim ele afirma que Deus pode ser conhecido. E segundo toda verossimilhança, o conhecimento de Deus ultrapassa a natureza humana — é por isso que se encontram entre os homens tantos erros a esse respeito — mas a bondade de Deus, seu amor pelos homens, uma graça miraculosa e divina, permitiram que seu conhecimento chegasse àqueles que, segundo as previsões de sua presciência, teriam uma conduta digna desse benefício. O enthousiasmos é o sentimento místico que a alma experimenta quando ela percebe Deus, análogo à inspiração dos profetas.

O conhecimento chega à alma por uma iluminação súbita: a esse respeito Celso cita livremente a Carta VII: O Bem Supremo é inefável. Ele nasce em seguida a uma longa frequentação e subitamente, como uma luz que jorra do fogo e se acende na alma. Orígenes aprova: Quando nós ouvimos isto, nós o aceitamos, pois está bem dito. Foi Deus quem lhes revelou, como tudo o que eles disseram de bom. Sua única crítica é que a sublime intuição de Platão não foi útil a ninguém, nem mesmo a ele, que ela não o afastou da idolatria. Orígenes testemunha algumas vezes que ele teve a experiência dessas iluminações. Mas elas são inexprimíveis: Celso continua a citar a Carta VII: Se eu tivesse acreditado que fosse possível escrevê-lo e exprimi-lo para a multidão de forma satisfatória, o que poderíamos ter feito de mais belo nesta vida do que expor uma doutrina tão útil à humanidade e colocar sua natureza em plena luz para todos. Orígenes se pergunta se Platão teve intuições mais altas que as que ele deixou por escrito, o que é certamente o caso dos profetas.

Celso cita ainda um texto da Carta VII concernente ao conhecimento: Eu tenho a intenção de me estender mais longamente sobre essa questão: talvez um dos pontos que eu trato se tornará mais claro quando eu me tiver explicado. Uma razão séria de fato se opõe a que se tente escrever qualquer coisa em semelhantes matérias, uma razão já muitas vezes alegada por mim, mas que eu creio dever repetir ainda. Existem em todos os seres três elementos que permitem adquirir a ciência (episteme) deles, o quarto é essa ciência ela mesma e é preciso colocar em quinto lugar o objeto que é cognoscível e verdadeiro. Desses elementos o primeiro é o nome (onoma), o segundo o logos, o terceiro a imagem (eidolon), o quarto a ciência. A resposta de Orígenes é, diz H. Chadwick, “deliberadamente obscura”: A. Miura-Stange só vê nela uma logomaquia senil, que se preocupa apenas em opor a Celso palavras semelhantes que não têm muito sentido e M. Harl não a compreende mais. No entanto, esse texto se ilumina, quando se estudou o itinerário do conhecimento místico segundo o alexandrino: A isso nós diremos que o primeiro que é introduzido, antes de Jesus, é a Voz daquele que clama no deserto, João, análogo ao nome de Platão. O segundo depois de João, é aquele que ele mostra, Jesus, a quem se aplica a frase: “O Logos se fez carne”, análogo ao logos de Platão. Platão coloca em terceiro lugar o eidolon: mas nós, que empregamos essa palavra em outro sentido (ídolo), nós diremos mais claramente que se trata da marca (typon) das chagas que se forma em cada alma depois (a audição de) a Palavra (= do Logos), ou seja, o Cristo que está em cada um, provindo do Logos-Cristo. Aquele que o puder decidirá se o Cristo, Sabedoria que se encontra naqueles que nós consideramos como perfeitos, é essa ciência, análoga àquela que Platão coloca em quarto lugar. A primeira etapa, é o Antigo Testamento, sombra dos verdadeiros mistérios, lido na exegese alegórica que mostra o Cristo: ele é figurado por João Batista, Voz do Logos, Lâmpada da Luz, símbolo e auge da primeira aliança. A segunda é o Evangelho temporal, imagem e começo do Evangelho eterno: ele mostra o Verbo Encarnado em sua existência histórica. Mas ele só tem seus efeitos se ele se torna interior à alma e a leva em direção à visão do Evangelho eterno: ele forma com ele uma única realidade, mas o homem não é capaz na terra de perceber plenamente o segundo no primeiro. A terceira etapa é, portanto, expressa pelo grande tema origeniano do nascimento do Cristo em cada um, como em Maria, “o Cristo que está em cada um, provindo do Logos-Cristo”. Sua ocasião é a primeira audição pelo fiel da Palavra de Deus, o Verbo, quando ele ouve explicar a Escritura na “loucura da pregação”. A palavra “chagas” contém, parece, uma dupla alusão: primeiro a um outro tema espiritual de Orígenes, tirado do Cântico dos Cânticos, o do dardo e da ferida de amor; em seguida à Paixão de Cristo, cujos estigmas se imprimem no coração do crente, tirando o véu que está sobre a Lei. Mas esse Jesus interior cresce na alma, como ele cresceu em Maria: ele se torna então a “Sabedoria da qual se fala entre os perfeitos”, para a alma que subiu por sua ascensão espiritual a Montanha da Transfiguração, no auge da qual ela vê a divindade transparecer através da humanidade de Cristo, iluminando Moisés e Elias, dando seu sentido mais profundo à Lei e aos Profetas, a todo o Antigo Testamento. Nós temos aí, em um resumo impressionante, todo o itinerário do conhecimento místico segundo Orígenes. O texto platônico que o inspira mostra o laço que existe entre a anagoge origeniana, que se opera pela exegese espiritual, e a dialética de Platão, caminho que leva à contemplação das “verdadeiras” realidades.

Celso cita a respeito da sabedoria duas passagens de Heráclito: “Os costumes do homem não têm bom senso, mas os de Deus o têm” e “Um homem é reputado como um tolo diante de um deus, da mesma forma que uma criança diante de um homem.” Ele acrescentou uma palavra de Platão em sua Apologia por Sócrates: Quanto a mim, atenienses (é Sócrates quem fala), eu não tirei esse nome de sábio de outro lugar que não da sabedoria. De qual sabedoria se trata? De uma sabedoria humana provavelmente. Em verdade eu me arrisco a afirmar que sou sábio no que diz respeito a essa sabedoria. Mas Orígenes, que conhece seu Platão tão bem quanto Celso, junta a isso uma passagem da Carta VI: Erásto e Corisco — eu o digo apesar de minha velhice —, além da sabedoria das ideias, essa bela sabedoria, ainda precisam daquela que ensina a se guardar dos maus e dos injustos, assim como de uma certa força de defesa: eles são inexperientes, porque eles passaram uma grande parte de sua vida conosco, pessoas tranquilas e sem malícia. É por isso que eu pretendo que eles precisam desses apoios para não serem constrangidos a negligenciar a verdadeira sabedoria e a se dedicar mais do que convém à sabedoria humana que é necessária. A verdadeira sabedoria, a das ideias platônicas, é, portanto, oposta aqui ao bom senso prático, indispensável na condução da vida; as citações de Heráclito sublinhavam o abismo que separa a sabedoria de Deus (ou dos deuses) e a dos homens. Orígenes vê nisso a distinção paulina da sabedoria divina e da sabedoria humana, que é loucura aos olhos de Deus: A sabedoria divina, que é outra que a humana, é dada, embora ela seja verdadeiramente divina, pela graça de Deus àqueles que se tornaram aptos a recebê-la, sobretudo àqueles que, sabendo das diferenças que opõem essas duas sabedorias, dizem a Deus em suas orações: “Alguém pode bem ser perfeito entre os filhos dos homens: se tua sabedoria lhe falta, sua perfeição é sem valor. Nós sustentamos que a sabedoria humana é um meio de exercício para a alma, mas que o objetivo é a divina.” A sabedoria é para Orígenes a principal das denominações (epinoiai) do Verbo: os homens só a possuem por participação no Filho, no Espírito Santo, “matéria dos carismas”. É preciso se preparar para ela por uma vida de perfeição e de oração, meditando a Escritura. A noção de sabedoria não é para ele nitidamente distinta da de conhecimento: elas designam o mesmo estado de perfeição, por oposição ao terceiro dos carismas paulinos, a fé, mas a sabedoria exprime antes um estado da alma que permite conhecer as realidades divinas por conaturalidade. A interpretação origeniana do texto da Carta VI é uma transposição para o plano cristão da “bela sabedoria das ideias”, com a mesma insistência que anteriormente sobre a graça. Voltaremos ao papel de “exercício” devolvido à sabedoria humana.

Orígenes não hesita em afirmar, como se viu, que o platonismo participa um pouco do Logos de Deus e que, fazendo o homem subir do terrestre ao celeste, ele é compreendido na “sabedoria de Deus”. Aos que vão do visível ao inteligível, Deus se revelou, segundo Rom. 1, 19. Em outro lugar, o alexandrino fala, em um contexto ao mesmo tempo platônico e paulino, de “aqueles que contemplaram as realidades invisíveis de Deus e as ideias a partir das criaturas do mundo e dos objetos sensíveis, de onde eles sobem aos inteligíveis, para ver, não sem nobreza, sua potência eterna e sua divindade”. Tal é o movimento da dialética de Platão. Como Orígenes não estaria à vontade quando ele lê no Fédon — Platão a emprestou evidentemente de Isaías! — que as gemas daqui de baixo são uma emanação das pedras da terra dos bem-aventurados, ou essa passagem citada por Celso: Por causa de nossa fraqueza e de nossa lentidão nós não somos capazes de chegar até as regiões extremas do ar… e se nossa natureza pudesse suportar a contemplação, ela saberia o que são o verdadeiro céu e a verdadeira luz. Em sua República, Platão descreveu “uma imagem da cidade celeste…, mas eu não sei se ele teve tanto sucesso quanto Moisés e seus sucessores”: a organização política de Israel era de fato a figura e a profecia da Jerusalém celeste.

Os julgamentos de Orígenes sobre esses textos traduzem uma visão das coisas análogas. O místico Orígenes está à vontade no universo platônico e, ele lhe parece apto a fornecer um quadro à expressão de seu cristianismo. Certamente o conteúdo que ele derrama nele é bastante diferente: à dialética platônica ele substitui sua exegese e a ascensão mística que a segue. Sua interpretação muito acomodatícia do texto da Carta VII é a ilustração disso. A propósito da graça ele faz questão de marcar, e várias vezes, a distância que o separa de Platão: ela não é apenas a luz emanando de Deus, na qual a inteligência contempla os inteligíveis, mas o dom de amor de uma vontade livre, o ato de um Deus pessoal, o dos dois Testamentos. Orígenes não tem uma palavra precisa para designar a pessoa: se ele tivesse inventado uma, muitas querelas teológicas posteriores teriam sido evitadas. Não se pode dizer em consequência que ele tenha um conceito, uma ideia clara. Mas toda sua obra manifesta que ele tem o sentido da personalidade divina, assim como da humana. Esse aporte da tradição judeu-cristã ao pensamento filosófico o distingue de toda a linhagem platônica, mesmo de Plotino, seu condiscípulo, com quem ele tem tantos pontos em comum.

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