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Tauler (JM) – Sermão para festa de Natal

Celebra-se hoje, na santa cristandade, um triplo nascimento, no qual todo cristão deveria encontrar uma alegria e felicidade tão grandes que o arrebatassem de si mesmo. Há motivo para transportá-lo em amor, gratidão e júbilo. Um homem que nada sentisse disso deveria tremer. O primeiro e mais sublime nascimento é o do Filho único, gerado pelo Pai celestial na essência divina, na distinção das Pessoas. O segundo nascimento celebrado hoje é o que se realiza por meio de uma mãe que, em sua fecundidade, conservou a pureza absoluta de sua virginal castidade. O terceiro é aquele pelo qual Deus, todos os dias e a toda hora, nasce verdadeiramente, de modo espiritual, pela graça e pelo amor, numa alma boa. Esses são os três nascimentos que hoje se celebram em três missas. A primeira missa é cantada na obscuridade da noite. Começa assim: “O Senhor me disse: Tu és meu Filho, hoje te gerei.” Esta missa representa o nascimento oculto que se opera no mistério e segredo desconhecido da divindade. A segunda missa inicia com as palavras: “Hoje brilhará sobre nós a luz”; ela nos recorda o esplendor da natureza humana divinizada, e por isso é celebrada em parte durante a noite, em parte durante o dia, símbolo de um nascimento em parte cognoscível, em parte incognoscível. A terceira missa é cantada em pleno dia. Eis seu intróito: “Uma criança nos nasceu, um Filho nos foi dado.” Ela nos faz pensar no amabilíssimo nascimento que, todos os dias e a cada instante, deve realizar-se e se realiza em toda alma boa e santa, se esta lhe dedicar amorosa atenção. Pois, para sentir e tomar consciência desse nascimento em nós, é necessária uma concentração e um recolhimento de todas as nossas faculdades. Então, nesse nascimento, Deus se torna tão nosso, dá-se a nós com tal propriedade, que ninguém jamais possuiu algo com tão íntima posse. A Escritura não diz: “Uma criança nos nasceu, um Filho nos foi dado”? Ele é nosso, inteiramente nosso, mais nosso que qualquer outro bem. Ele nasce a cada instante e sem cessar em nós. É desse nascimento, recordado na última missa, que queremos falar primeiramente.

Para que esse nobre nascimento alcance em nós toda sua nobreza e fecundidade, devemos considerar o caráter próprio do primeiro nascimento, aquele em que há um Pai gerando seu Filho na eternidade. A superabundância da riqueza transcendente da Bondade divina não permitia que Deus se encerrasse em Si mesmo; Ele devia difundir-Se e comunicar-Se, pois, segundo Boécio e Santo Agostinho: “A natureza de Deus, seu caráter, é dar-Se.” O Pai comunicou-Se primeiro na processão das Pessoas divinas, depois difundiu-Se externamente nas criaturas. Por isso, Santo Agostinho disse: “É porque Deus é bom que existimos, e todo bem que as criaturas possuem provém da bondade essencial de Deus.” Qual é, então, a propriedade que devemos considerar e estudar no Pai gerando seu Filho? O Pai, em virtude mesma de Sua propriedade pessoal de Pai, volta-Se para Si mesmo com Sua inteligência divina. Em clara compreensão, penetra no fundo essencial de Seu ser eterno e, por essa simples compreensão, exprime-Se perfeitamente numa Palavra que é Seu Filho. É precisamente no conhecimento que o Pai tem de Si mesmo que consiste a geração de Seu Filho na eternidade. O Pai permanece em Si mesmo em virtude da unidade da essência e sai de Si mesmo em virtude da distinção das Pessoas. Assim, o Pai toma consciência de Si mesmo, conhece-Se, depois sai de Si mesmo ao gerar Sua própria imagem, aquela mesma que primeiro reconheceu e apreendeu em Si. Em seguida, volta novamente a Si mesmo numa perfeita complacência em Seu ser. Essa complacência derrama-Se num amor inefável, que é o Espírito Santo. Desse modo, Deus permanece em Si mesmo, sai de Si mesmo e volta a Si mesmo. Por isso, todas as saídas só se fazem para retornos. Por isso, o movimento mais nobre e perfeito é o do céu, pois, no sentido mais estrito, ele retorna à sua origem e ponto de partida. Pela mesma razão, o curso da vida humana é também o mais nobre e perfeito de todos os movimentos quando retorna à sua origem. Essa propriedade, pela qual o Pai volta a Si mesmo e d’Ele sai, deve encontrar-se no homem que deseja, como uma mãe, conceber espiritualmente o Verbo em si. Ele deve voltar-se completamente para dentro e depois sair. Mas como?

A alma possui três nobres faculdades que dela fazem uma pura imagem da Santíssima Trindade: a memória, a inteligência e o livre arbítrio. Graças a essas faculdades, a alma é capaz de apreender Deus e ser por Ele impressionada de tal modo que pode receber tudo o que Deus é, possui e pode dar. É assim que ela já contempla a eternidade, pois a alma está entre o tempo e a eternidade. Por suas faculdades superiores, pertence à eternidade; enquanto, por sua parte inferior, por suas faculdades sensíveis ou animais, pertence ao tempo. Mas, atualmente, a alma se dispersa no tempo e nas coisas temporais, tanto pelas faculdades superiores quanto pelas inferiores. A razão disso está na estreita união dessas faculdades. Essa união torna a dispersão tão fácil que a alma está sempre pronta e disposta a se derramar inteiramente nas coisas sensíveis, desviando-se assim das realidades eternas. Mas, em verdade, é absolutamente necessário um retorno a nós mesmos para que esse nascimento se realize. Devemos recolher-nos fortemente, trazer e reunir interiormente todas as nossas faculdades, tanto as inferiores quanto as superiores, e chamá-las de toda dispersão para a concentração, que torna mais poderosas todas as coisas unificadas. Se um atirador deseja acertar o alvo com segurança, fecha um olho para que o outro aponte com mais precisão. Aquele que quer compreender profundamente algo emprega todos os seus sentidos e os reconduz ao centro da alma, de onde saíram. Assim como todos os ramos provêm do tronco da árvore, todas as nossas faculdades — as da sensibilidade, do desejo e da luta — estão unidas às faculdades superiores no fundo da alma. Eis a entrada em nós mesmos.

Se agora queremos sair de nós mesmos, ou melhor, elevar-nos para fora e acima de nós mesmos, devemos renunciar a todo querer, desejar e agir próprios. Não deve restar em nós senão uma simples e pura busca de Deus, sem qualquer desejo de possuir algo que nos pertença, de qualquer modo que seja, sem nenhum desejo de ser, tornar-nos ou obter algo próprio, mas apenas com a vontade de pertencer a Ele, de Lhe dar espaço da maneira mais elevada e íntima, para que Ele possa realizar Sua obra e nascer em nós, sem que Lhe coloquemos obstáculos. Pois, para que dois seres se tornem um, é necessário que um se comporte como paciente e o outro como agente. Para que o olho possa perceber as imagens que estão na parede ou qualquer outro objeto, não deve ter em si nenhuma outra imagem. Se tivesse mesmo uma imagem de qualquer cor, jamais poderia perceber outra. Da mesma forma, o ouvido, cheio de um som, não pode perceber outro. Portanto, tudo o que deve receber deve estar puro, límpido e vazio. Por isso, Santo Agostinho nos diz: “Esvazia-te para que possas ser preenchido; sai para que possas entrar.” E em outro lugar: “Ó alma nobre, nobre criatura, por que buscas fora de ti o que está em ti, de modo mais verdadeiro e manifesto? E já que participas da natureza divina, que te importam as criaturas e o que tens a ver com elas?” Se o homem preparasse assim o lugar, o fundo, Deus, sem dúvida, seria obrigado a preenchê-lo, e certamente de modo completo. Antes o céu se romperia do que deixasse o vazio. Mas Deus ainda menos pode deixar as coisas vazias, pois isso seria contrário à Sua natureza, à Sua justiça. Por isso, deves calar-te. Então, o Verbo desse nascimento poderá ser pronunciado em ti, e tu poderás ouvi-Lo. Mas tem certeza: se queres falar, Ele deve calar-Se. Não se pode servir melhor ao Verbo do que silenciando e escutando. Se, portanto, saíres completamente de ti mesmo, Deus entrará inteiramente. Na medida em que saíres, Ele entrará — nem mais, nem menos.

Dessa saída, encontramos uma imagem no livro de Moisés, onde Deus ordena a Abraão que deixe sua terra e sua família, porque queria mostrar-lhe todo bem, isto é, esse nascimento divino que, por si só, é todo bem. Sua terra, de onde devia sair, é o corpo com todas as suas concupiscências e desordens. A família simboliza a inclinação das faculdades sensíveis e suas imaginações, que atraem e arrastam esse corpo, trazendo-lhe as agitações do prazer, da dor, da alegria, da tristeza, do desejo, do temor, da preocupação, da leviandade. Essa família está ligada a nós por estreito parentesco, e é preciso vigiar com tanto mais cuidado para desprender-se dela completamente, se se deseja ver nascer todo o bem que esse nascimento verdadeiramente é.

Diz-se comumente: “A criança criada em lar fechado é, lá fora, como um bezerro (um grande tolo).” Esse provérbio aqui se verifica. Os homens que nunca saíram de si mesmos, que não se elevaram acima da natureza e do que os sentidos podem trazer pela visão, audição, sentimentos e emoções, que não foram além e acima de seu “lar” e de toda a região das coisas naturais, não têm mais inteligência para as coisas elevadas, as coisas de Deus, do que bezerros ou bois. Seu fundo interior é como uma montanha (mina) de ferro, onde nunca penetra um raio de luz. Logo que a sensibilidade, as imagens e as formas lhes faltam, não sabem mais nada e não sentem mais nada. Ainda estão em seu “lar”, e por isso não sentem o nascimento de que falamos. Para eles, Cristo disse estas palavras: “Quem, por amor a Mim, abandonar pai, mãe, campo, esse (somente) receberá o cêntuplo e, além disso, a vida eterna.”

Até agora, falamos do primeiro e do terceiro nascimento e da lição que devemos tirar do primeiro em vista do último. Agora, explicaremos este último por meio do segundo, pelo qual o Filho de Deus, nesta noite, nasceu de uma mãe e tornou-Se nosso irmão. Na eternidade, Ele foi gerado sem mãe; no tempo, sem pai. Santo Agostinho diz: “Maria foi muito mais feliz por Deus ter nascido espiritualmente em sua alma do que por tê-Lo gerado segundo a carne.” Portanto, quem deseja que esse nobre nascimento espiritual se realize em sua alma, como na alma de Maria, deve considerar quais eram as disposições particulares de Maria, ela que foi Mãe de Deus, tanto espiritual quanto corporalmente. Maria era uma virgem casta e pura; era uma jovem prometida e desposada; mantinha-se afastada e separada de tudo quando o anjo Lhe apareceu. Assim deve ser uma mãe espiritual desse nascimento divino. Ela deve ser uma virgem casta e pura. Se alguma vez se desviou do caminho da pureza, deve agora retornar a ele. Uma virgem é uma pessoa exteriormente estéril, mas interiormente muito fecunda. Assim, a virgem de que falamos deve fechar seu coração às coisas exteriores, ter pouco comércio com elas e dar poucos frutos externamente. Assim era Maria, que só se preocupava com as coisas de Deus. Mas, no interior, essa virgem deve dar muitos frutos. “Toda a beleza da filha do rei vem de dentro.” Uma virgem que deseja assemelhar-se a ela deve viver na solidão, tendo todas as suas disposições habituais, pensamentos e conduta orientados para o interior. Assim, ela dará muitos frutos, e um fruto esplêndido: o próprio Deus, o Filho de Deus, que é e contém todas as coisas. Maria era uma jovem esposa; assim, nossa virgem deve ser esposada, segundo o ensino de São Paulo. Deves lançar tua vontade inconstante na vontade de Deus, que é imutável, para que ela auxilie tua fraqueza. Finalmente, Maria havia se recolhido. Da mesma forma, a serva de Deus deve manter-se recolhida, se quiser sentir verdadeiramente em si esse nascimento, abstendo-se não apenas das dispersões temporais que parecem trazer-lhe algum dano, mas até mesmo das práticas puramente sensíveis das virtudes. Deve, muitas vezes, fazer silêncio e calma em si mesma, encerrar-se em seu interior, esconder-se no espírito para subtrair-se e escapar aos sentidos, e criar em si mesma um lugar de silêncio e repouso interior.

Desse repouso interior, cantar-se-á no próximo domingo, no início da missa: “Dum medium silentium fieret. Quando um profundo silêncio envolvia todas as coisas, e a noite estava no meio de seu curso, então, Senhor, do Teu trono real desceu Tua Palavra onipotente”, o Verbo eterno saindo do coração de Seu Pai. É no meio do silêncio, no momento mesmo em que todas as coisas estão mergulhadas no mais profundo silêncio, quando o verdadeiro silêncio reina, que se ouve verdadeiramente esse Verbo. Pois, se queres que Deus fale, deves calar-te; para que Ele entre, todas as coisas devem sair. Quando Nosso Senhor Jesus entrou no Egito, todos os ídolos da terra caíram. Teus ídolos são tudo o que impede que esse nascimento eterno se realize em ti de modo verdadeiro e imediato, por mais bom e santo que pareça. Nosso Senhor disse: “Eu vim trazer a espada para separar tudo o que é próximo ao homem: mãe, irmã, irmão.” Pois o que te é mais próximo é teu inimigo: essa multiplicidade de imagens, que ocultam em ti o Verbo e se estendem sobre Ele, impedindo esse nascimento em ti, sem que, no entanto, essa paz te seja inteiramente tirada. Essa paz não pode, é verdade, sempre reinar em ti. Mas é por ela que te tornarás mãe espiritual desse nascimento. Tal mãe deve muitas vezes estabelecer em si esse pleno silêncio, para acostumar-se a fazê-lo. O hábito lhe dará certa maestria, pois o que para um homem exercitado é nada, parece impossível ao noviço inexperiente. É o hábito que dá a maestria. Que cada um de nós, portanto, dê lugar em si a esse nobre nascimento, para tornar-se uma verdadeira mãe espiritual. Que Deus nos ajude! Amém.

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