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Merejkovsky – Jesus Desconhecido (II.2)
Dmitri Merejkovsky – Jesus Desconhecido. Tr Gustavo Barroso. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1935
**PARTE DOIS**
**VIDA DE JESUS DESCONHECIDO**
**II. A VIDA OCULTA**
I
“Eles regressaram à Galileia, a Nazaré, sua cidade. O menino crescia e se desenvolvia, era cheio de sabedoria (Lc., 2, 39, 40.)”. Se se acrescentar a esses dois versículos um curto relato sobre Jesus adolescente, é tudo o que Lucas sabe sobre os trinta anos da vida do Senhor que precederam o batismo. Mateus sabe menos ainda, porque a adoração dos Magos e a fuga para o Egito não são história e sim mistério. Os dois outros Evangelistas, Marcos e João, nada sabem ou nada querem saber. “Ora, aconteceu naquele tempo que Jesus veio de Nazaré, cidade da Galileia, e foi batizado por João no Jordão”. É assim que Marcos (I, 9.) começa seu “Evangelho de Jesus Cristo”, devendo essa palavra ser tomada, não no sentido de “livro”, mas no de “vida”, como se, para Marcos, toda a vida anterior de Jesus não fosse ainda a vida do Cristo. Quanto a João, somente nestas poucas palavras encerra trinta anos da existência do Homem Jesus: “O Verbo fez-se carne (I, 14.)”. Aqui, claramente, conscientemente, não é mais o tempo e sim a eternidade, não é mais a história e sim o mistério.
Pode-se dizer que conhecemos Jesus melhor depois de sua morte do que antes de seu batismo. Um leve raio de luz — um, dois ou três anos de sua vida — e todo o resto só trevas. E que há nessas trevas? “Nós não o sabemos e vós não tendes necessidade de saber para serdes salvos”, parece que respondem com vozes diferentes as quatro testemunhas. A luz que projetam sobre a vida de Jesus se apresenta de tal modo que ela se assemelha a um longo e estreito corredor, no qual se vê, perto da saída — da morte —, brilhar um ponto cheio de deslumbrante claridade — a Ressurreição. À medida que nos afastamos desse ponto, as trevas se tornam espessas e é perto da entrada — da Natividade — que são mais espessas. A luz vai aumentando do começo da vida de Jesus para o fim, ao mesmo tempo que o curso da vida se acelera: as algumas dezenas de anos que medeiam do Nascimento ao Batismo são as menos iluminadas; o ano ou os dois ou três anos que vão do Batismo à Transfiguração o são ainda mais, e, quanto mais se avança, mais viva se torna a claridade que se derrama sobre os meses da Transfiguração à Entrada em Jerusalém, os dias da Entrada ao Getsêmani, as horas do Getsêmani ao Gólgota, enfim os minutos do Gólgota.
II
Qual a significação de tudo isso? Para compreendê-lo, lembremos o testemunho de Santo Inácio Teóforo: “Jesus nasceu verdadeiramente homem, TOU TELEION ÁNTHROPON GENOMENOUN (I)”; o de São Justino Mártir: “Enquanto ele (Jesus) crescia como qualquer outro homem, usou do que convinha e deu a cada desenvolvimento aquilo que lhe era próprio (2)”; o de São Lucas: “Jesus veio a Nazaré onde fora criado, TETHRAMMÉN0S (14,16.); o da Epístola aos Hebreus: “sofrendo… ele aprendia… atingia à perfeição… (5, 8-9.)”; e, afinal, uma antiquíssima lenda que parece remontar aos primeiros séculos do cristianismo e se conservou com São João Damasceno (século VIII): “Ele tinha o mesmo semblante que nós, filhos de Adão (3) ”.
O nome de Jeschua (Deus te socorrerá) era, então, tão comum entre os judeus quanto entre nós os de João ou Pedro. Flávio Josefo conta onze Jesus: cara-poneses, chefes, rebeldes, sacerdotes, bandidos (4). Por isso, Marcos, nomeando Jesus pela primeira vez, acrescenta “de Nazaré, na Galileia” — sem o que não se compreenderia de quem se tratava. Seu nome, seu nascimento, seu crescimento, sua vida, seu semblante, tudo era “como o de toda a gente”. Se não é ainda a chave deste enigma: que fazia Jesus, como vivia trinta anos antes de se manifestar ao mundo? é talvez onde devamos procurá-la.
III
Por pouco que saibamos desses trinta anos, aí já encontramos um ponto de apoio historicamente inabalável contra todos os docetas antigos e modernos, que repetem com Marcion: “Jesus desceu diretamente do céu na cidade da Galileia, Cafarnaum”… “Imediatamente grande, imediatamente tudo, semel gimndis, semel totus (5)”. Não, ele não “desceu do céu” e não foi “imediatamente grande”: ele desenvolveu-se lentamente, “cresceu”, foi “educado”, “aprendeu”, “encheu-se de sabedoria”, “fortaleceu seu espírito”, “sofreu”, “atingiu à perfeição”, e isso não só durante os trinta anos que precederam sua manifestação ao mundo, porém ainda durante toda a sua vida até o derradeiro suspiro. Oh! certamente só foi “como toda a gente” exteriormente; interiormente, era “como ninguém”.
IV
Jesus foi o Cristo desde antes de sua manifestação ao mundo? Ou todo o cristianismo é uma impostura ou é uma verdade que “o Verbo se fez carne”. Portanto, Jesus sempre foi o Cristo ou, mais exatamente, o Cristo sempre esteve em Jesus. Como um véu que cobre um rosto, uma vagem que esconde uma fava, Jesus encerra o Cristo. Teria ele podido dissimular-se ao mundo, não se trair durante trinta anos, nem por um gesto, nem por uma palavra, nem por um ato, se ele próprio não o tivesse querido, se não estivesse de todo voltado para dentro, para ele mesmo, nessa primeira metade de sua vida, com a mesma força infinita e vitoriosa do mundo, que ele teve na segunda parte, para se voltar, então, para fora, de todo, para o mundo? “Meu tempo ainda não chegou”; “Minha hora ainda não chegou”, quantas vezes repete isso (Jo.,7,6; 2,4.). Parece que aí está a chave do silêncio de Jesus. “Tendo ido à sua pátria (Nazaré), ensinava na sinagoga, de modo que todos se admiravam e diziam: de onde vêm a esse homem essa sabedoria e esses milagres… E ele era para eles uma ocasião de queda (Mt., 13, 54, 57.)”. Eles viveram trinta anos a seu lado, sem saber com quem viviam. Foi, portanto, porque ele nunca disse nem fez nada no meio deles que o pudesse trair — ocultava-se, calava-se. “Ele estava no deserto até o dia de sua aparição a Israel”, foi dito de João Batista, mas o mesmo não poderia dizer-se do Cristo: aquele no deserto exterior; este no deserto interior. “Há um entre vós que não conheceis (Jo., I, 26)”, dirá dele o Precursor na própria véspera de sua manifestação.
V
Naquele tempo, o judaísmo estava pronto para receber a imagem de um Messias-Cristo “oculto”. “Quando o Cristo (o Messias) vier, ninguém saberá de onde ele é”, disseram a Jesus os fariseus de Jerusalém (Jr., 7,27.). E Trvnhon o Judeu (aí por 150) dizia a mesma coisa a Justino Mártir: “O Messias já veio, mas se esconde por causa de nossas iniquidades”. — “O Cristo, se nasceu e existe em qualquer parte, é desconhecido: não se conhece a si próprio; não tem nenhum poder, enquanto Elias não vier ungi-lo e manifestá-lo a todos”. — “Se o Messias já veio, não se sabe quem ele é; somente quando se manifestar na sua glória se saberá quem é (6) ”. Eis o véu já preparado, que parece tecido de propósito para seu rosto, com que Jesus se cobriu.
VI
Se assim é, compreende-se o silêncio de todos os Evangelistas sobre os trinta anos de sua vida oculta: calam-se sobre ele, porque ele próprio se calou sobre si. A vontade de seu Pai, na segunda parte de sua vida, é que ele fale, se manifeste ao mundo, enquanto que, na primeira, é que se oculte e cale. E ele cumpriu as duas vontades, falando e calando como jamais alguém o fez; o milagre de sua palavra somente é igualado pelo milagre de seu silêncio. O mistério de sua vida oculta é o mistério da semente que cresce. “O Reino de Deus é como a semente que um homem lança à terra: quer durma ou vigie, noite ou dia, a semente germina e cresce sem que ele saiba como (Mc. 4,26-27.) ”. O Cristo leva trinta anos para nascer em Jesus; já nascido na eternidade, nasce de novo no tempo. Se todo nascimento terrestre é, como ensinam os órficos, a queda da alma, descendo do céu sobre a terra, os entes terrestres como nós não devem descer de grande altura; porém ele, o Celeste, quantos eons e que eternidades não teve de atravessar!
VII
Cala-se durante trinta anos, forjando a arma com que vencerá o mundo. Durante trinta anos, a flecha queda-se imóvel na corda esticada do arco: o arco é Jesus, a flecha é o Cristo. Conduzindo uma tocha acesa, um homem segue pelo carreiro estreito de uma floresta seca; basta uma faísca para atear o incêndio; mas não se deve atear antes que o homem que leva a tocha chegue ao fim: a floresta é o mundo; o homem é Jesus; a tocha é o Cristo. Entretanto, suas palavras que vão vencer o mundo são simples vagas à superfície de um mar de silenciosas profundezas. Em Deus, ensinam os gnósticos, há dois Eons: o Verbo, Logos, e o Silêncio, Zigé. O Verbo se fez carne e o Silêncio também.
VIII
Quando se lê bem o Evangelho, escreve-se, independente da vontade, no coração, um apócrifo, não um “falso” Evangelho, porém um Evangelho “oculto” (7). Para um desses apócrifos, Nazaré, cidade da Galileia, conservou-se milagrosamente até nossos dias como um frontispício traçado, não sobre o pergaminho, por um escriba, porém sobre a terra, por Deus.
IX
Ao norte da grande planície de Jezrael — um mar de trigais verdes na primavera e dourados no outono — sobre os primeiros contrafortes em suave declive da Baixa Galileia, existe um vale todo rodeado de colinas, berço de vida oculta. Antonino Mártir, peregrino do século VII, comparou-o ao Paraíso. (8) O nome de Nazaré, “Nazara”, “a Protetora”, é talvez o nome da antiga deusa da Terra Mãe de Canaã (9) . Ali, com efeito, a terra é, para os homens, generosa como uma mãe: tão fértil, assegura o Talmud, que é mais fácil alimentar com azeitonas toda uma região da Galileia do que um menino no país de Judá (10) . Talvez seja a mesma terra a que se referem os Salmos: “Tu coroas o ano com teus bens e sobre seu caminho teu carro semeia a abundância. As pastagens do deserto são regadas abundantemente e as colinas se adornam de alegria. Os campos vestem-se de rebanhos e os vales cobrem-se de trigais: por toda a parte cantos e gritos de contentamento! (Ps., 65, 12-14.)”. O ar das serras é fresco: nos dias mais cálidos, a frescura da brisa sopra das montanhas ou do mar próximo. Às vezes, os invernos são duros: a neve cai, cobrindo de estranha brancura os ciprestes e palmeiras por pouco tempo, porque derrete aos primeiros raios do sol (11).
As casinholas caiadas e baixas, com seus eirados, espalhadas como dados no meio dos bosques de oliveiras e dos vinhedos, no declive das colinas e nos vales, formam estreitas vielas em escadaria que grimpam pelas ladeiras para o céu, sombreadas e cheias de um odor suave de azeite doce, de vinho verde e de estrume de cabras. Por vezes, um raio de sol, cortando as sombras, ilumina as roupas de cores variegadas secando em cordas através das ruazinhas ou sobre os cactos espinhosos, nos lugares em que as habitações são separadas pelos quintalejos (12). O interior das casas é pobre: uma única sala dividida ao meio; de um lado, de chão de terra batida, dois degraus mais altos, mora a família; do outro, mais baixo, fica o gado. As paredes de barro, enegrecidas pela fumaça, têm como janelas estreitas fendas gradeadas. De dia, para se enxergar melhor, abre-se a porta de entrada; à noite, acende-se uma lâmpada de argila posta sobre alto suporte de ferro ou sobre uma pedra saliente da parede. No chão, um fogareiro de cobre, cujo fumo sai pela porta. Ali estão também todos os moinhos de mão. Dois ou três bancos, algumas arcas de roupa, algumas medidas de frutos secos e de farinha, jarras de vinho e azeite ao longo das paredes — eis toda a mobília. Dorme-se no solo, sobre tapetes e esteiras que, de dia, se enrolam a um canto. Nas noites de verão, vai-se dormir no eirado da casa sob o azul estrelado (13). Foi talvez numa dessas humildes casinhas que Jesus viveu.
X
A cidade não é mais hoje o que foi ao tempo de Jesus, mas em volta dela nada mudou: nem as tendas escuras dos beduínos nômades e as cáfilas de camelos na planície de Jezrael, nem as ovelhas e cabras balindo na madrugada nevoenta perto do bebedouro, onde escorre a única fonte do vale (14), para a qual as raparigas descem com seus cântaros; as andorinhas esvoaçam sobre as casas soltando gritos alegres; o estridular das cigarras sobe para o espaço, apenas perceptível no alto, porém ensurdecedor lá em baixo, quando, ao sol de meio dia, o vento quente agita o dourado mar dos campos imensos. A duas horas de caminho de Nazaré, fica Séforis-Diocesaréa, capital da Baixa Galileia, com seus teatros romanos, suas escolas, seus banhos, suas arenas, seus templos, suas dezoito sinagogas e uma multidão de escribas (16). Mas esse rumor não chega até Nazaré, onde reina o mesmo infinito silêncio que na vida de Jesus Adolescente.
XI
“Poderá vir alguma coisa boa de Nazaré? (Jo. 1,46.)” — “O Cristo (o Messias) virá da Galileia? (Jo., 7,41.)” — “Informa-te e verás que não saem profetas da Galileia (Jo., 7,52.) ” — “Esse povo sentado nas trevas… e na sombra da morte (Mt., 4,45.)”. A “Galileia”, “Gelil-ha-Goim”, significa “Círculo dos Gentios”. O sangue dos próprios judeus que ali habitam é “impuro”, misturado ao sangue fenício, babilônio e heleno (17). Até o modo de falar galileu é impuro, pois confunde as vogais guturais do hebraico (18). Não valeu à pena Pedro renegar o Senhor na noite fatal, no pátio de Caifás, porque foi reconhecido pela sua pronúncia: “és também dessa gente, pois o reconhecemos pelo teu modo de falar” (Mt., 26, 73.). Foi assim talvez que o próprio Jesus se denunciou. Só nas grandes cidades e sobretudo em Jerusalém viviam os judeus de sangue puro, chabar, que eram piedosos “homens da lei”, enquanto que os rústicos, am-ha-arez, que povoavam as pouco numerosas cidades da Galileia, eram ignorantes que “não conheciam a lei”. “Nenhum am-ha-arez é piedoso”, declara o rabino Hillel, contemporâneo e mais velho do que Jesus (20). “Não se deve vender nem comprar aos amhareanos, nem entrar em suas casas, nem recebê-los nas suas, nem ensinar-lhes a lei”. Somente o homem instruído é santo, o “ignorante” não teme o pecado (21)”. “ Essa populaça que não conhece a Lei é execrável”, dirão os fariseus de Jerusalém, falando dos “homens obscuros da terra”, dos amhareanos (Jo., 7,41)“.
XII
Mas, como acontece muitas vezes, foram os doutos que se revelaram ignorantes por terem esquecido o essencial: não é a Judeia, porém a Galileia dos pagãos, o “povo sentado nas trevas e na sombra da morte” que verá “resplandecer uma grande luz”; é justamente entre esses “homens obscuros” que o Messias aparecerá; é deles que foi dito: “O Senhor me ungiu para anunciar a boa nova aos pobres” (Is., 61,1.). Por essas palavras Jesus começa sua pregação em Nazaré sobre o iminente reino dos pobres — o reino de Deus (Lc., 4, 17-19.). O próprio nome do Messias entre os profetas do Antigo Testamento é Ani, o “Pobre” (22). É por isso que são os pastores de Belém, os “doces homens da terra”, os pobres, os primeiros que, entre os homens, saudaram o Cristo Menino, o Doce entre os doces, o Pobre entre os pobres (23).
XIII
José e Maria são gente humilde, o que se vê logo pelo fato de trazerem para a purificação, depois do parto, duas pombas, oblatas dos pobres (Lev., 12,7-8.). Contando a parábola da dracma perdida, Jesus talvez se recordasse de sua mãe procurando na humilde casinhola de Nazaré uma moedinha esquecida; ela acendera a candeia, varrera o aposento e, quando a achou, ficou cheia de contentamento, como se tivesse perdido e tornado a encontrar um tesouro (Lc., 14, 8-9.).
XIV
O historiador eclesiástico Hegesipo conservou um relato que lança um pouco de luz sobre toda a vida oculta de Jesus. O imperador Domiciano (81-96), amedrontado pela profecia sobre o Messias, o grande rei, filho de David, que “derrubaria os poderosos dos tronos” (Lc., 1,52), ordenou que se matassem todos os descendentes de David. E, quando lhe informaram que os dois netos de Judas, irmão do Senhor, Zoker e Jacob, ainda viviam, mandou buscá-los em Bataneia, onde se escondiam. Trazidos para Roma, perguntou-lhes o que faziam. “Trabalhamos no campo”, responderam-lhe, mostrando as mãos cheias de calos. Vendo-os tão simples e humildes, Domiciano os mandou embora (24). Se é verdade que os netos se parecem com os avós, antes de dizer: “Vede os lírios dos campos como crescem, e não trabalham nem fiam”, Jesus também havia trabalhado. “Eu sofri com os desgraçados, Tive sede com os sequiosos, Tive fome com os famintos (25”, e trabalhou com os que trabalham, sendo nisto, como em tudo, nosso Irmão.
XV
“Quem não ensina um ofício a seu filho ensina-o a roubar”. O carpinteiro José deve se ter lembrado dessa parábola dos rabinos, começando a ensinar seu ofício a seu filho (26). Marcos chama a Jesus “carpinteiro” (6,3.) e Mateus, “filho do carpinteiro” (13,55.), ou porque Jesus cedo deixou o ofício paterno, ou porque Mateus já duvide que o Filho de Deus tenha podido ser carpinteiro. A palavra grega tekton, em aramaico naggar, significa, ao mesmo tempo, “carpinteiro”, “marceneiro” e “pedreiro”, isto é, “mestre de obras”, como diríamos hoje (27). Assim, no “Proto-Evangelho de Tiago”, José constrói casas (28). “Jesus fabricava charruas e cangas”, diz Justino Mártir, relatando um testemunho verossimilmente muito antigo e provindo de fonte ignorada, mas cuja precisão e cujos pormenores nos fazem crer seja autêntico (29). Segundo a lenda que nos conservou o gnóstico Justino, Jesus adolescente “fazia pastar as ovelhas em Nazaré” (30). Nessa diversidade de testemunhos, não há contradição: Jesus poderia ter sido, ao mesmo tempo, pastor, marceneiro, pedreiro e carreiro, segundo a idade e a necessidade. Todos os testemunhos estão de acordo quanto ao essencial: ele comia seu pão com o suor de seu rosto, “como todos os homens, filhos de Adão”.
XVI
O trabalho é uma bênção de Deus? Não: é a sua maldição. “A terra será maldita por tua causa, disse o Senhor a Adão, e tu comerás o teu pão com o suor de teu rosto até que retornes à terra de que foste tirado (Gen., 3,17-19.) ”. O tormento do trabalho maldito está ligado ao tormento da desigualdade, ao ódio recíproco do esfaimado e do farto. Esse duplo tormento foi expresso no Evangelho de modo inigualável; esses dois “problemas sociais”, para empregar nossa linguagem inferiormente ímpia, foram levantados à maior altura pelo Evangelho, da terra até o céu. Nele somente é que o asfodélio dos prados subterrâneos, a Pobreza que rescende ao inferno, se metamorfoseia em um lírio de perfume edênico. Poderemos esquecer isso quanto quisermos, dia virá em que nos lembraremos. O que é infinitamente mais real e mais terrível para nós, ou mais desejável, é que o que chamamos “revolução social” nasceu com o Evangelho e somente com ele morrerá. “Bem-aventurados os pobres, porque deles será o reino dos céus (Mt., 5, 3.)!” Somos capazes de compreender essas palavras? É disso, talvez, que, na nossa Europa, outrora cristã, depende, hoje mais do que nunca, a salvação da humanidade.
XVII
“Ninguém conhece o Filho a não ser o Pai (Mt., II, 27.)”. Eis o que se não deve esquecer, não só falando da pessoa divina, mas também da pessoa humana do Cristo. Se um véu que ninguém, salvo ele próprio, jamais pôde erguer, cobre sua vida pública, outro mais espesso cobre sua vida oculta — os dias durante os quais o Cristo nasce em Jesus: somente ele pronunciou na vida pública algumas palavras que esclarecem um pouco esses dias; somente suas próprias palavras nos ensinam sobre sua vida oculta coisas inconcebíveis para nós, incríveis, portanto verdadeiras, como o quer a lei geral que se aplica a tudo o que sabemos dele: quanto mais incrível mais verdadeiro.
XVIII
“Eu e o Pai somos um só (Jo., 10, 30)”. eis o que nele há de mais incrível e de mais verídico. Isto, nunca nenhum homem antes dele disse assim, e, depois dele, jamais alguém dirá assim: nesse amor do Filho pelo Pai, o Homem Jesus é Único. Ele aprende a falar sentado nos joelhos de sua Mãe; porém não é com ela nem com nenhuma outra pessoa humana que aprendeu a amar o Pai. Ama-o naturalmente, como respira. “Abba, Pai, balbucia antes de ter consciência de si mesmo. Nele o sentimento do Pai é tão primordial quanto nos outros homens o do próprio “eu”. Ele diz:… “Pai”, como nós dizemos “Eu”. Um único homem no mundo — Jesus — amou a Deus, porque somente ele conhecia Deus. “Pai justo! O mundo não te conheceu; mas eu, eu te conheci (Jo., 17, 25.)”. Só ele, o Único, ama — conhece o Pai. Os homens chamam a Deus “Pai” porém entre seu tom e o dele há tanta diferença quanto entre a palavra e a ideia. Ninguém cumpriu o primeiro mandamento: “amar a Deus”; jamais alguém amou a Deus, porque, para amar, é necessário conhecer e ninguém conhece ou vê Deus. Ver Deus é, para todos os homens, morrer; somente para o Filho ver Deus era viver. “Aonde irei longe de teu Espírito, aonde fugirei longe de tua Face (Ps., 139, 7),?” Os homens fogem de Deus; Jesus vai para ele como um Filho para seu pai. Antes dele, toda piedade é somente “temor de Deus”. Mas o temor não é o amor. Não se pode amar temendo, como não se pode aquecer gelando. “Não há temor no amor, mas o amor perfeito bane o temor, porque o temor é acompanhado pelo sofrimento (I Jo., 4, 18.) ”. Todos agora compreendem isso, porém antes de Jesus ninguém sabia. Jesus não tem temor de Deus: o Filho ama ao Pai sem temor. “Eis aqui um lugar perto de mim; ficarás sobre este rochedo; e, quando minha glória tiver de passar, eu te meterei numa gruta do rochedo e te cobrirei com minha mão até que tenha passado. Retirarei, então, a minha mão, e tu me verás pelas costas, porque minha face não pode ser vista”, disse o Eterno a Moisés (Ex., 33, 21-23.). Somente um homem, Jesus, viu Deus face a face.
XIX
Os peixes das cavernas, privados de olhos, não sabem o que é a luz; também os homens não sabem o que é Deus: um único peixe teve olhos para ver a luz, o Homem Jesus. As plantas também veem a luz, pois se inclinam para ela, voltam as folhas para o sol e abrem as suas flores. Mas, entre as duas vistas, a animal e a vegetal, há menos diferença, por ser quantitativa e não qualitativa, que entre os dois conhecimentos, o que os homens têm de Deus e o que o Filho tem do Pai. Jesus nunca disse: “amo a Deus”; o Filho não fala de seu amor pelo Pai, porque ele é o próprio Amor. “Senhor, mostra-nos o Pai e isso nos bastará”. — “Há tanto tempo que estou convosco e ainda não me conheceste, Filipe! Aquele que me viu, viu o Pai (Jo., 14, 8-9.)”. Isso nenhum homem nunca disse e jamais o dirá. Nunca chama seu Pai “Deus” e nunca diz aos homens “Nosso Pai”, mas sempre “meu” ou “vosso”, porque só ele é o Filho, o Único. Os homens sentem em Deus o Criador e neles próprios as criaturas: um único homem, Jesus, tem o sentimento de ser nascido e não de ter sido criado. Para ele, o mundo se divide em duas partes: de um lado, toda a humanidade; do outro, ele sozinho com o Pai.
XX
O nascimento, essa terrível queda do céu à terra, parece que destrói a memória dos homens. Somente ele a conserva. O que foi antes do nascimento e o que será depois da morte, no seio do Pai, guarda no seu “conhecimento-lembrança” (a anamnésis de Platão). “Antes que Abraão fosse, Eu- sou (Jo., 8, 58.)”. Isto é para ele tão simples e natural quanto para nós a palavra “ontem”. Nesse sentimento de preexistência ao mundo, ele é, como em tudo mais, único. Vive nos dois mundos ao mesmo tempo: neste e naquele. “Eu saí do Pai e vim ao mundo; agora, deixo o mundo e vou para meu Pai (Jo., 16, 28.)”. Para ele, o outro mundo não é a negra noite que se nos afigura, mas um crepúsculo diáfano, quase como este. Jesus lembra-se do céu como um exilado se recorda de uma pátria, não distante, porém próxima e que deixou na véspera. Ele sabe e se recorda de tudo o que foi e de tudo o que será, mas não o pode dizer aos homens; suporta a tortura do mutismo eterno, da incomunicabilidade. “ó raça incrédula, até quando estarei convosco? Até quando vos suportarei? (Mc., 9, 19.)”. Ama aos homens como nunca ninguém os amou e é o único entre eles como nunca ninguém o foi.
XXI
Na eternidade, o Filho é consubstancial ao Pai (o Consubstancialis do símbolo de Calcedônia), enquanto que, no tempo — se é verdade, como diz Santo Inácio Teóforo, que “Jesus nasceu realmente homem”, que, como diz Justino Mártir, “cresceu como o comum dos homens” e que, como relata São Lucas, “crescia e se fortificava em espírito, enchendo-se de sabedoria” — o Ente Divino, crescendo no ente humano, elevando-se das sombrias profundezas do que chamamos o “inconsciente”, somente progressivamente a consciência sublime penetra na consciência do Homem Jesus; lentamente dele se apodera e o enche como a luz e o calor do sol enchem o fruto transparente que vai amadurecer. Assim, o Cristo nasce em Jesus. De ano em ano, de dia em dia, cada vez mais claramente, ouve em todas as vozes da terra e do céu, no rumor do vento, no murmúrio da água, no rolar dos trovões e no silêncio das noites estreladas, a voz do Pai: “Tu és meu filho bem amado”. Por mais progressivo, porém, que seja esse nascimento — essa “lembrança-conhecimento” da eternidade no tempo — houve, sem dúvida, um minuto em que, de súbito, ele conheceu tudo e respondeu ao Pai: “Eis-me aqui”. Foi nesse minuto que o Cristo nasceu em Jesus.
XXII
Lembremos a palavra não escrita do Senhor: “Eu estive entre vós com as crianças e não me reconhecestes”, e uma outra palavra, está escrita: “Se não vos converterdes e não vos tornardes como criancinhas, não entrareis no reino dos céus (Mt., 18, 3.) ”. Lembremos essas duas palavras para compreender o Apócrifo, não o Evangelho falso, mas o Evangelho oculto, conservado no livro dos gnósticos valentinianos do século III, Pistis Sophia, que o recebeu com certeza de outro livro gnóstico mais antigo, datando do meio do século II, Genna Marias (a Natividade de Maria), o qual, por sua vez, provinha de fonte ainda mais antiga e de nós ignorada (31), aquela mesma, talvez, a que recorrera Lucas, o coração da Mãe: “Maria conservava todas as suas palavras e as repassava no seu coração (Lc., 2, 19.)”. Lembremos também que o espírito, Ruach, em hebraico, e Rucha, em aramaico, língua natal de Jesus, é do gênero feminino. “Minha Mãe, o Espírito Santo”, diz Jesus no “Evangelho dos Hebreus”, o mais antigo dos Evangelhos não canônicos e o mais próximo dos nossos sinóticos. E, no livro da comunidade judaico-cristã dos Elkasaítas (elkasái), quase contemporâneo do Evangelho de João (começo do século II), o Espírito Santo é denominado “Irmã do Filho de Deus”, enquanto que no Apocalipse de João, a Igreja é a “Esposa” do Cristo: “O Espírito e a Esposa dirão: Vem!” (22, 17.) Mãe, Irmã, Esposa, três em Uma. Pensemos em tudo isso, lendo o “Apócrifo” de Pistis Sophia.
XXIII
A Virgem Maria dizia, assim, ao Senhor, depois de sua ressurreição: ”… Quando menino, antes que o Espírito houvesse descido sobre ti, encontravas-te um dia com José na vinha. E o Espírito, tendo descido dos céus e tomado a tua forma, entrou na minha casa. Eu não o reconheci e pensei que eras tu. E ele me disse: — Onde está meu irmão Jesus? Quero vê-lo. Fiquei perturbada e julguei que um fantasma (um demônio) me tentava. E, apoderando-me dele, amarrei-o no pé da cama, para ir procurar-te. E te encontrei na vinha, onde José trabalhava. E, ouvindo minhas palavras a José, as compreendeste, ficaste alegre e disseste: — Onde está ele? Quero vê-lo. Ouvindo tais palavras, José mostrou-se surpreendido. E logo nos fomos de volta à casa, onde encontramos o Espírito amarrado ao pé do leito. E, olhando-vos, Tu e Ele, víamos que éreis perfeitamente semelhantes. E o Espírito preso se soltou e te abraçou e te beijou, e tu fizeste o mesmo. E, então, vos tornastes Um (33)”.
XXIV
O inábil desenho de um bárbaro ou de uma criança, cujo inocente sacrilégio deforma um original desconhecido, uma remotíssima recordação talvez, um sonho refletindo outra realidade bem diferente da nossa, que se esquece ao acordar, tal é esse Apócrifo. Sob o aspecto dessa criancinha “amarrada ao pé da cama”, o Espírito é, para nós, homens “adultos”, homens “esclarecidos”, um sacrilégio absurdamente pueril ou bárbaro. Todavia, tomando a forma de uma pomba, o Espírito-Animal será menos absurdo? E todas as representações de Deus sob traços humanos, todas as palavras humanas atribuídas a Deus, não são involuntariamente, inocentemente, sacrílegas? Procuremos, pois, buscar, sem nos determos em palavras ou imagens, o que por trás se esconde. Nada disso compreendemos com nosso coração adulto; mas, se, por milagre, pudéssemos retomar nosso coração infantil, talvez essa flor sobrenatural, que se faneou na terra, se reanimasse nele como aos raios do sol.
XXV
“Os dois serão uma carne só”, disse o primeiro Adão e o segundo o repetirá (Gen., 2, 24; Mt., 19, 5.). Os dois foram um na eternidade e um serão no tempo. O reino de Deus chegará. “quando os dois forem um… quando o masculino for feminino e quando não houver nem macho nem fêmea”. dtau géêhtai tá dúo én kaí tó (irreu metá tês tliedeias oiite firreu oüte thêlu (34). Lembremo-nos desse “agraphon do Senhor” e talvez compreendamos, então, porque Ele e Ela, o Esposo, e a Esposa, o Irmão e a Irmã “são perfeitamente parecidos” e é impossível distingui-los, quando juntos; talvez compreendamos que, no momento em que, num beijo de amor celeste, Ele se uniu a Ela, o Cristo nasceu em Jesus.
XXVI
Outro apócrifo, de uma puerilidade ou barbárie tão sacrílegas, foi conservado pelo gnóstico Justino e provavelmente vem do mesmo livro Genna Marias. É talvez uma lembrança-visão também terrivelmente remota, um sonho de insondável profundeza, muito diferente da nossa realidade para que seja lembrado depois do despertar. … No tempo do rei Herodes, Baruch foi ainda uma vez enviado a este mundo por Elohim. Tendo vindo a Nazaré, aí achou Jesus, filho de José e Maria, rapazinho de doze anos, que pastoreava as ovelhas. Revelou-lhe, desde as origens, toda a história do Éden e de Elohim, predizendo-lhe os acontecimentos futuros e falando-lhe desta sorte: — Todos os profetas que te precederam se deixaram seduzir. Procura, portanto, Jesus, filho do Homem, não te deixares corromper, mas publica estas palavras aos homens e faze-lhes conhecer o que concerne ao Pai e ao Bom. Sobe, depois, para Ele e senta-te à direita do Pai de todos. Jesus obedeceu ao anjo, dizendo: — Senhor, eu farei tudo isso (35). Haverá necessidade de dizer onde estão a mentira e o sacrilégio? Ninguém, mesmo o mais luminoso dos Espíritos que se acham em presença de Deus, pode revelar a vontade do Pai: somente o Pai o pode. Mas a verdade brilha através da mentira como através da poeira e das teias de aranha brilha o diamante roubado à coroa real e muito tempo abandonado num tugúrio: a revelação essencial, decisiva, realizou-se para o Homem Jesus em determinado ano de sua vida — que é para Justino o Gnóstico, como para São Lucas, o décimo-segundo (Lc., 2, 42-50, o menino Jesus no Templo). Talvez mesmo em dia, hora e minuto certos (36). Lentamente, muito lentamente, a tempestade se forma no céu; mas o relâmpago se abre subitamente. Assim, no Homem Jesus, os olhos interiores do coração lentamente se abriram; mas, uma vez abertos, viram repentinamente.
XXVII
I
“Ele retirava-se para os desertos e ali orava” (Lc., 5, 16.). — “Ele ia para a montanha, a fim de orar à parte; e, à noite, ficava lá sozinho” (Mt., 14, 13.). — “No dia seguinte, ele saiu e foi para um lugar afastado; e ali orava” (Mc., I, 35.). — “Naquele tempo, Jesus foi para a montanha, a fim de orar; e lá passou a noite inteira orando a Deus” (Lc., 6, 12.). Quantas são, nos Evangelhos, essas preces na montanha! Se, durante sua vida pública, ele ia rezar nos desertos e montes, é provável que fizesse o mesmo durante sua vida oculta — talvez já nos dias em que, em Nazaré, rapazinho de doze anos, pastoreava as ovelhas.
II
E eis que, no nosso coração, se escreve, contra nossa vontade, ao lado do Evangelho manifesto, um evangelho secreto, não no sentido moderno, mas no sentido antigo, eterno.
APÓCRIFO
1
O Pequeno Pastor de Nazaré leva o rebanho de cabras escuras para os cômoros das montanhas da Galileia. O cajado paterno, de madeira de acácia branca, já levemente escurecido pelas mãos suadas, é demasiado grande para ele. Demasiado grandes também são as velhas e gastas sandálias de folha de palmeira — sem dúvida as de seu pai — amarradas aos pés nus e trigueiros pelas puídas correias, das quais uma, quase desprendida, arrasta pelo chão, sem que o menino pense sequer em consertá-la. Um paninho de lã, outrora azul vivo com riscos amarelos, que de há muito desbotou ao sol, enrola-lhe o alto da cabeça, apertado por um cordel, pendendo-lhe às costas em longas pregas verticais. É a coifa que os pastores usam desde tempos imemoriais, desde a era de Abraão talvez, desde a época em que os pastores nômades vieram de Senaar a Canaã. Tecida inteiramente por Myriam, a hábil fiandeira, uma túnica branca, de puro linho da Galileia, curta e inconsútil, mal lhe chega aos joelhos. Na bainha, a fim de conjurar a má sorte, a febre e as mordeduras de cobra, está bordado um versículo de um Salmo de David: “Nenhum mal te atingirá, nenhum flagelo se aproximará de tua tenda, porque ele ordenará a seus anjos que te guardem em todas as tuas empresas. Eles te carregarão em suas mãos, com receio que teu pé não tope de encontro a uma pedra.”
O rosto do pastor era como o de todos os rapazinhos de doze anos, simples, comum, semelhante a todos os rostos humanos, somente com uma doçura que se não encontra em todos, e com olhos tais que os mais inteligentes de seus camaradas da escola de Nazaré tinham sempre vontade de interrogá-lo e não ousavam. Os melhores desejariam dizer-lhe que o amavam e não tinham coragem. Os maus zombavam dele, o injuriavam, o chamavam “possesso”, “lobinho”, “rei-zinho” (pois sabiam que era da raça de David), ou, então, simplesmente “filho de Myriam”, acrescentando uma palavra que ele não compreendia. Mais tarde somente foi que ele soube que era um insulto à sua mãe, porque se pretendia que o não tivera de José. E dois dos piores lhe atiravam pedras, de modo que o mestre-escola um dia teve de puxar-lhes as orelhas, ameaçando-os, se não acabassem com aquilo, de expulsá-los. Eles cessaram de atirar pedras, mas, desde então, o olhavam maldosamente, em silêncio, como se o quisessem matar. Ele próprio sabia da impressão que seus olhos causavam e baixava-os diante das pessoas, escondendo-os sob os cílios tão longos como os de uma rapariga.
2
Numa manhã calma e nevoenta, em que o sol pálido, quase lunar, iluminava um céu também pálido e lunar, o Pequeno pastor, tangendo à sua frente o rebanho de cabras escuras, subiu ao platô da colina de Nazaré, onde as anêmonas brotavam a seus pés, sob a verdura sombria das moitas, vermelhas como o sangue — “sangue de quem?” perguntava ele a si próprio, como todas as vezes que via essas flores. Alto em cima, tudo era silêncio, mas da cidade, escondida pelas colinas, vinha o latir dos cães, o zurrar dos asnos, o ranger das carretas, o bater húmido da roupa nos lavadouros, rumores que interrompiam o silêncio. Ele olhou para os quatro lados como um pássaro que escolhe a sua direção: para o norte, onde, no céu níveo, se via cintilar fracamente a prata lunar do Hermon, cuja cabeça coberta de neve lembrava, na sua intraduzível majestade, a do Ancião dos Dias; para o oriente, onde as filas de colinas de declives ondulosos como que caíam num abismo invisível — o vale do lago de Genesaré; para o sul, onde amarelava a perder de vista o dourado mar das searas de Jezrael; para o oeste, onde o mar verdadeiro, esbranquiçado e transparente, parecia outro céu emborcado sobre a terra.
3
Chamou as cabras que o seguiram docilmente, como se soubessem aonde iam, e, com passo rápido, como se fugisse à invisível perseguição dos rumores humanos, desceu a um profundo vale, do lado oposto a Nazaré; depois, tornou a subir, para descer de novo; e, assim, de colina em colina, subindo e descendo, de vale em vale, se alongou cada vez mais dos homens, separando-se deles pelas colinas, como se fossem muralhas. As colinas iam ficando sempre mais altas e os vales sempre mais profundos; as ervas mais verdes e as flores mais odorantes; no côncavo dos vales, gorgolejavam invisíveis sob os ervanços as águas das fontes das montanhas, as brancas margaridas, as tulipas de um amarelo avermelhado e as campânulas roxas nasciam imbricadas como num jardim, enquanto que as ladeiras pedrosas e ressequidas se cobriam com o linho rosado selvagem e com altas umbelíferas, do tamanho do Pequeno Pastor; e a renda transparente de suas flores alvas lançava ao tapete róseo do linho sombras azuladas como que pelo luar. Colinas inteiras desapareciam sob essas plantas e, de longe, pareciam cobertas por um véu nupcial de diáfana brancura estendido sobre a terra como sobre a face corada de pudor de uma jovem desposada. As cabras seguiam-no sempre tão docilmente como se soubessem aonde as conduzia e que era aonde queriam ir. Talvez os humildes animais, as plantas, as águas, a terra e o céu sabiam mais sobre ele do que os homens. Somente de tempo em tempo, caminhando, as cabras roíam avidamente as ervas fartas no fundo dos vales, prosseguindo sem parar. Apertando-se no carreiro estreito, entre as rochas, desenrolavam sua longa fila sobre o linho róseo, ora descendo, ora subindo, como um rosário de contas pretas. Um cabritinho atrasado berrava lamentosamente. O Pequeno Pastor tomou-o nos braços e a mãe caminhou a seu lado, fitando o Pequeno Pastor, como para agradecer-lhe, com o inteligente olhar dos seus amarelos olhos transparentes.
4
Mais longe, sempre mais longe; mais silêncio, sempre mais silêncio: sempre mais perto do Pai, sempre mais solidão no deserto de Deus. Parecia que ali jamais pousara o pé humano e que jamais uma voz humana quebrara o silêncio. Nem uma erva se movia, nem uma flor estremecia no seu caule. Uma cotovia se pôs a cantar, mas logo se calou, como se compreendesse que não devia romper aquele silêncio; uma cigarra também estridulou no capinzal e também logo se calou; uma abelha zumbiu surdamente no ar e o seu zumbido morreu ao longe, como uma corda de alaúde que se quebra: e tudo ficou ainda mais silencioso. Parecia que nunca houvera na terra tal silêncio e que jamais haveria. Só houve um, o do primeiro paraíso, e só haverá outro, o do segundo — no reino de Deus.
5
Depois das colinas, começavam as serras, que se elevavam em declives suaves. O linho rosado e as umbelíferas desapareceram; sobre as rochas somente havia musgo cinzento e líquen amarelo. Os primeiros carvalhos pequeninos e pinheiros se mostraram, a princípio baixos e retorcidos, cada vez mais altos, cada vez mais ligeiros, até que enfim se ergueu o majestoso cedro do Líbano, em cujos ramos as águias fazem ninhos. Os horizontes clarearam e as brumas se dissiparam. O céu continuava ainda de um branco leitoso, mas já, aqui e ali, as manchas do azul surgiam através do branco. Respirava-se com mais facilidade. Sentia-se o odor das serras — o perfume da miosótis e da neve que derretia. Em baixo, já era o estio, a jovem desposada; ali, ainda era a primavera, a rapariguinha de doze anos. Bruscamente, as rochas se alargaram, com se uma porta se abrisse para larga clareira coberta de erva fresca, umedecida pelas neblinas, curta, densa, macia como uma penugem, esmeraldina, toda pontilhada de malmequeres rosados como um rosto de criança que acorda e de botões cor de ouro pálido. Para o norte, o prado era cortado, como a faca, por um traço que separava as ervas verdes da massa contínua de granito escuro que se elevava para outro recorte, próximo e tão nitidamente desenhado no fundo claro do céu — o bordo superior e abrupto da montanha. As cabras pararam por si mesmas na clareira, como se tivessem caminhado sozinhas, sabendo que iriam ter ali e que o Pequeno Pastor não as levaria mais longe. Sem dúvida, vinham sempre ali e, tanto quanto ele, gostavam do lugar. Logo se espalharam pelo prado e se puseram a pastar, enterrando com avidez o focinho no capim primaveril das serras, mais tenro que a pastagem estival dos vales.
6
Nessa montanha, consagrada ao antigo deus cananeu Ciniro, o Adônis grego (Adônis, Adonai quer dizer “Senhor”), se havia dado o nome de Cinor — a harpa de ouro dos reis e sacerdotes judeus, com que se acompanhavam os cantos em honra de Adonai, Senhor de Israel. Talvez essa montanha assim se chamasse, porque, durante as tempestades de verão que vêm do Líbano, respondesse ao trovejar do céu, vibrando toda como uma harpa de ouro sob as cordas de chuva douradas pelo sol. Ali, desde tempos imemoriais, anteriores talvez a Abraão, se celebravam os mistérios do deus Ciniro-Adônis; os pais sacrificavam-lhe na terra os filhos como no céu o Pai sacrificara seu Filho; nascido homem, o deus Ciniro-Adônis, pobre pastor galileu, sofreu pelos homens, morreu, ressuscitou e foi divinizado. Celebravam-se ainda esses mistérios nos campos de Megido, que se avistavam da colina de Nazaré, no fim da planície de Jezrael. Ali cantavam sempre o canto fúnebre do deus Ciniro-Adônis, anotado pelo profeta Zacarias. E os pastores galileus, desde os campos de Megido até o lago de Cinireth-Genesaré (todo o país retumbava ainda do nome do deus) cantavam o canto de Ciniro acompanhados pela harpa de caniço, porque, diziam, o deus-pastor, tendo ouvido o vento gemer nos caniços, inventara, não a harpa de ouro, mas um pobre instrumento pastoril. Um velho pastor apelidado o “Pagão”, porque tinha nas veias os dois sangues, judeu e grego, como confundia no coração os dois deuses, Adonai e Adônis, contara essa antiga fábula ao Pequeno Pastor, num dia em que ambos estavam sentados no alto da colina de Nazaré, mostrando-lhe as flores rubras que brotavam a seus pés sobre as ervas verde-escuras, como manchas de sangue, e dizendo-lhe: “É o sangue do deus!” O Pequeno Pastor não deu crédito àquele conto, porque sabia que só havia um Deus — o Senhor de Israel. Levantou-se e afastou-se do Pagão. “Vai-te, Satan!” disse no seu íntimo. “Não, esse sangue não é o do deus Ciniro”, pensou, então, contemplando as flores rubras — “mas de quem será? E que significa: o Pai sacrificou seu Filho?”
7
Era ainda sobre isso que refletia, sentado numa pedra, perto da verde pastagem, no monte Cinor. Ali em cima, o silêncio era mais profundo do que nos vales. Dir-se-ia que, na terra como no céu, todas as criaturas paravam de respirar para escutar e esperar. O Pequeno Pastor tirou de um saco de couro que trazia a tiracolo um cinor de caniço e se pôs a tocar a lamentação do deus Ciniro. “Eles olharão aquele que traspassaram, E soluçarão por ele como por um filho único, E se afligirão como se fosse um primogênito, Um grande lamento se levantará de Jerusalém, Como a lamentação de Adônis Ciniro Nos campos de Megido, e toda a terra chorará (38)”.
8
Terminado o canto, fechou os olhos, baixando as pálpebras tão pesadas que parecia não poder mais levantá-las. E de novo reinou o silêncio de um desses meio-dias sem aragem, em que o homem ouvindo de súbito chamar pelo seu nome, foge, presa de sobre-humano terror, não importa para onde, para ver ao menos um rosto humano, ouvir uma voz humana e não ficar sozinho no silêncio. Mas o Pequeno Pastor, se ouvisse esse chamado, não teria fugido; pelo contrário, teria atendido, como um filho atende ao chamado de seu pai. Abriu lentamente as pálpebras pesadas, ergueu-se e grimpando pelo declive granítico do monte, dirigiu-se para o rebordo que se recortava em negro no céu claro. E, caminhando, tocava no caniço o canto de David, seu pai: “O Eterno é o meu pastor, E eu não sofrerei necessidade. Ele me faz repousar nas pastagens verdes E me conduz ao longo das águas mansas. Mesmo se eu caminhasse pelo vale à sombra da morte, Não recearia o menor mal! Tu estás comigo; O teu bastão e o teu cajado me consolam (39)”.
9
Aproximou-se do rebordo negro, o derradeiro, no cume da montanha — muralha de granito que se erguia a pique à beira de um abismo. Retorcendo-se no fundo do precipício, a fina serpente de uma torrente espumava e gorgolejava; mas ali no alto não chegava o menor rumor. As serranias azuis ondulavam suavemente, umas depois das outras, cada vez mais pálidas, fugindo para as impenetráveis florestas das encostas do Líbano. E, acima delas, se perfilava na sua indizível majestade a cabeça branca do nevoso Hermon, o Primogênito dos montes, semelhante ao Ancião dos Dias. O ponto culminante do Cinor, penedo saliente, suspenso sobre o abismo, chamava-se o Trono de Ciniro. Lá havia um montão de pedras que fora outrora talvez o altar do deus. Uma delas conservava ainda esta inscrição meio apagada: “O pai sacrificou seu filho”. O Pequeno Pastor acercou-se da borda do precipício e se ajoelhou. No céu branquicento, rasgou-se uma janela azul e um raio de sol bateu-lhe na face, enquanto que, por outra fenda, outro raio iluminava as neves do Hermon. A Face indizível rebrilhou na neve com um esplendor de diamante sem jaça e um hálito fresco que parecia vir do Além, passou pelo rosto do Pequeno Pastor. Lentamente, ele levantou os olhos e viu no céu a outra Face, aquela diante da qual um dia fugirão céu e terra, sem saber onde se esconderem. E houve na terra e no céu tal silêncio que, se outro que não o Pequeno Pastor estivesse sobre a montanha, não o poderia suportar e fugiria cheio de sobre-humano terror, compreendendo talvez, como já o compreendiam as criaturas humildes — bichos, plantas, águas, terra e céu, — que tal silêncio vinha dele, o Mais Doce, e teria visto a cabeça do Pequeno Pastor nimbada com uma auréola diante da qual a luz do sol parecia escura.
