Judeus-Cristãos (MHE)
CRISTOLOGIA — CRISTIANISMO PRIMITIVO
E eis que o cristianismo situa a salvação no corpo. E a este corpo material e putrescível, presa do devir e sede do pecado, órgão da atração sensível, vítima predestinada de todos os engodos e de todos os ídolos, que se vê confiado o cuidado de nos arrancar da morte! Falaremos disso à medida que formos adquirindo os meios para a análise desta estranha economia da salvação que havia de provocar a hilaridade dos gregos. Quando, no Areópago de Atenas, Paulo se esforçou por explicar a eles que a imortalidade do homem repousa na ressurreição dos corpos, seus ouvintes, como se sabe, deixaram-no, zombando: “A respeito disto te ouviremos outra vez!” (Atos 17,32).
Tão extraordinária quanto a doutrina foi a atitude daqueles que lhe deram uma adesão imediata e sem reserva — mais ainda: que aceitaram jogar a sorte no cristianismo sobre sua tese mais inverossímil. O paradoxo, é verdade, estava longe de ser o mesmo para todos. Os judeus “cristãos”, os que haviam reconhecido em Jesus o Messias, de maneira geral todos os que eram de cultura judaica, não partilhavam a concepção grega do dualismo de alma e corpo. O homem não é, no judaísmo, cindido em duas substâncias distintas, não resulta de sua síntese, aliás incompreensível: nenhuma hierarquia vem, pois, instaurar-se entre elas. O homem é uma realidade unitária provida de propriedades diversas, mas que definem uma mesma condição. Longe de ser objeto de qualquer descrédito, e ainda que permaneça sujeito às prescrições rigorosas da Lei, o que decorre da carne da paternidade ou da maternidade, por exemplo representa para o homem judeu o cumprimento de seu mais alto desejo.
A identidade das concepções relativas à carne que existe entre o judaísmo e a religião nova (que no começo não passa de uma seita herética) vai, no entanto, romper-se desde o aparecimento desta. O motivo desse divórcio, que adquire o aspecto de uma luta trágica, é duplo. Em primeiro lugar, há a ideia que o judaísmo tem de Deus e de sua criação. Deus criou o mundo fora dele mesmo, ele é tão separado do mundo quanto o é o homem, que tirou da matéria deste mundo. Antes até da penetração do helenismo, o judaísmo encerra em si, ligada à ideia de um corpo terrestre, a de um homem miserável e fadado à morte. Só um ato gratuito de Deus, de sua vontade todo-poderosa, permite a seu servidor manter a esperança de que ele não será entregue ao sheol. Era quase tão difícil para um judeu acreditar na ressurreição (e muitos não acreditavam nela) quanto para um grego. Criatura terrestre, formada do limo da terra, ele parecia destinado, tanto por sua origem quanto por seu pecado, a voltar a ela. “Lembra-te de que és pó (…).”
O segundo motivo da ruptura brutal entre o judaísmo e a seita de Cristo é precisamente a Encarnação. Que o eterno, o Deus longínquo e invisível de Israel, aquele que sempre esconde sua face nas nuvens ou atrás das sarças, de quem se escuta no máximo a voz (de quem, de fato, é a voz?), venha ao mundo para assumir um corpo terrestre a fim de se submeter ao suplício de uma morte ignominiosa reservada aos celerados e aos escravos aí está o que é, afinal, tão absurdo para um rabino erudito quanto para um sábio da Antiguidade pagã. Que esse homem miserabilissimo pretenda ser Deus, aí está a maior das blasfêmias — e bem merecia a morte.
Se a recusa judaica — a recusa dos sacerdotes do Templo, dos grandes sacerdotes, dos escribas, dos saduceus e dos fariseus — é afinal de contas (a despeito da conversão secreta de muitos deles, e a despeito também da ideia que eles tinham da carne como totalidade orgânica do homem) tão violenta quanto a recusa grega resultante do dualismo, retornamos então à nossa primeira constatação: o caráter extraordinário da fé incondicional que todos os convertidos, judeus, gregos ou pagãos, iam depositar na Encarnação do Verbo, ou seja, em Cristo.
É com o passar do tempo que, não contente em constituir a substância da vida das primeiras comunidades reunidas em torno da refeição sagrada, a Encarnação no sentido cristão se torna objeto de uma reflexão intelectual específica, ainda que a “batalha dos homens” — no caso, uma sucessão de perseguições terríveis, “judaicas” de início, romanas em seguida — não deixe de acompanhar o “combate espiritual”. A tal reflexão se entregaram esses grandíssimos pensadores que são os Padres da Igreja. Já compreendemos como, tendo assumido o paradoxo cristão que põe a vinda de Deus num corpo mortal como condição da salvação metafísica do homem, eles eram obrigados a combater em duas frentes: contra os judeus, contra os gregos.
Contra os judeus, como o mostra, por exemplo, o debate que Justino mantém com o rabino Trifão, que precisamente não conseguia compreender como os cristãos depositavam sua esperança “num homem que foi crucificado”.] Mas é a transcendência do Deus de Israel que torna em última instância ininteligível sua encarnação. Iavé é um deus ciumento. Ciumento de sua essência divina, do poder de existir — “Eu sou Aquele que sou” –, que só existe em si e que não se divide. Vista desse ângulo, a pretensão de um homem de ser ele mesmo Deus parece, com efeito, absurda. O monoteísmo judeu é sem falha. O ciúme do Deus de Israel com relação aos homens, ou seja, a todos os seus ídolos: mulheres, dinheiro, poder, deuses estrangeiros, etc. — de tudo o que pretendesse substituir a Iavé como objeto de adoração –, não é senão consequência daquele ciúme ontológico primeiro, que é o do Absoluto. E é verdade que um Deus no plural, se tal se pode dizer, é inconcebível num pensamento do Ser para o qual tudo o que é, ou que seja suscetível de ser, depende do único Ser que existe verdadeiramente, aquele que tira de si mesmo a força de ser. (Michel Henry, MHE)
