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Merejkovsky – Jesus Desconhecido (II.8)

Dmitri Merejkovsky – Jesus Desconhecido. Tr Gustavo Barroso. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1935

**PARTE DOIS**

**VIDA DE JESUS DESCONHECIDO**

**VIII. A TENTAÇÃO**

Apócrifo

1

Três homens caminhavam pelo paraíso subterrâneo do Kerith: à frente ia um Homem vestido de branco com os que saíam das águas do batismo; atrás dele, dois outros com as vestes escuras dos discípulos de João. Eram Simão filho de Jonas e seu irmão André. — Rabi! Rabi! chamou Simão. Mas, ou porque não ouviu o chamado por causa do rumor da torrente, ou porque não o quis ouvir, o que caminhava à frente afastou-se sem se voltar. Todavia, Simão, estugando o passo, correu após ele, chamando sempre: — Rabi! Rabi! Súbito, o homem de vestes brancas como que voou, atravessou a torrente, saltando de pedra em pedra por cima do abismo espumante, rapidamente, ligeiramente, sempre voando se lançou por íngreme caminho de cabras para o cimo dos rochedos quase a prumo. Via-se no verde escuro das estevas cintilar a alvura de suas vestes. Depois de uma última cintilação, sumiu-se. Somente uma pedra rolou sob seus pés, atravessou as moitas e, saltando e batendo nas rochas, foi cair silenciosamente no rumor da torrente. — Foi embora! Foi embora! exclamou Simão, detendo-se bruscamente e pondo-se a chorar como uma criancinha. Há tanto tempo que o esperávamos e procurávamos e implorávamos; mal o encontramos e foge! — Não, não fugirá, se é Ele; não fugirá; Ele só veio ao mundo para que os homens o conheçam, disse André, a fim de consolar Simão. Tão bruscamente como se pusera a chorar, este parou com um último soluço, soltou profundo suspiro e, olhando o irmão, silenciosamente, fixamente: — Por que dizes, André, “se é Ele”… falou sem chorar, porém com um tom de voz ainda mais amargo. Foste tu mesmo que há pouco me disseste: “Nós o encontramos”; foste tu que me levaste a ele e agora dizes “se”… André nada respondeu. Encaminharam-se em silêncio para Betabara. Simão baixava a cabeça, absorto em profunda meditação. Eram três horas da tarde. — Não, ele não voltará antes que seja noite, disse Simão, lançando um olhar ao sol, como se respondesse a seus próprios pensamentos. — E aonde terá ido? Fazer o quê? Que fará sozinho, à noite, no deserto? — Sozinho, à noite! repetiu André e, depois de um silêncio, como falando a si próprio: — sim, seria melhor não ir lá; no deserto, à noite, está o diabo. E, logo que disse isto, pareceu a ambos que, embora o sol continuasse a brilhar, tudo entenebrecera como durante um eclipse. E ambos tiveram medo.

2

O homem das vestes brancas também teve medo. Parecia-lhe que não caminhava por sua vontade, mas impelido por uma força irresistível que o levava cada vez mais alto, sempre mais alto, sobre rochedos tão escarpados que pés humanos ainda não tinham pisado. Deixando a gruta, pôs-se a subir a suave inclinação de uma montanha calcária, resplandecente de alvura sobre o céu azul escuro (I.) Só a fenda estreita, negra na brancura do calcáreo, a boca do inferno, da torrente do Kerith se abria a seus pés para o paraíso subterrâneo. Lentamente, lentamente, ou porque estivesse muito fatigado, ou porque cada vez tivesse mais medo de avançar, chegou a uma saliência perto do cume e plana como um eirado, onde parou. A leste, mesmo sob seus pés, no fundo do abismo escancarado, serpenteava nas areias amarelas, entre duas finas platibandas de verdura, o fio de prata do Jordão: era lá que ficava Betabara. Ao norte, além das montanhas da Judeia, da Samaria e da Galileia, que fugiam ao longe e iam empalidecendo no azul — estava Nazaré — e se erguia na franja do céu, branca, mas não de uma brancura morta como aquela serra de calcáreo, sim viva, ruborizada, a cabeça prateada do Hermon coberto de neve. A oeste, num côncavo em meia lua, elevava-se o cume arborizado e próximo do Monte das Oliveiras: ali era Jerusalém. Ao sul, mais resplandecente ainda, rebrilhava, descendo suavemente, a planície de sal, cujo solo de um cinzento prateado refulgia sob o sol primaveril como uma camada de gelo. Mais longe, o sol se afundava num poente tão pouco terrestre, tão irreal que se diria uma visão de pesadelo. Ao fundo dessa profunda cavidade, verdadeira panela de feiticeira, brilhava uma laje de estranha cor azul de vitríolo — o mar Morto: ali fora Sodoma.

3

Logo que parou, lembrou-se, reconheceu o lugar, como se lhe tivessem dito ao ouvido: “É aqui”. E o que sentiu não foi medo, porém tédio, desgosto mortal e seu coração se tornou mais pesado do que uma dessas pedras ardentes que, no verão, no deserto, ficam durante a noite tão quentes quanto durante o dia, como se contivessem um fogo interior. Viu duas grandes lajes brancas, das quais uma era mais baixa e ficava um pouco atrás da outra. “Dois assentos, um para o rei, o outro para o seu confidente”, pensou, tendo de novo a sensação que esse pensamento vinha de outro e não dele. Havia ali ainda outras pedras, pequenas, chatas, roliças, em calcáreo amarelado, de aspecto friável e brando, e ele não podia ou não queria lembrar-se com que se pareciam. Sentia muito tédio e desgosto, mas, mesmo através dessa sensação, o medo voltava a alfinetar-lhe o coração. Muito tempo, imóvel, olhou as duas pedras, não querendo aproximar-se delas, porém uma força invencível o obrigava a isso. Lentamente, lentamente, resistindo a cada passada, mas andando assim mesmo, aproximava-se, aproximou-se e sentou-se na laje que ficava dianteira. Quis sentar-se de rosto voltado para o Hermon, de costas para o mar Morto, porém isso foi impossível: teve de sentar-se, olhando o mar. E, branco sobre a pedra branca, ficou petrificado. Não sabia quanto tempo se passava. Fechava os olhos, reabria-os e era noite; fechava-os de novo e ainda os reabria, e era dia. E, assim, infindavelmente. Quarenta dias, quarenta noites, quarenta instantes, quarenta eternidades!

4

Ouviu zumbir, murmurar aos seus ouvidos, como um inseto noturno, o vento que soprava do sudoeste, do mar Morto, que trazia, mesmo naquele tempo de inverno, um calor de fornalha. Um odor de enxofre e de betume parecia exalar-se de todo o cadáver de um mundo morto. O sol era sempre muito brilhante, mas a negra poeira dos desertos da Arábia devia passar muito alto, no céu, porque de repente todos os objetos se entenebreceram, como no momento de um eclipse, e tomaram sob o calor seco um brilho nítido e escuro, como se fossem esculpidos em cristal negro; o azul coagulado de vitríolo no fundo da chanfradura — o mar Morto — tornou-se ainda mais azul; o brilho escuro das salinas ficou ainda mais brilhante. Aos pés daquele que estava sentado na laje, uma moita de esteva, plantada morta no deserto, estremeceu ao vento com um crepitar seco. Um terror mortal penetrou no coração do vivo — contato do gelo na pedra abrasada. Mal lhe chegou ao ouvido, mal ouviu um rumor leve de passos; mal percebeu com o canto do olho, mal viu, sem ver, alguém se aproximar por trás e se sentar na outra laje.

5

Havia uns dez anos, José, o mestre carpinteiro, e Jesus, seu companheiro, consertavam o forro de uma casa de campo pertencente a uma cortesã de Séforis. Um dia, passando diante de grande espelho redondo, de cobre polido, que estava no quarto de dormir, Jesus contemplou-se nele por acaso. Quantas vezes já tinha visto seu rosto no puro espelho das fontes serranas, emoldurado de ervas e de flores, ou ainda na sombria profundeza dos poços, quando, ao lado de sua face, as estrelas diurnas cintilavam misteriosamente! Então, ao invés de ter medo, sentia-se feliz. Mas, naquele espelho, não se dava o mesmo: reconhecera-se sem se reconhecer. “Não sou eu, é o outro”, pensou e fugiu com medo. Durante muito tempo, evitou passar diante do espelho e nunca mais olhou para ele.

6

E, naquele momento, sentado na pedra, sabia que, se olhasse o que estava sentado a seu lado, nele se veria como num espelho: cabelo a cabelo, ruga a ruga, sinal a sinal, feição a feição. Ele e não ele, o Outro. — Onde está ele, onde estou eu? — Onde estou eu, onde estás tu? — Quem falou: ele ou eu? — Eu ou tu? — Meschiah-meschugge, meschugge-meschiah! Messias o louco, o louco Messias! cochichava o murmúrio da esteva, repetindo o que outrora cochichavam os irmãos de Jesus nos cantos escuros da casinhola de Nazaré. — Onde estou? Onde estás? Eu ou Tu? Jamais alguém o saberá, jamais alguém nos distinguirá um do outro. Teme-o, Jesus; não me temas, eu-tu. Ele não está em mim, ele não está em ti — ele está entre nós. Ele nos quer dividir. Sejamos, portanto, um só e venceremos — nós o salvaremos… Quanto tempo o Morto cochichou, o Vivo não o soube: quarenta instantes, quarenta eternidades? O escuro cintilar cada vez ficou mais brilhante, o azul cada vez mais corrosivo, a podridão de cadáver cada vez mais violenta, o cochicho cada vez mais distinto. — Estou cansado, estás cansado, Jesus; só por todos, só em todos os séculos-eternidades. O sequioso quer água. O que é aspira a não ser mais — a repousar, a morrer — a não existir. Calou-se de súbito e, no silêncio, se ouviu um ligeiro rumor, outro cochicho, vindo de baixo, do lugar onde se abria, negra na brancura da montanha, a estreita fenda, a boca do inferno — o paraíso subterrâneo; dir-se-ia um suspiro de alívio que o mundo soltasse. O Morto disse: “não ser”; “ser”, disse o Vivo. Os pequenos vinham em socorro do Grande, as criaturas em socorro do Criador, os animais em socorro do Senhor.

7

Farejando seu rasto, subiam do paraíso subterrâneo para o inferno terrestre por aquele mesmo caminho que os homens nunca haviam pisado e por onde ele subira havia pouco. Os grandes à frente, os médios ao meio, os pequenos atrás, cada qual em sua ordem: os velozes diminuíam o passo e os lentos o aceleravam para que nenhum se adiantasse ou atrasasse. Primeiro vinha o Veado, marchando com seu passo real, e a Gazela o seguia, estremecendo e olhando timidamente em volta com receio de perder a pista. O Urso caminhava com o focinho rente ao chão, farejando o rasto como se fora um favo de mel. A Raposa, levantando o pontudo focinho, farejava o ar. Boa mãe, a Chacal de peitos magros trazia entre os dentes, por precaução, um filhote de dois dias. Vinham, em seguida, o Esquilo, o Ouriço, o Rato d’água, o Rato do campo, e os Pássaros, e os Répteis, e os Bichinhos de toda a espécie, cada vez e sempre mais pequenos, os Besouros e os Mosquitos, e por último, o menor de todos, o pequeno verme esverdeado, a Minhoca. Se se tivesse arrastado como de costume, os quarenta dias não lhe teriam bastado, porém, encolhendo-se e estirando-se, ia tão depressa que parecia ao Louva-Deus, único que o podia ver, prodigioso e minúsculo relâmpago verde.

8

Eles iam do paraíso subterrâneo, através do inferno terrestre, para o distante, muito distante paraíso futuro; todos eles sabiam que iam para o segundo Adão: o primeiro causara sua perda, o segundo os salvaria, porque eles conheciam o segredo do profeta: “Toda carne verá a salvação de Deus (2)”. e o segredo do patriarca: todos os animais dos campos e todos os pássaros do céu se reuniram na casa do Senhor e o Senhor se alegrou com uma grande alegria, porque eles eram todos bons e haviam voltado à casa (3)”. Eles também conheciam o segredo do Senhor, ainda ignorado dos homens. “Pregai o Evangelho a todas as criaturas (4)”.

9

Um pouco de frescura veio atenuar o calor infernal do deserto. O Senhor alegrou-se muito que os Bichos tivessem vindo em seu socorro. O Veado aproximou-se em primeiro lugar, inclinando a sua armação de chifres, e o Senhor, tocando-lhe com as mãos, chamou-o “Veado” e fez brotar-lhe entre os cornos uma cruz luminosa. O animal quis lamber-lhe as mãos, porém não ousou, contentando-se em avançar o focinho e o hálito quente de suas narinas lhe tocou o rosto. A tímida Gazela, essa ousou lambê-las. O Urso só fez farejar, como se fosse o mais doce mel, a poeira de seus pés. A Chacal não se aproximou e mostrou somente de longe o seu filhote; quando o Senhor lhe deu seu nome, uivou baixinho de contentamento. O Ouriço enrodilhou-se em bola, com os espinhos bem guardados, a fim de não espetar; com sua língua azul-negra e macia como uma pétala de flor lambeu-lhe os pés. A Serpente beijou-o com sua língua trêmula. O Lagarto aqueceu-se sob o olhar do Senhor como sob um sol edênico. Ele disse seu nome ao Louva-Deus e este de alegria voou para o céu. Ele chamava cada bicho pelo seu nome, olhava-o nos olhos e cada pupila animal refletia a face do Senhor e a cara do animal parecia um rosto; em cada um se acendia uma alma viva e imortal. Depois de todos os outros, arrastou-se para ele o pequeno verme, a Minhoca. Mas era tão pequenino que o Senhor não deu por ele. Entretanto, não desesperou: trepou-lhe ao joelho e esperou imóvel.

10

Com o canto do olho o Senhor via que os Bichos, passando diante da outra laje, desapareciam, mas não via o que se tornavam. Só faltava passar diante dele e fora de sua ordem a Rã verde do mato. Farejando provavelmente um perigo, ela se ocultara sob uma pedra, aos pés do Senhor. Mas acabou por sair do seu esconderijo, arrastada por uma força invencível como a que faz o ímã atrair o ferro. Saiu, deu um ou dois saltos e, derretendo-se subitamente sob o olhar do Morto, dissipou-se no ar como uma fumacinha verde. Tendo visto isso, o Senhor se lembrou — reconheceu que todos os vivos têm o mesmo destino: — O verme e o homem vão para o mesmo lugar: são como se nunca tivessem sido, sussurrou de novo o Morto. — Lembras-te, Jesus, de Jó o Justo? “Oh! se o homem pudesse lutar contra Deus como o filho do homem com o seu próximo! Eis que grito sob a violência e não me respondem, que grito por socorro e não há justiça! Por que não morri nas entranhas de minha mãe? Agora, estaria dormindo e descansando, tranquilamente”. O tolo não sabe que tudo o que existe aspira a não existir, a repousar, a morrer. Lembras-te, Jesus, da mulher de Jó: “Amaldiçoa Deus e morre!” — Quem disse isso, eu ou ele? — Eu ou tu? Onde estás, onde estou? O rosto morto se aproximou do rosto vivo como de um espelho. O Vivo, baixando os olhos para não ver o Morto, avistou sobre o joelho o Verme: então, se lembrou — reconheceu que o Morto mentia: se os sábios não sabem discernir o Vivo Morto, a criança reconhecerá o Vivo por esse ponto verde sobre suas vestes brancas — por esse verme vivo sobre o Vivo. O Morto mente, dizendo que o que é vivo aspira à morte: não, aspira à vida; os próprios mortos esperam a vida eterna. O Senhor se lembrou — reconheceu isso, como se todos os Animais mortos lhe gritassem do fundo de seu túmulo comum, do Paraíso subterrâneo: “Nós esperamos”.

11

Quarenta instantes — quarenta eternidades. “Ele nada comeu durante esses dias; e, depois que passaram, teve fome (5)”. Somente então se lembrou — reconheceu que seu coração estava abrasado por uma fome atroz. O Tentador, aproximando-se dele, disse: — Há entre os homens um pai que daria uma pedra ao filho que lhe pedisse pão? Filho, pede pão a teu Pai. Se ele t’o der, dá-lo-á a toda gente. Porque aquele que tem fome por todos a todos fartará. “Se és o Filho de Deus, ordena que estas pedras se tornem em pães (6)”. E, se és o Filho do Homem, não passas de um verme, amaldiçoa Deus e morre como um verme. Chatas, roliças, amarelas, quentes na luz que declinava, as pedras são como pães: basta estender a mão, tomá-las e comer. — “Meu Deus, meu Deus, por que me…” Jesus levantou os olhos para o céu e clamou: — “Pai!” E dentro dele seu coração se fendeu como o céu e uma voz veio do íntimo, dizendo: “Meu Filho’’. Ergueu-se, olhou Satan nos olhos e disse “Arreda, Satan! Porque está escrito: o homem não viverá somente de pão, mas de toda palavra vinda da boca de Deus (7)”. E o diabo ficou confundido (8).

12

Quarenta instantes, quarenta eternidades. De novo o Branco estava sentado sobre a laje branca; de novo o vento, soprando do mar Morto, veio gemer nos seus ouvidos, zumbindo como um inseto noturno; um odor de enxofre e de betume, um odor que não era da terra, pareceu exalar-se do cadáver de todo um mundo. E a esteva sussurrou: Meschiah-meschugge, meschugge-Meschiah! Messias o louco, o louco Messias! Que fizestes, quem repelistes? Jesus amaldiçoou o Cristo e chamou o Cristo Satan. Nem só de pão vive o homem, mas vive também de pão. O Espírito da terra se levantará contra ti por causa do pão e todos o seguirão, enquanto que ninguém te seguirá, exceto teus santos, teus eleitos. Vieste salvar somente alguns ou todos? Eis o que repudiaste: o amor. Mas nada receies, haverá outra tentação e poderás ainda vencer Satan.

13

“Então, o diabo o transportou à cidade santa, a Jerusalém, e o pôs sobre o pináculo do Templo (9)”. O branco plenilúnio, tão branco que quase deslumbrava num céu sem estrelas de um cinzento esfumado, fitava de tal modo os homens que eles não podiam tirar dele os olhos. Todo de mármore e ouro, o Templo azulado resplandecia num esplendor inefável, como uma montanha de neve ao luar. Sobre o terraço se alongam obliquamente as sombras escuras, muito escuras das muralhas denteadas e as brancas, muito brancas luzes vindas por entre as ameias. Em baixo, muito longe, além dos muros do Templo, retumbavam os pesados passos brônzeos da ronda de soldados romanos. Agarrados um ao outro, dois morcegos, cegos pela luz, agitaram-se e desapareceram no céu lunar. O teto de madeira de cipreste seca estalou; duas sombras humanas moveram-se e sumiram-se; ouviu-se somente um ardente balbucio de amor no rumor de um beijo. Jesus caminhava sobre os listões de luz e sombra. De súbito, parou numa das partes iluminadas e se lembrou — reconheceu, como se alguém lho dissesse: “é aqui”. Um menino surgiu, claro, da sombra escura. Trazia uma camisa curta, toda tecida de linho alvo, que mal cobria os joelhos, com uma franja prateada que brilhava tão nitidamente ao luar que nela se podia ler: “Ele ordenará a seus anjos que te guardem em todos os teus caminhos, com receio que teu pé não tope de encontro a uma pedra”. O menino caminhava diretamente para ele, de olhos fechados, como um sonâmbulo. Chegando perto, abriu os olhos, olhou e se desvaneceu, se dissipou no ar: foi como se não tivesse sido. E Jesus se lembrou — reconheceu o menino que ele fora aos doze anos.

14

Lentamente, lentamente se dirigiu para uma das ameias da muralha; resistia a cada passo e avançava assim mesmo; chegou à borda do muro, acima do precipício, curvou-se e mergulhou o olhar na bruma enluarada do abismo. Além, o Monte das Oliveiras negrejava distante e próximo; a seus pés, as touceiras de oliveiras prateavam-se — as do Getsêmani. As lousas dos túmulos branquejavam, espalhadas no fundo do vale de Josafá. No leito seco do Cedron, as pontudas agulhas dos seixos rebrilhavam sob o clarão da lua. Jesus olhava avidamente para o abismo. E Satan aproximou-se dele, dizendo: — Tu assumiste o peso mortal do corpo, um por todos; liberta-te dele, um por todos. Se o Pai faz por ti um milagre, fá-lo-á por todos. Vence a morte pela morte — atira-te. “Se és o Filho de Deus, lança-te lá em baixo, porque está escrito: Ele ordenará a seus anjos que velem por ti, com receio que teu pé não tope de encontro a alguma pedra (10)”. E, se és o Filho do Homem — um verme — amaldiçoa Deus e morre, esmagado no pó, como um verme, Jesus olhou avidamente o abismo. O abismo atraía-o e no seu coração se enterravam com uma dor suave as aceradas agulhas de sílex. Asas vigorosas impeliam-no pelos ombros. O vento sibilava-lhe aos ouvidos. A cabeça como que girava. Mais um passo e se atiraria. Súbito, recuou e levantou os olhos para o céu: — Pai! clamou e seu coração se fendeu como o céu e uma voz veio de seu íntimo, dizendo: “Meu Filho”! “Arreda, Satan, porque foi dito: “Não tentarás o Senhor teu Deus”! (11) E o diabo ficou confundido.

15

Quarenta instantes, quarenta eternidades. De novo sobre a laje branca o Branco está sentado. De novo o hálito morto do mar Morto lhe sopra ao rosto. A esteva suspirava: Meschiah-meschugge, meschugge-Meschiah! Messias o louco, o louco Messias! Que fizeste, quem repeliste? Filho, lembra-te da palavra do pai: “Eu quero a misericórdia e não o sacrifício”. Tu amas sem caridade. Os homens são crianças fracas: não podem crer sem um milagre. É culpa dos fracos, se não compreendem teu terrível presente — a liberdade? Quiseste libertar os homens pela liberdade e os escravizarás pela mentira: repeliste o milagre e tu próprio farás milagres, e feliz o que se não escandalizar contigo. Todos ficarão escandalizados. É preciso que o escândalo venha ao mundo, porém desgraçado do homem que dê o escândalo! Desgraçado de ti, Jesus! O Espírito da Terra se levantará contra ti em nome da liberdade. Ele e não tu libertará, e todos o seguirão. Eis o que rejeitaste: a liberdade. Mas nada receies: haverá ainda uma última tentação e poderás ainda vencer Satan.

16

“E o diabo o transportou ainda sobre uma altíssima montanha (12)”, o Hermon nevado, o primogênito dos montes, de cabeça branca como a do Ancião dos Dias, brilhando num esplendor inefável — o cimo dos cimos, Ardis, onde, para as filhas dos homens, desciam os Filhos de Deus, os Ben-Eloim, os anjos decaídos (13). Em giros de névoa de resplandecente brancura ao sol, turbilhonam até o próprio céu os Ben-Eloim de flutuantes vestes prateadas, dançando, chorando, cantando o antigo cântico do Fim. Mas, logo que avistaram seu sol — Satan, caíram a seus pés e houve aquele silêncio que foi antes do princípio do mundo e será depois do fim. Tudo morreu na terra e no céu: a morte branca — a neve; a morte azul — o céu; a morte ardente — o sol. E Jesus viu face a face “alguém que parecia um filho de homem, vestido de vestes talares e com um cinto de ouro à altura do peito. Sua cabeça e seus cabelos eram brancos como a branca lã, como a neve; seus olhos eram como uma chama de fogueira. Seus pés pareciam de bronze avermelhado na fornalha e sua voz lembrava o rumor das cascatas (14)”. E a sua chama era fria como a morte e o sombrio brilho de seu semblante assemelhava-se ao do sol antes do eclipse. E disse: “Se repeles meu último dom, desgraça, desgraça, desgraça sobre ti, Jesus! Ficarás sozinho para todo o sempre. Enganarás a todos, porém eu não serei enganado por ninguém (15)”. Ninguém te reconhecerá jamais, e a mim reconhecerão, e a mim adorarão. Eu e não tu partilharei o mundo. E, aproximando o rosto de seu rosto, disse: — Filho do Homem, meu irmão! Amo-te, não te abandonarei nunca, afastar-me-ei algum tempo e voltarei em seguida. Subirei contigo à cruz. Maldito o que pende do madeiro! Somos ambos malditos; ambos devemos resgatar o mundo da maldição e, dirigindo-nos ao Pai, dizer de nossos irmãos, filhos dos homens: “Se os amaldiçoas, amaldiçoa-nos também”. E o diabo pôs Jesus no cimo dos cimos, no ponto extremo dos espaços e dos tempos; e lhe mostrou o vácuo — o infinito dos espaços — o Meio-dia e a Meia-noite, o Oriente e o Ocidente, o infinito dos tempos — tudo o que foi, é e será. “E lhe fez ver num ápice todos os reinos do mundo; e lhe disse: Eu te darei todo esse poder e a glória desses reinos, pois ela me foi dada e a dou a quem quero. Assim, se te prosternares diante de mim, todas essas coisas serão tuas (16)”. E aproximou seu coração do dele e disse: — Tu és Jesus, Filho do Homem; eu sou o Cristo, Filho de Deus; Jesus, prosterna-te diante do Cristo. E Jesus lhe respondeu: “Arreda, Satan! Porque está escrito: “Tu adorarás o Senhor teu Deus e só a ele servirás”. E o diabo, tendo acabado de tentá-lo por todas as maneiras, dele se retirou por algum tempo. E eis que os anjos se aproximaram e se puseram a servi-lo (17)”.

17

“Desde tanto tempo o esperávamos, o buscávamos, o implorávamos e mal o encontramos foi embora!” pensava Simão Jonas, suspirando profundamente com soluços, como as crianças quando acabam de chorar. Estava fatiguadíssimo ao voltar, à noite, da gruta do Kerith a Betabara. Deitou-se sob a tenda, mas não conseguiu adormecer; apenas ia fechando os olhos, estremecia, reabria-os na escuridão e ficava deitado, assim, sob o toldo de pelo de camelo, baixo e abafadiço. Escutava os camelos ruminarem deitados atrás da tenda, as rãs coaxarem nos caniços do Jordão, um cão latir alhures, muito longe, em pós de um rebanho, e o chacal uivar no deserto. O galo ainda não cantara pela terceira vez quando Simão se levantou, despertou André que dormia a seu lado e disse: — Vou procurar Jesus. — Ora, Simão, onde o queres procurar à noite? indagou André espantado. — Que importa! Vou assim mesmo. Se não me queres acompanhar, vou só. André estava com grande vontade de dormir, mas tinha medo de deixar o irmão sozinho. Levantou-se e disse: — Vamos. João de Zebedeu, que dormia com eles na mesma tenda, também acordou e disse: — Irei convosco. Simão pôs num saco pão, um pouco de peixe frito, tomou um cântaro de vinho, e partiram.

18

Mal nascia o dia, quando chegaram à torrente do Kerith, à entrada da gruta. Um pastor a quem perguntaram o melhor caminho para chegar à Montanha Branca, desaconselhou-os de atravessar a gruta, difícil e perigosa, indicando-lhes um atalho pelo vale de Jericó e dando-lhes um pequeno zagal como guia. O menino conduziu-os até o meio da subida da montanha e disse: — Agora, sigam em frente e não se perderão, porque o carreiro os levará ao cume. — E tu aonde vais? — Volto para onde está meu avô. É hora de levar as ovelhas ao bebedouro. — Vem conosco. O menino abalou a cabeça e respondeu: — Não, não irei. E, após um silêncio, acrescentou baixinho: — Tenho medo. — Medo? De quê? — Dele. Ele está lá em cima, na montanha… Pelo tom com que disse “Ele”, todos compreenderam que “Ele” era o diabo. E, de repente, o menino fugiu, como se já fosse perseguido.

19

O céu estava rosado e fresco como a pétala de uma rosa entreaberta. A Montanha Branca ficou rósea também. Morta, animou-se subitamente. E, no céu róseo, a Estrela da Manhã, como enorme diamante suspenso de um fio, brilhava com um clarão tão vivo que se diria que, tal qual o sol, projetava sombras. Quando eles passaram do lugar onde desembocava a garganta do Kerith, tomaram, ao longo do suave declive da montanha, o caminho que Jesus seguira na véspera. “Eis os anjos, os anjos!” exclamou Simão, olhando o céu em que longas nuvens finas e vaporosas, douradas pelos primeiros raios do sol, todas parecidas com suas pontas inclinadas, passavam, surgindo do Oriente, de trás da Montanha, tangidas por uma brisa sem dúvida muito alta, pois que não chegava à terra. Na frescura matinal, o incenso balsâmico das urzes exalava-se da garganta do Kerith, do paraíso subterrâneo. Dir-se-ia que, adorando-o no céu como na terra, anjos gigantes de coroas de ouro e de flutuantes túnicas douradas passavam diante do Senhor em lenta e solene procissão, inclinando a cabeça e agitando turíbulos.

20

A procissão terminou, as nuvens se dissiparam e, através do firmamento serenado, se alongaram, vindo do sol ainda invisível, três raios de um azul brumoso, como três raios da auréola invisível do Senhor. De repente, Simão se deteve, escondendo os olhos com a palma da mão por causa da luz, olhou atentamente, exclamou baixinho: “Ei-lo”, e se pôs a correr. O Branco estava sentado sobre a laje branca. O sol erguia-se por trás dele e parecia que três raios jorravam dele como de um sol. Simão corria tão depressa que João e André não o podiam acompanhar. Topou de encontro a uma pedra, caiu, feriu e ensanguentou os joelhos, mas, insensível à dor, se levantou e correu ainda mais depressa, nada mais vendo senão ele, ele só, o Sol. Caiu-lhe aos pés, apertando-os e exclamando: “Rabi! Rabi!” Ergueu os olhos para ele e sentiu na sua alma tanta calma, tanta alegria que lhe pareceu somente ter nascido e vivido para contemplá-lo, nada ver, nada saber, nada desejar senão olhar, olhar e morrer assim. Jesus pôs as mãos sobre os ombros de Simão e mergulhou nos seus olhos um olhar mais profundo do que qualquer olhar humano: “Simão, filho de Jonas, tu serás chamado Cefas, isto é Pedra (18)”. “Que quer isto dizer?” pensou Simão e teve vontade de perguntar, mas não ousou; teve repentinamente medo do que viu nos olhos de Jesus e, ao mesmo tempo, se alegrou tanto que ficou mudo, petrificado, se tornou Pedra.

21

Por sua vez, André e João se aproximaram, prosternaram-se e lhe abraçaram os pés. Todos três os beijavam e também a terra que guardava o rasto ainda morno da procissão noturna dos bichos. Assim, nesse dia, diante do Senhor se prosternaram todas as criaturas: animais, homens e anjos. — André, filho de Jonas, tu serás chamado o primeiro, disse Jesus (19). André compreendeu o que isto significava: ontem fora o primeiro a dizer a Simão: “Achamos o Messias” (20); fora o primeiro dos homens deste mundo que confessara o Cristo em Jesus. A João o Senhor nada disse; abraçou somente sua cabeça, apertando-a de encontro ao coração; e, ouvindo-o bater, João sorriu como uma criança que adormece sobre o seio materno.

22

E Jesus disse: — Filhos! nada tendes que comer? — Temos pão, peixe e vinho, respondeu Simão e, tirando o pão do farnel, quis pô-lo sobre a pedra branca ao lado daquela em que Jesus estava sentado, mas, a um sinal dele, compreendeu que o não devia fazer. “Sem dúvida o lugar é impuro”, pensou e teve vontade de perguntar por quê, mas de novo não ousou. Entre as pedras chatas que jaziam por terra, os três escolheram oito das maiores e mais lisas, limparam-nas com as franjas das vestes e colocaram-nas aos pés de Jesus. Pedro dispôs ali quatro broas ázimas de centeio, o peixe frito e o cântaro de vinho. Sobre as pedras chatas, roliças, amarelas, quentes na quente luz matinal, estavam os pães que lhes eram exatamente iguais: assim as pedras se tornaram pães.

23

Tomando o pão, Jesus o benzeu, partiu-o e distribuiu-o. E todos comeram. Somente então Pedro se lembrou que Jesus jejuara três dias antes do Batismo e partira de Betabara sem ter comido, que não trouxera pão consigo e passara a noite em jejum, no deserto. Pelo modo por que Jesus comia, via que estava com fome. E, lastimando-o, a piedade fez com que mais o amasse ainda.

24

Pedro encheu uma copa de vinho. Tendo-a tomado, Jesus a benzeu e lhes ofereceu. E todos beberam. Pedro sabia que, segundo a tradição dos antigos, em cada ceia benta devia haver três taças: a primeira para o Senhor, a segunda para Israel e a terceira para o Messias. Mas, deitando a segunda taça, ele viu que não havia vinho bastante para a terceira. Então, não sabendo o que fazer, olhou para Jesus. E o Senhor disse: — Ajunta-lhe água. Havia também um cântaro que, havia pouco, André enchera numa fonte de água fresca ao pé da Montanha Branca. Pedro recorreu a ela para a terceira taça. Jesus benzeu-a e ofereceu-a. E todos beberam. “Vinho puro, sem uma gota de água, disse consigo Pedro, assombrado e amedrontado. Nunca na minha vida bebi vinho igual. Deste vinho é que beberei no Reino de Deus”. Jesus sorriu-lhe docemente: ele sabia que a água se tornaria em vinho.

25

Nesse momento, viram vir a seu encontro Filipe de Betsaida e Natanael de Caná, na Galileia (21), Na véspera, tendo adormecido sob uma figueira, Natanael sonhara que o Reino de Deus tinha chegado e que ele o comemorava festivamente no meio de inúmeros convivas, como se todo Israel comparecesse, em Caná, na Galileia, nas bodas do Esposo-Messias. Ao despertar, viu Filipe, que lhe disse: “Achamos aquele de quem Moisés fala na Lei e de quem também falaram: é Jesus de Nazaré, filho de José. Natanael lhe respondeu: Pode vir alguma coisa boa de Nazaré? Filipe replicou: vem e vê (22)”. Mas Natanael não acreditou e não o seguiu. E, à noite, teve ainda o mesmo sonho e, quando acordou, embora não visse ninguém, ouviu a voz que lhe dizia: “Natanael, espero-te nas minhas bodas. Apressa-te, se não queres ser lançado às trevas exteriores”. E, tendo despertado pela segunda vez, teve muito medo, acordou Filipe, seu companheiro de tenda, e lhe disse: — Vamos procurar Jesus. Filipe, que estava com sono, a princípio recusou ir. Mas, depois que Natanael lhe contou seu sonho, consentiu. Tendo sabido pelos guardas da noite do acampamento galileu que Simão, João e André haviam partido em busca de Jesus na Montanha Branca, para lá se dirigiram, apressando-se como convidados atrasados de um festim.

26

Jesus, vendo chegar Natanael, disse: “Eis um verdadeiro israelita, em quem não há dolo. Natanael lhe perguntou: De onde me conheces? Jesus lhe respondeu, dizendo: — Antes que Filipe te chamasse, eu te vi debaixo da figueira. Natanael replicou: — Rabi, tu és o Filho de Deus, tu és o rei de Israel! Jesus respondeu: — Porque te disse que te vi debaixo da figueira, crês; verás maiores coisas do que esta! E acrescentou: Na verdade, na verdade, vos declaro, vereis o céu aberto e os anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do Homem (23)”. E os últimos chegados tomaram parte no repasto como os primeiros. E Jesus benzeu e partiu o pão para eles também e lhes ofereceu a taça. E todos comiam e bebiam e se alegravam, como se o Reino de Deus já fosse chegado.

27

E Jesus voltou à Galileia com o poder do Espírito, pregando e dizendo: “Os tempos são chegados e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e crede na Boa Nova (24)”.

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