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Merejkovsky – Jesus Desconhecido (II.5)
Dmitri Merejkovsky – Jesus Desconhecido. Tr Gustavo Barroso. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1935
**PARTE DOIS**
**VIDA DE JESUS DESCONHECIDO**
**V JOÃO BATISTA**
I
“Começo do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus… … João apareceu no deserto, batizando e pregando o batismo da penitência, para a remissão dos pecados… … Ora, aconteceu naqueles dias que Jesus veio de Nazaré, cidade da Galileia e foi batizado por João, no Jordão (Mc., I, I; 4, 9.)”. É assim que a Boa Nova, o Evangelho — não o livro que conta a vida de Jesus, mas essa vida mesma — começa para Marcos, discípulo de Pedro e para Pedro, seu mestre: “depois do batismo… nós fomos testemunhas de tudo o que ele fez” (Act., 10, 37, 39). Nesse ponto, como em muitos outros, Marcos e João, a primeira testemunha e a última, estão de acordo. Logo depois do Prólogo, em que se fala da vida celeste do Cristo, trata-se de sua vida terrestre: “Houve um homem enviado de Deus, cujo nome era João. Ele veio… para dar testemunho da luz. … João deu ainda este testemunho: Eu vi o Espírito descer do céu como uma pomba e pairar sobre Ele (sobre Jesus) (Jo., I, 6-7; 32.)”. Embora aqui se não fale do batismo, talvez porque seja um mistério muito santo e muito terrível (como o “indizível”, o arretón dos mistérios antigos), é fora de dúvida que, no quarto Evangelho, como no primeiro, o batismo é o ponto de partida de tudo. Os dois primeiros capítulos de Lucas e Mateus consagrados à Natividade do Cristo podem depender do mito ou dos mistérios; em todo o caso ainda não são histórias; não são as montanhas, mas a mistura das nuvens e das montanhas; a história, no sentido próprio da palavra, começa em Lucas e Mateus, do mesmo modo que em Marcos e João, pelo batismo. Nisto, os quatro Evangelistas estão de acordo. Jesus começou pelo batismo e acabou pela cruz. Para eles, um é tão certo quanto o outro. Se sua vida oculta é terrestre, antes do batismo, e celeste, depois da cruz, toda a sua vida pública cabe entre esses dois limites terrestres: o Batismo e a Cruz. Se ignoramos o que seja o começo — o Batismo, não sabemos melhor o que seja o fim — a Cruz, nem o meio — a vida pública de Jesus, a Boa Nova, o Evangelho.
II
O Cristo, Filho de Deus, se manifesta ao mundo em Jesus, Filho do Homem: esse é o sentido da Epifania, nome dado ao Batismo desde os primeiros séculos do cristianismo. Se, na vida da humanidade, o cristianismo é o maior dos acontecimentos, o que seus piores inimigos implicitamente reconhecem, quando procuram destruí-lo para salvar essa mesma humanidade, então esse ponto infinitamente pequeno no espaço e no tempo, esse ponto quase invisível e como que geométrico: “Jesus se fez batizar” é o maior dos acontecimentos, o zênite da história universal, a causa de tudo o que nela se passa, a origem e o fim de tudo o que nela se move, do começo à consumação dos séculos. E, se o Cristo realmente é o que nele vê o cristianismo, o batismo é o equinócio da vida, não só da humanidade, mas do universo — o porquê foi criado, o porquê será destruído, a fim de que nasça um universo melhor — o Reino de Deus. Foi isso o que aconteceu “no décimo quinto ano do reinado de Tibério César”, perto de Betabara-Betânia, a “Casa do Passador” (1), no Jordão inferior, a uma hora e meia de Jericó, a duas horas do mar Morto, quando um carpinteiro ou um mestre de obras, de todos desconhecido e que “nada tinha que atraísse a atenção”, desceu a margem argilosa e escorregadia para a água amarelada, espessa como azeite, que corre, sempre morna, mesmo no inverno, naquela gruta aquecida, perto do Asfaltite.
III
APÓCRIFO
Parecia que nada se passara no mundo. Ninguém notou coisa alguma. Dois olhares — dois raios — se cruzaram, e foi tudo: o de Jesus e o de João. Um conheceu tudo, o outro, alguma coisa. Dois outros ainda conheceram alguma coisa: João de Zebedeu e Simão, filho de Jonas, pescadores galileus, ambos discípulos do Batista. Talvez também tivesse tido conhecimento de alguma coisa aquele menino que, nos braços de sua mãe, avidamente olhava com os olhos muito abertos a Pomba deslumbrante descer de uma nuvem negra, o qual, depois de chorar de medo, começou a rir de alegria. No mesmo instante, os Serafins, os Animais que estão diante do trono de Deus, pesaram com seu peso terrível sobre o eixo do mundo e as Constelações mudaram de lugar num silêncio ameaçador. “E os céus se abriram, se fenderam (2)”. Houve alguma coisa parecida com uma tempestade, mas, se os homens tivessem podido saber o que realmente se passara, não teriam sobrevivido. “E baixou dos céus uma voz (Mc., I, II.)”. Houve alguma coisa parecida com um trovão (3) mas, se os homens tivessem ouvido o que realmente se passara, também não teriam sobrevivido. E baixou dos céus uma voz: “Tu és meu Filho e eu te gerei hoje (4)”.
IV
Segundo os cálculos astronômicos de Kepler, a estrela de Belém resultou de uma conjunção extremamente rara, que deve ter acontecido sete anos antes do nascimento de Jesus Cristo, conjunção de dois planetas — o Saturno judaico e o Júpiter heleno — sinal núncio do Grande Rei, do “Messias”. Tendo interpretado com exatidão o signo, os “Magos do Oriente” foram à Judeia ver se realmente o Messias ali havia nascido. Kepler enganou-se em seus cálculos. Mas eis o que é espantoso: ignorava, como hoje estamos certos, que a verdadeira véspera do nascimento de Jesus Cristo não coincide com o primeiro ano de nossa era, mas é anterior de seis ou sete anos, porque Jesus veio ao mundo cinco ou seis anos antes da data comumente aceita como a do Natal. Assim, a dedução histórica que se pode tirar dos cálculos errôneos de Kepler sobre a conjunção do sétimo ano continua certa. E eis o que é ainda mais surpreendente: Kepler não podia também saber que, nesse mesmo ano, os astrônomos babilônios observaram um fenômeno celeste, na verdade extremamente raro: a precessão astronômica, a passagem do ponto equinocial de um signo do zodíaco ao outro — do signo do Cordeiro-Carneiro ao dos Peixes. O Cordeiro-Carneiro era para eles a constelação do deus Sol, de Tamuz-Merodak que sofre, o Redentor. O dos Peixes, Zibati, era o símbolo das “Grandes Águas”, do Dilúvio (5). Mais do que qualquer outro povo do Oriente antigo, os babilônios haviam guardado muito viva a lembrança da primeira humanidade — daquilo que o mito-mistério de Platão denomina Atlântida. Vendo o sol entrar no ponto equinocial dos Peixes, os babilônios, eternamente presos do terror do segundo Dilúvio, disseram talvez desde o ano sete, na véspera do nascimento do Cristo, o que mais tarde dirão os cristãos: “Breve será o fim de tudo”. E, se choraram de medo, como o menino que, nos braços da mãe, perto de Betabara, a Casa do Passador, viu a Pomba branca descer da nuvem negra, não riram logo de alegria, como ele, porque conheciam — viam menos.
V
A palavra grega baptisma significa “imersão”, “mergulho”. Essa palavra, talvez inconscientemente profética, atesta o laço que existe entre as águas do batismo e as do dilúvio: o antigo homem, Adão, parece que se afoga, que perece no sepulcro das águas, o batistério, do qual emerge, nasce o novo homem da nova humanidade, o segundo Adão. Nesse sentido, o batismo, a imersão é o mais antigo de todos os mistérios, o sacramento diluviano, atlantida. “É assim que hoje somos salvos pelo batismo (imersão), o qual lembra essa prefiguração (a arca de Noé)”. É o que diz o apóstolo Pedro (I, 3, 21), testemunha provável do que se passou quando se manifestou na história universal a mudança do ponto equinocial, do signo do Cordeiro-Carneiro para o dos Peixes, e que o segundo Adão, Jesus saiu das águas diluvianas, batismais.
VI
Nós, cristãos, fomos todos batizados, mas o esquecemos, lembrando-nos tanto de nosso batismo quanto de nosso nascimento. Os mortos não sentem, quando os põem no esquife; os mortos vivos não se recordam que foram mergulhados num batistério. Para nós, isso é como se não tivesse sido, porque fomos batizados com água e não em Espírito. “Recebestes o Espírito Santo, quando crestes?” A essa pergunta de São Paulo poderíamos responder como os discípulos de João Batista de Éfeso: “Nunca ouvimos mesmo dizer que houvesse o Espírito Santo” (Act., 19, 1-2.).
VII
Atualmente, os homens parecem morrer sobretudo de falta de memória e imaginação. Na antiga lenda babilônia de Gilgamés, o deus Ea, pai de Tamuz o Redentor, anunciando o dilúvio a Noé-Atrachasis numa visão profética, sibila através de sua cabana de caniços como o vento precursor do próprio dilúvio: “Cabana, cabana! Parede, parede! Escuta, cabana! Escuta, parede! Homem de Suripak, filho de Ubara-Tutu, Desmancha tua casa e constrói uma arca, Despreza a riqueza, procura a vida, Perde tudo e salva tua alma (6) t” O vento do dilúvio sibila por todas as fendas de nossa cabana europeia e nós não construímos a arca. Oh! se tivéssemos um pouco mais de imaginação e memória, talvez compreendêssemos toda a exatidão matemática da fórmula de nova precessão, de uma mudança do ponto equinocial no Zodíaco da história universal. A que signo passará, deixando o dos Peixes, não o sabemos ainda, mas parece que será ao do Sagitário, que traspassa o coração do mundo com uma seta de fogo — o Fim. Compreenderíamos tudo o que tem de exatamente matemática a fórmula dada pelo mesmo Pedro, testemunha do batismo: a Água primeiro, o Fogo depois: “o primeiro mundo pereceu submergido pela água do dilúvio; mas os céus e as terras de agora estão reservados ao fogo, que os consumirá no dia de Juízo (II Pedro, 3, 6-7)”.
VIII
Temos adivinhado direito o mistério do Ocidente: a Atlântida é a Europa? Temos adivinhado direito sobre o ameaçador negrume do céu, cada vez mais carregado, a palavra escrita em letras de Fogo: o Fim? Infelizmente, cada dia menos se pode duvidar que tenhamos lido bem; cada dia mais se precisa matematicamente a terrível fórmula do Fim: Água-Fogo. O primeiro Fim foi a explosão exterior, vulcânica, de água e fogo, a Atlântida; o segundo Fim é a explosão interior, humana, de sangue e fogo, a Guerra. Se assim é, o ato que parece mais remoto, mais esquecido, mais inútil — o Batismo é, na realidade, o mais próximo, o mais memorável, o mais conhecido e o mais útil para nós, homens do Fim. O cristianismo dura há dois mil anos e mais para nós do que para quaisquer outros foram pronunciadas estas palavras em que se unem os dois fins das duas humanidades: “Ele está próximo, está à nossa porta… Esta geração não passará sem que todas essas coisas aconteçam… Porque o que se passou nos dias do dilúvio da mesma forma se passará à vinda do Filho do Homem… (Mt., 24, 33-37.)”. Essa “geração” será a humanidade de hoje ou a de amanhã? Que importa, se desde hoje vemos o Fim? Talvez estas palavras também se dirijam mais a nós do que a quaisquer outros: “Quando essas coisas começarem a acontecer, endireitai-vos e levantai a cabeça, porque próxima está a vossa libertação (Lc., 21, 28.)”. O Fim será para nós a alegria da libertação ou o pavor da destruição? Isso depende de cada um de nós — da lembrança que guardarmos do que foi e de nosso pressentimento do que será.
IX
Cada um de nós está prestes a perecer mais ou menos estupidamente, e essa estupidez é bem o que há de mais terrível. Seu pequeno “fim do mundo” interior, sua pequena “Atlântida” interior — queda sem fim num vácuo sem fundo — cada um de nós a vive mais ou menos e nada tenta para se salvar, nem temos mesmo o medo que devíamos ter, tanto a ela estamos habituados. Que fazer, aliás, se não há salvação? Mas, se, individualmente e coletivamente, tivéssemos a prova matemática de que esta “geração” verá realmente o Fim e que a salvação é possível e que há um refúgio seguro, uma Arca já construída ou em construção — a Igreja — onde o batismo dá entrada, oh! como nos precipitaríamos para ela, como, enfim, compreenderíamos o que significam estas palavras: “Em verdade vos digo que, entre os que nasceram de mulher, nunca houve nenhum maior do que João Batista (Mt., II, II.)”.
X
Compreenderemos o que foi o batismo, sabendo quem foi o Batista. Eis o que dele diz Flávio Josefo: “Deus fez perecer o exército de Herodes (na guerra contra Aretas, em 35-36 depois de Jesus Cristo) para punir justamente Herodes do crime cometido contra João chamado o Batista, porque ele fez morrer esse homem virtuoso que pregava ao povo… a imersão na água (o batismo), agradável a Deus, se era feita, não para a remissão dos pecados, mas para purificar o corpo, já que a alma fora purificada por uma vida justa. Vendo, pois, o povo acorrer a João… Herodes começou a recear que as pregações de João o impelissem à revolta, porque os homens pareciam prestes a tudo ouvindo suas palavras. Por isso, Herodes preferiu fazer João morrer antes que explodisse uma revolta… Assim, por mera suspeita, prendeu-o, encerrou-o na fortaleza de Maqueronte e mandou-o matar (7)”. Esse testemunho de Josefo, cuja autenticidade histórica ninguém põe em dúvida, já tem isto de precioso: ajusta-se, como a metade de um anel partido, à outra metade, ao testemunho do Evangelho sobre João Batista. Além disso, contra a própria vontade da testemunha, projeta nova luz, independente dos Evangelhos, profundamente penetrante sobre esse primeiro ponto em que a vida oculta de Jesus se torna pública, em que sua existência interior toma contato, na história, com a exterior. Eis que, enfim, passamos da sombra matinal do mito ou do mistério evangélico para o sol da história; as montanhas deixam de se confundir com as nuvens e se desenham tão nitidamente que é preciso ser cego para continuar a confundi-las.
XI
Josefo compreendeu e exprimiu justamente o que há de essencial em João — que ele é o Batista e que essa é a obra de toda a sua vida. Lembremo-nos e comparemos esses dois testemunhos de Josefo: “Jesus chamado o Cristo” e “João chamado o Batista”. Embora Josefo não faça a menor aproximação entre ambos os testemunhos, eles se unem por si próprios, tão naturalmente como duas gotinhas de azougue. O laço é tanto mais evidente para nós que, no que Josefo diz sobre João, achamos o meio que os aproxima — a chama da revolta brotando súbita, o começo de uma revolução, METABOLE, de que Herodes tanto se arreceia que julga necessário prender e supliciar João. Que “revolução” é essa? Josefo não o diz, porém é fácil adivinhar: a força messiânica que desencadeia a revolução é precisamente o de que Josefo, traidor ao movimento, trânsfuga acoitado no acampamento romano, evita falar como não se fala em corda na casa do enforcado. Somente uma vez lhe escapa uma confissão involuntária: “Eles (os judeus) foram sobretudo impelidos à guerra pela ambígua profecia da Escritura Sagrada, segundo a qual devia ser justamente naquele tempo que sairia de seu país um homem destinado a ser o senhor do mundo (o Messias). Todos acreditaram nisso e muitos dentre eles, até os mais prudentes, se enganaram. Entretanto, é evidente que essa profecia somente poderia designar a Tito Vespasiano, o qual, com efeito, obteve na Judeia o domínio do mundo (8)”. Isto é, tornou-se o Rei Messias.
XII
Por mais infame que seja a atitude de Josefo, beijando o tacão da bota romana que esmagava o coração de sua pátria, a Terra Santa, devemos-lhe gratidão, porque vemos que confirma, melhor do que muitos apologetas cristãos, a autenticidade histórica do Evangelho, no seu ponto de partida — o aparecimento de Deus, a Epifania. Em presença desses três testemunhos sobre Jesus, João e o messianismo, causa da guerra de 70, custa-se a crer que Josefo ignorasse o laço existente entre João o Batista e Jesus o Batizado. Sem dúvida, jamais conheceremos o fundo de seu pensamento, porém de todas as suas reticências ressalta um fato: entre o 29.° ano de nossa era, quando um Homem de todos desconhecido veio de Nazaré fazer-se batizar por João, e o ano 70, quando Jerusalém foi destruída, produziu-se um acontecimento único em toda a história — o suicídio de um povo inteiro. Sentindo que não poderia evadir-se da jaula romana, Israel despedaçou a cabeça de encontro às paredes da prisão. Para dar à luz o Messias, Israel, sua mãe, teve de morrer de parto: o ano 29 é o começo das dores do mesmo, o ano 70, o fim: o Filho nasce, a mãe morre. “O povo estava à espera”, diz Lucas, referindo-se ao ano 29. Se pensarmos no ano 70, imaginaremos facilmente que essa espera foi a de um homem que, não sabendo se ingeriu um veneno ou um remédio, espreita o que se passa em seu corpo. “Senhor, reina só sobre nós” — esta prece, a mais sagrada de Israel, é o veneno ingerido. O ano 29 é o paiol de pólvora; o ano 70, a explosão; e João Batista, a faísca que a causou.
XIII
“Eu não o conhecia”, repete duas vezes João no IV.° Evangelho (I, 31, 33.), diante do povo reunido, no próprio momento em que o Desconhecido, o Mal Julgado, se acha entre ele. Mas, como não poderia o Precursor conhecê-lo, se já, no seio de sua mãe, estremecera de alegria, ouvindo a saudação de outra mãe, que trazia nas entranhas outro Menino: “minha alma magnifica o Senhor”? Se, em verdade, a mãe de João é “parenta” de Jesus (Lc., I, 36.), seus filhos também são parentes. Qual dos dois, Lucas ou João, escreveu um “Apócrifo”? É uma das contradições do Evangelho, que não pode ser resolvida unicamente no plano histórico, mas que talvez seja nos dois planos da História e do Mistério — o que se diz com os lábios e o que se diz com o coração. Nos dois Evangelhos, os dois planos se encontram, se entrecruzam como dois raios de sol, sem se destruírem mutuamente.
XIV
“Se conhecemos o Cristo segundo a carne, não o conhecemos mais assim”, diz Paulo (II Cor., 5, 16·). O filho de Isabel poderia dizer o mesmo do Filho de Maria. “Eu não o conhecia” significa na boca de João: “Eu não queria, não podia, não devia conhecer o Messias, segundo a carne”. — “Não é a carne, nem o sangue que te revelaram isso, mas meu Pai que está nos céus” (Mt., 16, 17.). O Senhor teria podido dizer isso a João, como o disse a Pedro, seu segundo confessor. Filho do sacerdote Zacarias, João devia ou ser sacerdote, segundo a lei de hereditariedade dos levitas, ou renunciar a isso, rompendo com toda a parentela, fazendo, embora em medida menor e mais humana, o que fez Jesus: arrancar-se com todas as raízes, como uma planta ainda nova, do solo natal, da casa paterna, e dizer — “os próximos do homem são seus inimigos”. Por mais “surpreendente”, “espantoso” e incrível que isso seja, — mas talvez esse ponto incrível do Evangelho seja por isso mesmo autêntico — João devia dizer de Jesus: “É um inimigo”.
XV
“Ele ficou nos desertos até o dia em que se manifestou a Israel (Lc., I, 80)”. Na vida de João, como na de Jesus, há vinte anos ocultos: eles têm a mesma idade e os anos de sua existência coincidem. Dois desertos, mas quão diferentes: o da Galileia, paraíso terrestre; o da Judeia, região morta, vizinha do mar Morto, estéril e mais maldita de Deus do que qualquer outra do mundo. Que fez João durante essa permanência de vinte anos no deserto? “Ele crescia e se fortalecia em espírito”, declara Lucas (I, 80.), empregando quase os mesmos termos com que se referiu a Jesus: Ele crescia e se fortalecia, e estava cheio de sabedoria (2, 40.)”. Essa repetição de palavras não é fortuita: essas duas vidas, por mais opostas que sejam na terra e além da terra, repetem-se em um ponto: Jesus e João são irmãos gêmeos, misteriosa dualidade. Durante vinte anos, guardaram silêncio sobre a mesma coisa, ocultaram aos homens a mesma coisa, prepararam-se para a mesma coisa, esperaram a mesma coisa. Dois silêncios, duas esperas, duas flechas apontadas para o mesmo alvo, imóveis na corda do arco distendido. João teria podido esquecer Jesus? Quando o homem caminha e o sol se levanta atrás dele, sua sombra se move no chão à sua frente. À medida que o sol se eleva, ela diminui. Quando chega ao zênite, ela não se separa mais do homem. Assim, João não se pode separar de Jesus. Durante esses vinte anos, não cessa de pensar nele, de ser atormentado, tentado por Ele, de lutar contra Jesus pelo Cristo. Quantas vezes, quando a si próprio se dizia, pensando nele: “Não será o Messias?” — seu coração teve vontade de estremecer de alegria como palpita no céu a estrela da manhã ou como, outrora, estremecera nas entranhas de sua mãe! Mas estrangulava essa alegria interior: “Poderá vir alguma coisa boa de Nazaré? Em todo o caso, não poderia ser ele! Não o conheço!” E continuava a esperar. Com o ouvido colado ao chão, escutou durante vinte anos no silêncio do deserto, ano a ano, dia a dia, e de súbito ouviu: “Ele vem!”
XVI
“Uma voz clama no deserto: preparai o caminho do Senhor… aplanai sua estrada… Convertei-vos, arrependei-vos, porque o reino dos céus está próximo (Mt., 3, 3, 2.)”. João apareceu aos homens e estes começaram a ridiculizá-lo, como seus pais haviam feito com os antigos profetas: “meschugge! meschugge! o louco! o louco!” Depois, tiveram medo. Quem era esse ente vindo do deserto maldito de Deus, do forno ardente como a Geena? Um terço de homem e dois terços de um bicho desconhecido, meio leão, meio gafanhoto. Todo peludo, com uma juba leonina, os longos pelos do corpo embaralhados com a lã do tosão que o cobria, o rosto também, peludo, moita confusa no meio da qual luziam as brasas dos olhos. Alimentava-se com os gafanhotos com os quais se parecia: seus membros de inseto estavam comidos pelo sol e o ar salino do deserto, longos e finos como patas de enorme grilo da Arábia, cor de poeira. Tinha também a voz estridente, crepitante como a chama nos arbustos garranchentos e ressequidos da planície incendiada.
XVII
“Fogo! fogo! fogo!” repetia aguda e monotonamente. “Ei-lo que vem. Quem poderá suportar o dia de sua vinda? Quem poderá subsistir, quando ele aparecer? Porque ele será como o fogo do fundidor… Ajuntará seu trigo no celeiro, mas queimará a palha no fogo que se não apaga; cortará a árvore estéril e a lançará ao fogo… Quanto a mim, eu vos batizo com água, mas ele vos batizará com fogo (Mal., 3, 1-2; Mt., 3, 12, 10-11.) ”. Os homens ouvem o vento de meio dia bramir nos caniços do Jordão; julgam de novo sentir o cheiro do enxofre e do fogo, como outrora sob a chuva de chamas que consumiu Sodoma e Gomorra. “Já o machado toca a raiz das árvores (Mt., 3, 10.) ”. Os homens lembrar-se-ão quarenta anos mais tarde do machado de João, quando a acha romana derrubar a grande árvore de Israel. “Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir à cólera que vem?… Convertei-vos, arrependei-vos, porque o reino dos céus está próximo (Mt., 3, 7, 2.) ”. “Os habitantes de Jerusalém, de toda a Judeia e de toda a região vizinha do Jordão vinham a ele e por ele eram batizados na água do Jordão (Mt., 3, 5, 6)”. Toda a terra se levantara, da Judeia à Galileia; ela reconheceu que Elias, precursor do Messias, havia chegado. “Eu vou enviar-vos Elias… antes que venha o grande e terrível dia… (Mal., 4, 5.)”. Foi nesse tempo que, entre os peregrinos galileus, veio a João um Homem de Nazaré, de todos desconhecido, Jesus.
XVIII
As duas flechas lançadas uma após outra pelos dois arcos tocaram o mesmo alvo, cada qual no seu momento. Essa precisão, divinamente matemática de dois projéteis se encontrando no mesmo ponto do espaço e do tempo é o milagre único na história universal da Harmonia pré-estabelecida: o Precursor e O que veio, João e Jesus.
XIX
“Que foste ver no deserto? Um caniço agitado pelo vento? Um homem vestido de trajes suntuosos? Ainda uma vez, que foste ver? Um profeta? Sim, digo-vos, e mais do que um profeta… Porque, entre os que nasceram de mulher, Nenhum houve maior do que João Batista (Mt., 9, 7-11.)”, O Homem Jesus somente fala de um homem — João. Acima de todos os homens, mais perto de Jesus do que todos os homens, há Isaías na antiga humanidade e João na nossa. “Todos perguntavam no seu coração se João não seria o Cristo (Lc., 3, 15.)”. — “Eu não sou o Cristo”, vê-se ele obrigado a declarar, a fim de afastar essa proximidade que os homens não compreendem e que é para eles, mas não para ele, motivo de escândalo (Jo·, I, 20.). É o maior dos homens, porque é o mais humilde: somente quer lançar-se aos pés daquele que vem depois dele: “Eu não sou digno de desatar a correia de suas sandálias (Lc., 3, 16.)”; ele somente quer apagar-se nele, como a estrela da manhã diante do sol. Até Herodes sente essa ligação entre João e Jesus: depois do degolamento do Precursor, sabendo da fama de Jesus, disse aos seus servos: “É João Batista que ressuscitou dentre os mortos (Mt., 14, 1-2.)”· “Ele tem um demônio”, dir-se-á de Jesus, como se disse de João (Mt., II, 18.). E Jesus começará sua pregação pelas mesmas palavras que João: “Arrependei-vos, METANOSITE, porque o reino de Deus está próximo (Mc., I, 15.)”. E, no final de sua pregação, poderia também dizer o que havia dito de João aos principais sacrificadores: “Os publicanos e as mulheres de má vida vos precedem no reino de Deus! Porque João veio a vós e não acreditastes nele; mas os publicanos e as mulheres de má vida acreditaram (Mt., 21, 31-32.)”. Somente dois homens em toda a humanidade, João e Jesus, fazem mais do que ver o Fim, sentem-no, como quem aproxima o rosto de um ferro quente sente o calor que dele se irradia. João, como Jesus, sabe que o Messias é o rei, não somente de Israel, mas de toda a humanidade: “dessas pedras Deus pode fazer nascer filhos a Abraão”, diz João. “Muitos virão do Oriente e do Ocidente, e estarão à mesa no reino dos céus, com Abraão, Isaque e Jacó, mas os filhos do reino serão lançados às trevas exteriores”. dirá Jesus (Mt., 8, 11-12.). Ambos sabem que o Messias, o “Cordeiro de Deus carregado com os pecados do mundo” (Jo., I, 29), vencerá o mundo, não pela espada, mas pela cruz. “João não fez milagre algum (Jo., 10, 41·) ”, porém não é o maior de todos os milagres que todos os profetas dissessem do Messias: “Ele virá”, e que somente João tenha dito: “Ele veio”? Eis porque “entre os que nasceram de mulher, não houve maior do que João Batista”.
XX
João batiza pelo “batismo da penitência, para a remissão dos pecados”. E “confessando seus pecados, eles eram batizados por ele (Mc., 4-5.) ”. Foi assim que foi batizado Jesus? O Impecável poderia confessar seus pecados? “Cristo, então, pecou, pois foi batizado? Ergo peccavit Christus, quia baptizatus est”? perguntará o grande heresiarca Manés (9). — “Sim, pecou. Ele mesmo se considerava pecador e foi constrangido quase à força por sua mãe a se fazer batizar, paene invitum a matre sua esse compulsum”, responderá a herética “Pregação de Paulo” (10). Jesus foi um homem, pecador como todos os homens, e só quando nele entrou o Cristo com a Pomba do Espírito Santo é que se tornou sem pecado; isso é o que ensinam, sem talvez se escandalizarem a si próprios, mas escandalizando os outros, os judeus-cristãos, os Ebionitas, que são antes cristãos imperfeitos, por terem vindo demasiado cedo, do que heréticos (11).
XXI
O pior é que ignoramos o que ensina sobre esse ponto o Evangelho e, se o julgamos saber, é talvez só porque vemos os testemunhos do Evangelho através do prisma do dogma eclesiástico. Nem Marcos, nem Lucas se escandalizam por Jesus se ter feito batizar “para a remissão dos pecados”; porque venceram o escândalo ou porque ainda o não veem? Ignoramos. O escândalo foi vencido também no IV.° Evangelho, em que se não fala diretamente do Batismo e só algumas alusões nos deixam adivinhar que ele se realizou, sem que se saiba onde, quando e como. Esse silêncio não terá por fim evitar o escândalo? Somente Mateus, entre os Evangelistas, o vê e não o tenta ocultar. “Sou eu que tenho necessidade de ser batizado por ti e tu vens a mim? — Deixa fazer no momento, porque é conveniente que realizemos toda a justiça (da Lei), DIKAIOSUNEN (Mt., 3, 14-15.)”. Há uma única justiça da Lei no batismo: “a penitência para a remissão dos pecados”. Qual é, pois, o pecado do Impecável? Aí também essa pergunta fica sem resposta. Por mais apavorante que isso seja, é preciso aceitá-lo e olhá-lo frente a frente. A chave do mistério do batismo e, por conseguinte, do próprio sacramento — um dos maiores do cristianismo — não se encontra no Evangelho, a menos que não tenha sido escondida propositalmente, segundo o preceito dos mistérios pré-cristãos: “ocultar as coisas profundas”. Se, portanto, essa chave tiver de ser achada, só o será além do Evangelho.
XXII
Quem é que joga pedras sob seus passos com o propósito de dar topadas? Existe a menor probabilidade que homens, tão singelamente crentes como os primeiros discípulos do Senhor, tenham imaginado escândalo tão forte, tão complicado e tão sutil quanto este: a penitência do Impecável? Mas “quanto a nós, não podemos deixar de falar das coisas que vimos e ouvimos (Act, 4, 20.)”. Parece que aí ainda, como em todo o Evangelho, quanto mais o escândalo é grande tanto mais certa é a verdade histórica. É a pedra de toque, a pedra de escândalo, que é para nós, no batismo, o granito inabalável da história. Ignoramos como isso se passou, mas sabemos que se passou. O Batismo foi; a Tentação será: um e outro estão ligados, não somente na vida do Senhor, mas ainda na de toda a sua Igreja; ela também é batizada e será tentada até a consumação dos séculos.
XXIII
A questão do escândalo do Batismo está posta ainda com maior sutileza e profundeza do que nos nossos Evangelhos canônicos, no Evangelho dos Hebreus, apócrifo, não falso, mas secreto, que já sabemos como é antigo e autêntico: “…A mãe do (Senhor e seus irmãos lhe diziam: João Batista batiza para a remissão dos pecados; vamos também receber seu batismo. Mas ele lhes disse: Que pecado cometi para ser batizado por ele? A menos talvez que isso que estou dizendo seja fruto da ignorância, nisi forte, quod dixi, ignorantia est? (12)”. Serão autênticas essas palavras? Ignoramos, porém o mais santo dos homens não poderia dizer melhor. “Quem de vós me convencerá de pecado (Jo., 8, 46.) ?”. Para falar assim, é preciso ou ser o Pecado incarnado, o diabo, ou ser realmente sem pecado. “Mas que mal fez ele (Mt., 27, 23.)?”. A essa pergunta de Pilatos ninguém responderá. Eis aí o que há de único e divino na vida humana de Jesus: os homens poderão procurar nela o mal e o não acharão. “O divino mostra-se nela com tão grande pureza quanto é possível haver sobre a terra”. Os piores inimigos de Jesus sabem, eles próprios, que ele não pecou. Contudo, quanto mais impecável, menos se compreende porque se fez batizar e mais misterioso se torna o mistério do batismo.
XXIV
Há um João desconhecido como há um Jesus desconhecido. São ambos invisíveis, porque estão aprisionados no metal dos ícones. É necessário libertá-los. Somente vendo seus semblantes vivos saberemos o que se passou entre eles e poderemos lançar, embora de longe, um olhar ao mistério do Batismo. Em parte alguma, nos Sinóticos, João diz: “Jesus é o Cristo, isto é, o Messias”, porque “aquele que vem depois de mim é mais poderoso do que eu” absolutamente não significa que o Cristo, que vem após João, seja Deus. Do mesmo modo, João Batista não o diz no IV.° Evangelho, pelo menos em termos bastante claros para que todos entendam, reconheçam, não possam deixar de reconhecer em Jesus o Messias, o Cristo. “Há um entre vós que não conheceis (Jo., I, 26.)”. Isto é dito de maneira tal que o Inominado fique sendo, ao mesmo tempo, o Desconhecido. “Eis o cordeiro de Deus”, diz João duas vezes. Da primeira, todo o povo poderia ouvi-lo (I, 29.); entretanto, não o teria compreendido, porque, naquele tempo, todos esperavam demasiado o Messias triunfante, o rei de Israel, para poderem aceitar o Messias sofredor, “o cordeiro que tira os pecados do mundo”. Não se podia falar do Cristo aos homens em termos mais obscuros, mais secretos. Foi assim da primeira vez e da segunda (Jo., I, 35.) o Batista somente foi ouvido por seus discípulos, João de Zebedeu e André, irmão de Simão. Porém, se compreenderam, se viram alguma coisa, foi confusamente, numa espécie de obscura visão profética.
XXV
Se João tivesse podido falar, se tivesse dito de Jesus, de maneira a ser ouvido e entendido por todos: “Eis o Cristo”, tudo o que os quatro Evangelhos nos contam sobre a vida terrestre e a morte do Senhor perderia o sentido; porque o Homem Jesus só viveu e morreu para desvendar progressivamente, lentamente e com sobre-humano esforço seu rosto, revelando esse mistério, o mais inconcebível para os homens: Jesus é o Cristo. Quando Pedro, confessando o Senhor em Cesaréia, lhe disse: “Tu és o Cristo”, o Senhor poderia responder-lhe: “Não foram a carne e o sangue que te revelaram isto (Mt., 16, 16-17)” se “a carne e o sangue”, isto é, o homem João, já o houvessem revelado a todos? Se o testemunho de João tivesse sido ouvido e compreendido, poderiam os homens dizer de Jesus — “uns que era João Batista, outros que era Elias, outros que era Jeremias ou um dos profetas? (Mt., 16, 14.). Poderiam os judeus perguntar-lhe perante o povo reunido: “Quem és tu? Até quando conservarás em dúvida nossos espíritos? Se és o Cristo, dize-o francamente (Jo., 8, 25; 10, 24.)”. Enfim, o próprio João, prisioneiro, poderia fazer-lhe perguntar, ouvindo falar de suas obras: “És aquele que deve vir ou devemos esperar outro (Mt., 11, 3.)?”. E Jesus mesmo poderia, sabendo que era para João motivo de escândalo, perguntar aos judeus: “De onde vinha o batismo de João: do céu ou dos homens?” (Mt., 21, 25). Não, é demasiado evidente que aqui ainda, como em tudo no Evangelho, a contradição, insolúvel no plano histórico somente, poderá ser resolvida nos dois planos, o da história, o que foi uma vez, e o do mistério, o que foi, é e será sempre. E isto quer dizer que o testemunho de João: “Jesus é o Cristo”, não teve duração, mas só existiu num ponto do tempo, num instante-relâmpago, ou em diversos pontos do tempo confundindo-se em um só. Esse instante fulminante é a chave perdida do mistério do Batismo. Poderá ser encontrada?
XXVI
Se se acompanhar a ordem cronológica do IV.° Evangelho (e não há razão alguma para rejeitá-la), o Senhor, no primeiro ano de seu ministério, veio a Jerusalém, ao tempo da Páscoa (2, 13.), no mês de Nisã (Abril), depois de haver verossimilmente permanecido dois ou três meses na Galileia. Por conseguinte, foi batizado no começo de janeiro do ano 29 ou 30, o que concorda com a tradição da Igreja. É tanto mais provável quanto a bacia do Jordão, onde fica Betabara-Betânia, está situada perto do mar Morto, numa profunda depressão (350 metros abaixo do nível do mar). É um dos lugares mais tórridos do globo e, por isso, quase inabitável nos meses de verão. Não devia ser, pois, nessa época do ano que acorreria aonde se achava João essa multidão de peregrinos, vindos de todos os recantos da Palestina, mas antes nos meses de inverno, que ali são edênicos. O vento fresco do norte, que, em janeiro, sopra muitas vezes o dia todo, cai ao pôr do sol, dando subitamente lugar a uma calma que se não encontra em outro lugar da terra, a não ser na Galileia; mas, em outra parte, é a calma da felicidade e ali, a da tristeza. As águas do Jordão fluem entre dois muros de imbricada vegetação, quando trinta passos adiante reina um deserto de morte. Basta grimpar pela abrupta ribanceira para descobrir um horizonte infindo: uma moldura de montanhas queimadas encerrando o vale de Jericó, que domina ao norte, numa indizível majestade, a cabeça branca do Hermon nevado, semelhante ao Ancião dos Dias; para o sul, por trás da chanfradura do Jordão, tão azul que se não parece com coisa alguma da terra e evoca o céu do Éden — o mar Morto. Edênicos também os montes irisados do Moab, resplandecendo além do mar, e o pálido crescente da lua no céu róseo do poente, e as árvores dos bosques embalsamados de Jericó que exalam um perfume de incensório. Todo esse deserto, semelhante no verão a uma Geena, é no inverno como um inferno que o perdão de Deus houvesse transformado em paraíso. Mas, mesmo nesses dias edênicos, vem, às vezes, do mar Morto um hálito imperceptível de resina e de enxofre, como a lembrança do inferno no paraíso.
**XXVIII**
Foi talvez numa dessas tardes que vieram a João os levitas e sacerdotes mandados de Jerusalém pelos fariseus e, com eles, entre os peregrinos galileus, um Homem desconhecido de Nazaré.
Foi, parece, dessa tarde que Justino Mártir nos conservou um traço, proveniente das “Reminiscências dos Apóstolos”, que o Evangelho não recolheu, mas que parecem historicamente autênticas e são, provavelmente dos discípulos do Batista — João de Zebedeu, Simão e André; traço na aparência insignificante, porém realmente precioso, porque se sente que foi, na verdade, visto: “Tendo acabado de batizar e pregar, João sentou-se à margem do Jordão (13)”. Fatigado pela multidão dos que, durante o dia todo, tinham vindo batizar-se, ele sentou-se sobre uma pedra, perto da Casa do Passador, tendo escolhido um lugar elevado, de onde podia ver as multidões de peregrinos que não cessavam de afluir, apesar da aproximação da noite. Eles sabiam que não batizaria mais naquele dia, mas continuavam sempre a chegar, porque cada qual dos recém-vindos tinha ânsia de vê-lo, e nos seus olhos mergulhavam duas pupilas ardentes de um rosto peludo, duas brasas de uma moita imbricada, dois olhos que perguntavam: “Serás Ele?” Quantos já tinham desfilado em sua presença e quantos ainda desfilariam, bons e maus, sábios e tolos, belos e feios, — infinitamente diferentes, e iguais na sua insignificância! Procurá-lo entre eles não era o mesmo que procurar um diamante na areia? Contudo, persistia em procurar, indagando de cada um com os olhos: “Serás Ele?” — sabendo que um dia outros olhos lhe responderiam: “Sou eu”.
APÓCRIFO
1
Não é o rugido do leão, nem o grito estridente do gafanhoto; é um homem que fala com uma voz humana. — Quem és tu? perguntam os sacerdotes a João.
2
— Não sou o Cristo, responde pela milésima vez. Vim para batizar-vos com água, a fim de que Ele seja manifestado… Mas não sou Ele. — És, então, Elias? — Não. — Um profeta? — Não. — Então, quem és tu? (14) Eles veem, veem sempre, e nos olhos de cada um mergulham aquelas pupilas: “Não és tu?” — “Não; não sou eu”. E passam, apagam-se como sombras na sombra do crepúsculo que cai. — Quem és, pois? Para que possamos responder aos que nos mandaram, que dirás de ti? — Eu sou a voz do Senhor clamando no deserto: preparai o caminho do Senhor! — Por que batizas, se não és o Messias, nem Elias, nem um profeta? — Eu vos batizo com água, mas há UM entre vós… (15) De súbito calou-se· Seus dois olhos, duas brasas, refulgiram com um fulgor maior do que nunca. Como eriçados pelo medo, seus cabelos se arripiaram, sua juba leonina se empinou. E, tal qual o leão que fareja o anho, ergueu-se de um salto. Dois olhares — dois raios — cruzaram-se; duas flechas tocaram o alvo: “Tu?” — “Eu”. O sol ainda não entrara no ponto equinocial, mas já o tocava; as mãos dos Serafins ainda não haviam inclinado o eixo do mundo, mas já pesavam sobre ele, fazendo-o estremecer.
3
Aqueles que passavam diante dele pararam repentinamente, procurando com os olhos, na multidão, o que João olhava; procurando-o, sem encontrá-lo, porque se parecia com toda a gente e “nada tinha que chamasse a atenção”, esse desconhecido vindo de Nazaré (16). Ele desapareceu na multidão, se apagou como uma sombra na sombra do crepúsculo que caía. Ninguém O viu. Ninguém O reconheceu. Mas houve um silêncio tal como o mundo nunca sentira nem jamais sentiria. Sobre todos passou um sopro de medo e alegria tal como nunca sentira nem jamais sentiria. Ninguém O viu. Ninguém O reconheceu. Mas todos o sentiram: “É Ele”.
**XXIX**
Foi provavelmente nessa noite que houve entre João e Jesus um entendimento secreto. Sabemos que houve realmente pelo testemunho de Mateus (3, 14, 15.); sabemos também que não foi João que veio a Jesus, mas Jesus que foi a João (3, 13.). Foi ele quem quis romper um silêncio de vinte anos, manifestar-se ao mundo: portanto, estando ainda em Nazaré, antes de ver João, é que disse: “Minha hora chegou”. “E, confessando seus pecados, eles eram batizados (Mc., I, 5.)”. Essa conversa noturna não parece uma confissão? Se soubéssemos o que se disseram, poderíamos lançar um olhar ao mistério do Batismo, além do Evangelho.
**XXX**
Dessa conversa somente conhecemos o começo e o fim. “Sou eu que preciso ser batizado por ti, e vens a mim?” Eis o começo, e eis o fim: “Então, João O deixou fazer”. A frase tão breve e tão obscura de Jesus: “Convém que cumpramos, assim, toda a justiça” não liga esse começo a esse fim? (Mt., 3, 14-15.). Que significa: “assim”? No I.° Evangelho, anel principal da cadeia, o anel do meio caiu. Mas não se perdeu para nós, porque o encontramos no IV.° Evangelho: “Eis o Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo”; o “Servo do Senhor, ebed lahvé” da profecia de Isaías, eis o anel caído. É mais do que provável que entre Jesus e João essa palavra foi pronunciada. E, de novo, como há pouco, na multidão, dois olhares se cruzaram: “Tu”? — “Eu”. Somente Jesus e João, do começo à consumação dos séculos, sabem o que quer dizer o “Cordeiro de Deus, o Servo do Senhor”; somente eles sabem que essas palavras decidem tudo nos eternos destinos do mundo. “Ele não tinha aparência, nem grandeza”. Talvez João se lembrasse disto e só então, olhando Jesus, compreendeu o que significava: “Ele era desprezado, abandonado pelos homens… e nós lhe virávamos o rosto… e nós não fizemos o menor caso dele (Is., 53, 2-3)”. Durante vinte anos, João o desprezara, não fizera caso dele; durante vinte anos o fugira, como um inimigo; e eis que lhe não pudera escapar. Foi talvez nesse momento que lhe caíra aos pés. “E tu vens a mim?… Eu não sou digno de desatar a correia de tuas sandálias (Mc., I, 7.)”. Compreendeu porque Jesus viera a ele, para ser batizado; não para se libertar do pecado, mas para se carregar com o pecado dos outros. “Ele tomou sobre si os pecados de muitos… e intercedeu pelos pecadores (Is., 53, 5, 12.)”.
**XXXI**
João teria, no entanto, compreendido tudo? Se sim, como poderia mais tarde “se escandalizar”, perguntar: “És Aquele?” Durante vinte anos, eles guardaram silêncio sobre a mesma coisa, porém muito diversamente. Dir-se-iam dois taciturnos que, tendo perdido o uso da palavra, recomeçassem a falar: ser-lhes-ia preciso, para se juntarem, atravessar a parede de vidro do silêncio; veem-se, mas não se ouvem; então perto e longe, ao mesmo tempo; tanto mais longe quanto mais perto. O relâmpago brilhou: Um viu tudo; o outro não viu tudo e o que viu o cegou. Se, mais tarde, João “se escandalizou” não teria sido porque, desde o primeiro entendimento com Jesus, começou a se escandalizar, a vacilar, a pestanejar como a estrela da manhã em presença do sol? Estava, ao mesmo tempo, cheio de dúvida e de fé, de alegria e de pavor: Ele? Não ele? “Quem és tu?” A essa muda pergunta de João que poderia responder Jesus, como se nomear? “Filho de David”? Mas ambos sabiam que “dessas pedras Deus pode fazer nascer filhos a Abraão” — filhos de David. “Filho do Homem”? Mas “Filho do Homem”, bar nascha em aramaico, significa. simplesmente homem. Ora, se Jesus era realmente “Aquele que devia vir”, não era unicamente homem. Também não se poderia dizer “Filho de Deus”, porque, se assim dissesse, João lhe teria respondido: “Tu não és Ele”, e com razão, pois se o homem “dá testemunho de si próprio, seu testemunho não merece fé” (Jo., 5, 31.). À sua pergunta muda: “Quem és tu?” João só poderia ler uma resposta muda nos olhos de Jesus: “Bem-aventurados aqueles a quem não escandalizarei! (Mt., 11, 6.)”. É provável que, entre eles, tudo foi até esse limite extremo, mas ele não foi transposto e não foi dito: “Tu és Ele”. Ambos falavam do Messias na terceira pessoa: “nem EU, nem TU, mas ELE”. Foi assim, aliás, que Jesus falou de si próprio durante toda a sua vida, até na última resposta ao Sumo Pontífice: És o Messias, o Cristo?” — “Eu O sou”. E por isso foi crucificado. O essencial, verossimilmente, não foi dito nessa conversa; sobre isso ambos guardaram silêncio. Mas, mesmo calando-se, ambos se compreenderam, ou melhor, João quase compreendeu, somente Jesus compreendeu tudo.
**XXXII**
Que foi, pois, o que impediu João de tudo compreender e de dizer a Jesus: “Tu és Ele”? Foi mesmo porque “entre os que nasceram de mulher nenhum houve maior do que ele” (Mt., II, II·), o que separa a borda da terra da borda do céu, a lei da liberdade, o Antigo Testamento do Novo; porque “não se põe um remendo novo numa roupa usada” e “não se deita o vinho novo em odres velhos” (Mt., 9, 16-17); porque João batiza com água e Jesus com fogo; porque João “não fez milagre algum” (Jo., 10, 41) quando Jesus realizou muitos; porque seu primeiro milagre, o mais simples, o mais infantil, o que foi para João o mais incompreensível, o mais inverossímil: a transformação da água em vinho, nas bodas de Caná, na Galileia, o primeiro degrau da escada — Água, Vinho, Sangue, Fogo, Espírito — escada que sobem as crianças e os anjos, mas que João, o maior dos homens, não subirá. “Se não mudardes e não vos tornardes como crianças, não entrareis no reino dos céus (Mt., 18, 13.)”. João não mudou, não se tornou criança e não entrou no Reino. Jesus começará sua pregação com as mesmas palavras que João: “O reino de Deus está próximo; arrependei-vos, convertei-vos”. Mas acrescentará: “E acreditareis na Boa Nova, no Evangelho (Mc., 1, 5.)”. É essa Boa Nova que João ignora. “O reino de Deus deve ser forçado, BIAXETAI, e são os violentos, BIASTAI, que o conquistam (Mt., 11, 12.)”. Tomam-no de assalto como uma fortaleza assediada, rompendo o muro da Lei, a fim de penetrar na cidadela do Reino. Jesus entrou em primeiro lugar. Essa “violência”, com efeito apavorante — essa apavorante liberdade, essa “doçura”, essa “leveza”: “Meu jugo é doce, meu fardo é leve (Mt., 11, 30.)”, eis o que apavorou João. A vida e a morte de João, o maior dos homens, são ainda uma tragédia humana; a vida e a morte de Jesus são uma Divina Comédia. Um simples fio separa João do reino de Deus, mas parece o fio sangrento que traçou no seu pescoço o ferro que o decapitou.
**XXXIII**
Pobre grilo esmagado, pobre leão malferido! Quem matou João? Herodes? Não. O sol levante apaga a estrela matutina. O Precursor, o Predecessor foi morto por Aquele que anunciou. “É preciso que ele cresça e que eu diminua” — que eu morra (Jo., 3, 30). Morrendo, João compreendeu a resposta de Jesus à sua pergunta: “Quem és tu?” “Ide dizer a João o que ouvis e vedes: os cegos recobram a vista, os aleijados caminham, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e o Evangelho é anunciado aos pobres. Bem-aventurado aquele a quem não escandalizarei (Mt., 11, 4-6.)”. Na sua vida, João não conheceu essa bem-aventurança; talvez a tenha conhecido na morte. Quando da fresta de sua prisão, em Maqueronte, João via, acima dos areais fulvos do deserto, pairar como pesada nuvem azul o cume do Nebo, onde Moisés morrera sem ter podido entrar na Terra da Promissão, que somente de longe avistara, então talvez dissesse consigo: “E eu também sou como ele”. Tal é a sorte de todos os precursores: conduzir os outros e não entrar no reino de Deus.
**XXXIV**
A salva com a cabeça do Precursor foi oferecida a Herodíades, a meretriz coroada. Herodes, o assassino, chorou de pena, olhando as pupilas vítreas da vítima. Lágrimas de bêbedo pingaram na bandeja, da qual o sangue gotejou nas pernas de Salomé, a dançarina. E a alma do Precursor estremeceu de alegria no céu, com a estrela da manhã diante do sol, como o filho nas entranhas maternas. “O amigo do esposo, que está junto a ele, e que o escuta, alegra-se, ouvindo-lhe a voz, e é essa a minha alegria perfeita (Jo., 3, 29.)”. Duas cabeças, uma cortada na bandeja, a outra curvada na cruz, e entre elas o mundo inteiro, chorando como Herodes, dançando como a filha de Herodes. O fim de Israel é o terrível preço da primeira; o fim do mundo, o preço ainda mais terrível da segunda.
**XXXV**
A alegria do Precursor terminou no céu, mas já começou na terra, em três instantes-relâmpagos: o primeiro, quando viu Aquele que veio; o segundo quando conversou com ele; o terceiro, quando o batizou. É nesse terceiro instante que nos aproximamos, mais do que nunca nestes dois mil anos de cristianismo, do mistério atual e futuro do Fim, no sentido atual e futuro destas palavras do Senhor, as derradeiras que pronunciou na terra e que se dirigem talvez mais a nós do que a ninguém: “Ide, ensinai a todas as nações, batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo… E eis que estarei convosco todos os dias, até o fim do mundo. Amém (Mt., 28, 19-20.)”. É bem aqui, melhor do que em qualquer outra parte, e hoje mais do que nunca, que entrevemos porque o batismo, não o de água, mas o de fogo, é o caminho que leva ao Fim.
