Bizet (JABR) – Ruysbroeck, a doutrina (3)
JABR
Os decretos emitidos pelo concílio de Viena contra os begardos hereges acusam-nos de sustentar que toda natureza intelectual possui em si mesma sua bem-aventurança e que a alma não necessita da luz da glória para elevar-se à união beatífica 1). É com o mesmo espírito que Ruysbroeck denuncia a confusão mantida pelos “falsos profetas” sobre os limites entre a natureza e o sobrenatural. Para prevenir ou refutar o erro, ele se esforça em determinar, em cada modalidade e a cada grau da vida espiritual, a parte da graça ao lado das operações imputáveis à natureza apenas.
As potências da alma são solicitadas por uma tendência unitiva que as pressiona a se recolherem, umas, no grau inferior, na unidade do “coração”, outras, no plano superior, na do “espírito”. Mas existe uma unidade mais elevada à qual tudo o que existe permanece suspenso por seu próprio ser, sua vida e sua conservação; e essa unidade, implicada já na inclinação que leva as potências a se unirem entre si, Ruysbroeck afirma que ela deve ser buscada em Deus (V. infra, p. 234 sq). Ele expõe em O Espelho da Salvação Eterna como “na parte mais nobre de nossa alma, domínio das potências superiores, somos constituídos em estado de espelho vivo e eterno de Deus” (Cap. VIII). A tradição mais ortodoxa sempre viu na trindade das potências subjacente à unidade do espírito, a imagem da Unidade e da Trindade divinas que as palavras do Gênesis autorizam a postular: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança.” Todavia, a imagem do Pai, propriamente falando, é o Filho, o Verbo no qual “tudo o que foi feito era vida”. Essa leitura do prólogo de São João, comumente admitida tanto pelos Padres quanto pelos escolásticos, forneceu um fundamento, ou melhor, uma confirmação escriturística às teorias de inspiração neoplatônica segundo as quais os seres criados subsistem no Verbo por sua ideia ou forma exemplar, anteriormente à sua criação no tempo: “Antes da criação do mundo, escrevia Clemente de Alexandria, nós éramos; é preciso que tenhamos existido em Deus antes de nascer para Deus. Estávamos no Verbo divino enquanto imagens inteligíveis: é dele que tiramos nosso princípio” 2). Ruysbroeck segue na mesma direção com toda a tradição mística que se reivindica, além de Eckhart, ora do pseudo-Dionísio, ora de Santo Agostinho: O Filho, imagem do Pai, é a causa exemplar de toda criatura. Vivemos em Deus de uma vida superiormente “vivente” (een levende leven) 3) que participa de sua eternidade: ela nasce, ela decorre do Pão “transbordando” da geração do Verbo. O ser eterno que possuímos em Deus constitui, pelo fato de sua produção no tempo, uma entidade distinta. Contudo, “é tão semelhante a Deus, escreve Ruysbroeck em As Núpcias, que Deus se reconhece e se reflete sem cessar nessa semelhança… embora haja aqui distinção e diferença segundo a razão, essa semelhança não faz senão um com a imagem mesma da Santíssima Trindade, a Sabedoria divina na qual Deus se contempla a si mesmo assim como todas as coisas” (Cf. infra, p. 358). Como o Pai nos conhece segundo a imagem que contempla no Filho, ele nos ama em seu Espírito. Por essa imagem nosso ser criado no tempo está suspenso no seio do Ser eterno e não faz senão um com ele segundo sua existência essencial. Por ela também Deus vive em nós: ela brilha no cume da alma que é como um espelho onde ela se reflete. Nesse título ela se encontra essencial e pessoalmente em todos os homens ao mesmo tempo que subsiste em Deus. Se de fato não pode haver em Deus nem acidente, nem variação concebível, Deus não poderia sair de si mesmo, também é preciso admitir que tudo em que ele habita permanece nele 4).
Entretanto, observa Ruysbroeck, nosso ser criado não se torna Deus por isso, e a imagem incriada não se torna criatura: princípio e suporte de nossa existência, ela é no sentido mais rigoroso a supraessência de nossa essência, nossa vida eterna (V. infra, p. 358 e Espelho, cap. VIII).
O vocabulário figurado que os místicos empregam não deve iludir. A palavra imagem pode induzir em erro na medida em que evoca uma impressão fixa, a lembrança ou o traço de alguma visão. A imagem de Deus na alma, na linguagem dos autores espirituais e de seu ponto de vista subjetivo, manifesta-se por uma aptidão nativa e como que constitucional para imitar segundo o ritmo trinitário a atividade interna de Deus da qual ela deriva 5). Henri Delacroix notou que o fundo da intuição mística é menos a faculdade de representar Deus que a de “atualizá-lo” 6).
Essa aptidão ainda pertence à ordem da natureza: resulta de uma adesão vital a nosso primeiro princípio sem a qual cairíamos no nada (V. infra, p. 306). Qualquer que seja a “nobreza” que ela nos confere, o alto grau de união ao qual ela nos conduz, ela não faz, contudo, nem nossa santidade nem nossa bem-aventurança. Os maus a possuem como os bons; o que equivale a dizer que ela não implica nenhum mérito. Se todavia nossa alma em sua parte superior está sempre pronta a receber a imagem que nela se imprime, se, segundo uma observação que parece emprestada de São Boaventura, nenhuma outra imagem que a de Deus pode jamais ali entrar, pode-se considerar que tal aptidão constitui uma potência obediencial que o ser criado possui pelo simples fato de sua criação, e que o dispõe à elevação ao plano sobrenatural (Espelho, cap. VIII. Cf. S. Boaventura, II Sent., dist 8.).
Deus criou o homem à sua imagem e semelhança. A imagem, como acabamos de ver, subsiste no pecador como no justo. A semelhança foi destruída pelo pecado e não pode ser restaurada senão pela “luz deiforme da graça” 7). Que os falsos místicos se esforcem, pois, em pôr a nu o fundo da alma afastando toda representação e todo desejo, renunciando a toda atividade; eles descobrem além das potências a unidade essencial; eles ali se recolhem em um estado de quietude que consideram como o dos bem-aventurados. Ora, isso não é senão, como se expressa Ruysbroeck, “o cume da natureza, onde se pode chegar sem a graça e sem as virtudes” (Doze beguinas, cap. XVIII). Tomar consciência nesse cume de sua dependência em relação a Deus não é fazer ato de religião: é apenas reconhecer um estado de fato e esse reconhecimento não implica nenhum mérito.
O homem não nasceu de Deus segundo a natureza, como o Filho único do Pai ao qual os pseudo-espirituais presumem se comparar: sua filiação é apenas adotiva e ele não poderia atingir a união mística senão por graça e por dom. Além disso, seu estado de decadência o obriga a recorrer aos sacramentos que o introduzem no ciclo da Redenção e, reparando ou mantendo nele a vida sobrenatural, o habilitam a receber, na comunhão de todos os redimidos, sua parte de herança.
Na origem dos erros propagados pelas seitas de inspiração quietista subsiste uma presunção de ignorar a ordem da graça, e mais geralmente o sobrenatural, na qual a inquisição via pertinentemente uma sobrevivência da velha heresia de Pelágio (Compilatio, ap. Preger, l. c.). A alma, por mais bem disposta que esteja, não é para Ruysbroeck senão uma taça, a graça é a bebida que Deus quer nela derramar (V. infra, p. 237). Segundo uma imagem mais explícita ainda, a graça é como um enxerto em um sujeito improdutivo ou que, entregue a si mesmo, só daria frutos selvagens: ainda assim a árvore enxertada deve ser podada, limpa, para produzir frutos de qualidade (V. infra, p. 187).
Há uma graça dita preveniente que “toca em comum” todos os humanos como o sol brilha sobre todas as plantas. Ela incita o homem a contemplar as maravilhas da criação onde transparece o vestígio do Criador (Cf. S. Boaventura, Serm. IV, xvi), a refletir sobre os acasos de sua destinação, a meditar os exemplos dos justos e dos santos, sobretudo a vida e a Paixão de Cristo (V. infra, p. 188). Levando-o a fazer retorno sobre si mesmo, ela lhe faz descobrir no fundo da alma a centelha interior — die vonke der zielen — que Eckhart, de quem Ruysbroeck se inspira, assimila à sinderese dos escolásticos 8): a essa luz ele se sente inclinado a desejar o bem e a detestar o mal, experimenta uma “inclinação fundamental para Deus” que o coloca no caminho da salvação desde o momento em que se dispõe a segui-la.
A centelha da alma é ainda uma luz de ordem criada. É preciso que o homem se arrependa de suas faltas e se estabeleça no temor do Senhor para que lhe seja concedida uma luz mais elevada, dom gratuito que, no movimento da caridade, determina a conversão da vontade para Deus: é aí em termos próprios a graça de justificação que torna a alma agradável (gratia gratum faciens) e que a une a Deus (V. infra, p. 189). Assim a graça previne o esforço humano, ela o estimula e o completa, depois o firma com um laço de amor recíproco que é para os escolásticos uma amizade da alma para com Deus.
O erro dos falsos místicos é, nesse ponto, considerar a perfeição — Lutero dirá a justificação — como uma transmutação radical do ser, levando a um estado de impeccabilidade que torna vãos todo exercício e toda ascese. Rousseau escreveu da felicidade “que ela não resulta de uma coleção de fatos, mas que é um estado permanente” e que por essa razão se sente mas não se descreve (Confissões, V. VI). O estado de bem-aventurança inefável e simplesmente sentido que os pseudo-espirituais buscam além dos atos distintos, não é de um gênero diferente: Ruysbroeck responderia que esse repouso ao qual a alma aspira, é preciso que ela o busque de maneira ativa e que em sua condição presente ela nunca o possui tão bem que não tenha ainda que persegui-lo (V. infra, p. 335).
