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Merejkovsky – Jesus Desconhecido (II.1)
Dmitri Merejkovsky – Jesus Desconhecido. Tr Gustavo Barroso. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1935
**PARTE DOIS**
**VIDA DE JESUS DESCONHECIDO**
**I. COMO ELE NASCEU**
I
Kaire kekharitoménh. Ave gratiosa. “Alegra-te, Cheia de Graça (Lc., I, 18.)!” A palavra grega Kekharitoménh vem do termo Kharis, a graça, a beleza, em latim gratia. A mesma raiz se encontra na palavra Charite, deusa da beleza. “Alegra-te, Cheia de Graça” quer, portanto, dizer: “Alegra-te, Beleza das Belezas Divinas; Alegra-te, Charite das Charites!”
Tudo no Evangelho — a vida de Jesus — começa e termina pela alegria. É por isso que a própria palavra Evangelho, evangélion, no seu sentido primitivo e profundo significa, não a “boa”, mas a “alegre nova”. “Eu vos anuncio évangelionai, uma grande alegria, eu vos anuncio o Evangelho”, diz o Anjo da Natividade aos pastores de Belém (Lc., 2, 10). A estrela matutina, clara como o sol, anuncia o sol ainda invisível, o Precursor anuncia o Cristo. “Ele será para ti um motivo de alegria e muitos se alegrarão com o seu nascimento”, diz o anjo a Zacarias (Lc., I, 14.). E, antes de nascer, o Precursor estremeceu de alegria no ventre de sua mãe (Lc., I, 1.41), como a estrela da manhã treme no firmamento. E o sol que ainda não se levantara, a outra Criança que ainda não havia nascido, lhe respondeu pela boca de sua mãe: “Meu espírito se alegra em Deus, que é o meu Salvador (Lc., I, 47.)”. A estrela da manhã empalidece diante do Sol, pequenina alegria diante da grande: “É preciso que ele cresça e que eu diminua”, diz o Precursor, referindo-se ao Senhor (Jo., 3,30.).
Os Magos também, que vinham do Oriente, “tiveram muito grande alegria”, quando viram a estrela parar sobre o local onde estava o Menino (Mt., 2,10.). Nunca houve maior alegria à face da terra e, se ela renascer, quando Ele voltar, nova alegria nascerá primeiro“. Mesmo na véspera do Gólgota, o Senhor disse, como se falasse da alegria de Belém: “Quando uma mulher dá à luz, sente dores, porque sua hora chegou, mas, desde que a criança nasce, não se lembra mais do sofrimento na alegria que sente (Jo., 16, 21.)”. A sombra do Gólgota desaparece na luz da alegria: “Minha alegria ficará convosco e vossa alegria será perfeita (Jo., 15, 15.)”. O que é essa alegria um cego de nascença a compreenderia talvez, vendo subitamente a luz; nós também talvez a compreendêssemos, se, depois de estarmos deitados no túmulo durante a eternidade, víssemos repentinamente o sol. Mas nós não o vemos, porque nossos olhos estão cobertos pela névoa do hábito milenar, da inaptidão para o espanto e para a alegria.
II
É uma alegria que não é deste mundo, uma alegria terrível. Zacarias, vendo o Anjo, “ficou perturbado e cheio de pavor” (Lc., I, 12.). E a própria Virgem cheia de graça também se perturbou, vendo-o (1,29). Quando nasceu o Precursor, a Estrela da Manhã, “todos os vizinhos ficaram cheios de medo” (1,65.); mas, quando o Sol se levantou e a Glória do Senhor resplandeceu em torno dos pastores de Belém, “um grande temor” os tomou. Jamais haverá temor maior sobre a terra e, se renascer, quando Ele voltar, novo temor nascerá primeiro. “A luz brilha nas trevas (Jo., I, 5.)”. A luz está envolta em trevas e a alegria, rodeada de pavor. O que é esse pavor talvez compreendamos, se, depois de estarmos deitados no túmulo durante a eternidade, ouvirmos de súbito a trombeta do arcanjo; mas estamos deitados e não a ouvimos, porque nossa surdez é o hábito milenar, a inaptidão ao temor e à alegria. Senhor, envia-nos o teu temor, envia-nos a tua alegria, a fim de que possamos de novo ver e ouvir o que, na noite de Belém, viram e ouviram, não só os homens, como também os animais, as plantas e as pedras iluminadas pela tua glória: “Eis que vos anuncio uma grande alegria: é que hoje para vós nasceu um Salvador que é o Cristo, o Senhor (Lc., 2, 10-11.)”.
III
Com um pouco de céu espalhado na palheta, Frei Beato Angélico fazia o azul; com um raio de sol, fazia o ouro; molhava o pincel na aurora e tinha o rubro; depois, no mar banhado de luar e tinha a prata. Assim é que se desejariam escrever dois pequenos apócrifos, dois frontispícios do Evangelho: a Ave Maria, a Anunciação, e a Gloria in excelsis, a Natividade.
1
Deus enviou o anjo Gabriel a uma cidade da Galileia, chamada Nazaré, junto a uma virgem noiva de um homem de nome José, da casa de David; essa virgem chamava-se Maria (Lc., I, 26-27). As raparigas de Nazaré eram afamadas por sua beleza, porém Maria, Myriam em galileu, quando chegou aos quatorze anos, era a mais bela de todas . Nossa irmã é como uma macieira florida de branco, como uma romãzeira no jardim sombrio sobre uma fonte límpida. Tu és a mais bela das filhas dos homens! A mirra, o aloés e a canela perfumam, todas as tuas vestes. À tua direita, fica a rainha coberta com o ouro de Ofir. O rei se encheu de desejos diante de sua beleza; como ele é teu Senhor, prosterna-te diante dele. Assim, do Tabor ao Hermon cantavam-na os pastores, tocando a flauta, ao amanhecer e ao crepúsculo.
2
Como um dado de jogar, a casinha de teto chato do carpinteiro José, de quem Myriam acabava de ficar noiva, erguia-se muito branca no alto da colina, acima das outras casas, parecendo construída no próprio céu, em que o dia todo voejavam as andorinhas; um cipreste redondo e ponteagudo como um fuso perfilava-se no espaço azul, junto a um muro branco, dominando também todos os outros, como um único amigo sobre esta terra. Uma viela estreita e íngreme, verdadeira escada de cento e cinquenta degraus desiguais e escorregadios, conduzia à cidade baixa, onde se achava a única fonte, e levava à casinha de José . Duas vezes por dia, pela manhã e à tarde, Myriam descia para buscar água e era tão robusta que, quando, subindo, chegava ao derradeiro degrau, seu seio moreno e já formado conservava uma respiração igual; tão destra que sobre a cabeça, coberta com uma manta de lã de cabra tecida em casa, o cântaro de barro, cheio de água, nem estremecia; tão destemida que, à noite, ia ao monte sozinha procurar entre as estevas uma ovelha tresmalhada, sem receio dos lobos, dos jovens pastores da Idumeia, nem de Panthera, soldado romano devasso e sem escrúpulos, terror de todas as raparigas de Nazaré; entretanto, suas únicas armas eram um espeque na mão e uma oração no coração. .
3
No seu rosto de oval infantil, moreno rosado como a flor da amendoeira no crepúsculo da primavera, seus olhos imensos, escuros como a noite e límpidos como as estrelas, pareciam arregalados pelo espanto como os das criancinhas. Os simples julgavam neles ver o céu; os maus, o inferno. “Muito bem”, dizia o Senhor a cada dia da criação. “E isto é melhor do que tudo”, disse, quando criou Eva, a Mãe da Vida, tirando-a de uma costela de Adão; e, como ainda estivesse adormecida, beijou-a primeiro na testa como um pai, depois nos olhos como um irmão e, enfim, nos lábios como um marido. Desta “tola lenda” dos Mínim heréticos, imbecis e ímpios, o rabino Eliezer ben Josia, um dos doutores de Jerusalém, que nunca levantava os olhos para as mulheres, muito velho e austero, lembrou-se no dia em que, por acaso, olhou Myriam. “Os tolos, às vezes, são talvez sábios”, pensou. Não é de uma mulher assim que foi dito: “a semente da mulher esmagará a cabeça da serpente”? Assim pensou o rabino Eliezer ben Josia, porque era um santo varão e via o que os outros homens não viam: via ardendo ainda sobre o rosto de Maria os três beijos do Senhor, beijo solar na testa morena, beijo estrelado nos olhos, beijo flamejante e ardente sobre os lábios virginais.
4
Myriam fizera muitas invejosas. As raparigas de Nazaré, quando vinham à fonte com seus cântaros ou levavam ao bebedouro as ovelhas e cabras, somente falavam dela. — Olhos assim, eu não queria por nada no mundo. Parecem as janelas de uma casa incendiada. São terríveis como olhos de uma possessa. — Naturalmente! Levando uma vez as ovelhas para pastarem no alto do Tabor, ela trepou à noite até o cume e lá viu qualquer coisa que a fez tombar por terra como morta. Os pastores encontraram-na ao amanhecer. Foi então que o demônio entrou nela e, desde esse tempo, ela tem aqueles olhos… Depois, falou-se dos pretendentes que Myriam tinha recusado e foi tão viva a discussão que quase acaba em barulho. Ninguém chegou a um acordo, talvez porque ninguém sabia se, na verdade, ela tinha tido pretendentes. — Que vai ela fazer com o carpinteiro José, velho, viúvo e com filhos, é o que não consigo compreender, disse uma, quando se cansaram de falar dos pretendentes. — Todavia é bem simples. Ele é da casa real de David e ela, da casa levítica de Arão: se tiverem um filho, será o Messias, o Rei-Pontífice da profecia asmonéa. Quem não desejaria ser a mãe do Messias? — Não, não é isso. — Então, que é? Puseram-se a cochichar. De súbito, calaram-se. Myriam dirigia-se para elas com o cântaro à cabeça. Aproximou-se, olhou-as silenciosamente com seus grandes olhos espantados como os das criancinhas e com um sorriso tal que todas, envergonhadas, baixaram os olhos.
5
As raparigas só tinham razão num ponto: Myriam esperava o Messias. O jugo romano pesava sobre a nuca de Israel, que, mais do que nunca, esperava o Messias libertador; e Myriam o esperava mais do que ninguém em Israel. Originária de Nazaré, mas, tendo perdido cedo pai e mãe, fora levada a Jerusalém, a fim de ser criada por uma de suas parentas, Isabel, mulher do sacrificador Zacarias, da classe de Abias. Ambos não tinham filhos e estavam em avançada idade: por isso tomaram a órfã em casa. Assim, tranquilamente, ela cresceu no seu lar, à sombra do Templo, a branca pomba Myriam, alimentando-se com o pão que parecia receber da mão dos anjos. Isabel, hábil em fiar, tecer e bordar, ensinou-lhe todas as artes caseiras. Durante dias inteiros, sentada junto a uma janela, ora murmurando preces, ora cantando salmos, Myriam bordava para o Templo um véu precioso, ornado com dois serafins de púrpura em fundo de ouro.
Ora, havia em Jerusalém um homem que se chamava Simeão. Esse homem era justo e piedoso; esperava a consolação de Israel e o Espírito Santo baixava sobre ele. Fora prevenido pelo Espírito Santo que não morreria sem ter visto o Messias. Havia também uma profetisa, Ana, filha de Fanuel, da tribo de Asser, muito idosa. Era viúva e não deixava o Templo, servindo a Deus dia e noite com jejuns e preces. Ana e Simeão vinham muitas vezes à casa de Isabel e Zacarias, e conversavam com eles sobre a consolação de Israel. Suavemente, o fuso zumbia, misturando os três fios azul, dourado e vermelho; suavemente, os velhos murmuravam como abelhas sonolentas sobre uma rosa de inverno, e Myriam avidamente bebia suas palavras como o mais doce mel. — Meus olhos verão tua salvação que preparaste para vir à face de todos os povos, a luz que deve iluminar as nações e a glória de teu povo de Israel! começava Simeão (Lc., 2,31.)· — O Senhor manifestará a força de seu braço, derrubará do trono os poderosos e elevará os humildes; cumulará de bens os famintos e despedirá os ricos de mãos vazias; iluminará os que estão nas trevas e nas sombras da morte! continuava Ana (Lc., 2,69,70.). — Senhor, reina só sobre nós! repetiam todos quatro. Que venha breve, nos dias de nossa vida, o Messias! — Breve, breve, breve, repetia também Myriam em voz baixa. Assim, tranquilamente, à sombra do Templo, branca pomba alimentada pela mão dos anjos, ela cresceu até os quinze anos, quando foi prometida a José, da casa real de David, e voltou a Nazaré.
6
Tarde, na noite que se seguiu ao dia em que as raparigas haviam falado mal dela ao pé da fonte, Myriam, de pé sobre o eirado da casinha, rezava, repetindo infindavelmente, sem cansaço, como se o coração não se fatigasse de bater sem parar: — Breve! Breve! Breve! Olhava o céu estrelado, sem ver a seus pés a terra sombria, e lhe parecia que voava pelo espaço, no meio das estrelas. De repente, ouviu chamar: Myriam! Myriam! como se alguém estivesse perto dela. Estremeceu e se voltou: ninguém; mas do setentrião, onde ao fusco luzir dos astros se erguia na sua grandeza inefável a cabeça branca do Hermon nevoso, semelhante ao Ancião dos Dias, veio o frêmito de um pavor sobre-humano. “O Eterno disse a meu Senhor… tu nascerás de meu ventre antes da aurora como o orvalho (Ps., 110.)”. Ela se lembrou dessa palavra que ouvira na sua infância. “Que significa isto?” perguntava ela sempre a si própria e muitas vezes desejava interrogar os profetas de Jerusalém, mas não tinha coragem. Entretanto, não cessava de pensar nisso e seu coração batia no peito como um pombo prisioneiro. E agora, pensando nisso, ela foi fechando os olhos e adormeceu.
De repente, ouviu de novo: “Myriam! Myriam!” Estremeceu e levantou-se bruscamente, olhando em torno: ninguém. Era de manhã. Ficou muito surpresa. Parecia-lhe que havia adormecido na escuridão da noite e já estava tão claro! A seus pés, na terra inteira, de um a outro horizonte, se estendia, como um mar de leite, uma bruma tão densa que se não distinguia mais nada na grande planície de Jezrael, nem os montes longínquos da Galileia, nem as colinas próximas de Nazaré, nem mesmo as pequenas casas da cidade, mais perto ainda, espalhadas lá em baixo. Não havia mais terra, porém dois céus, um em baixo, leitoso, no outro em cima, limpidamente claro, onde, resplandecendo com todas as cores do arco-íris, como um enorme diamante que girasse suspenso de um fio, cintilava, clara, tão clara como o sol, tanto que projetava sombras, a maravilhosa, a terrível estrela da Aurora. “Tu nascerás do ventre da Terra, antes da aurora, como o rocio do nevoeiro”, compreendeu ela subitamente e seu coração bateu como um pombo prisioneiro. Contemplando a Estrela com os olhos arregalados de pavor, ela viu que se aproximava, a princípio lentamente, depois cada vez mais depressa, enfim voando como uma flecha despedida do arco. Myriam caiu de joelhos, escondendo o rosto nas mãos, como havia pouco, quando alguém a chamava: “Myriam! Myriam!” E eis que a chamavam ainda. Abriu os olhos e olhou: um Anjo estava diante dela; seu rosto era como um clarão e suas vestes brancas.
7
“E o Anjo lhe disse: Alegra-te, Cheia de Graça! O Senhor está contigo e bendita és entre as mulheres. Ela ficou perturbada com essas palavras e perguntou o que significava aquela saudação. Então, o Anjo lhe disse: Não tenhas receio, Myriam, pois achaste graça perante Deus e eis que conceberás e darás à luz um filho a quem porás o nome de Jesus. Ele será grande e será chamado o Filho do Altíssimo e o Senhor Deus lhe dará o trono de David, seu pai. Ele reinará eternamente sobre a casa de Jacob e seu reino não terá fim. Então, Myriam disse ao Anjo: Como poderá isso ser, se não conheço homem? O Anjo respondeu-lhe: O Espírito Santo baixará sobre ti e o poder do Altíssimo te cobrirá com sua sombra: por isso também o santo menino que vai nascer será chamado Filho de Deus.” Myriam respondeu: Eis-me aqui, eu sou a serva do Senhor (Lc. I, 26-39). E, logo que ela disse isto, um gládio fulgurante lhe traspassou a alma e o corpo, e ela caiu como morta.
8
José ficou muito espantado, quando, ao nascer o sol, ouviu as ovelhas e as cabras balando tristemente no estábulo fechado, pedindo para serem levadas à pastagem. Por que Myriam teria esquecido de pô-las em liberdade? Chamou-a, batendo no delgado tabique de taipa do pequeno quarto onde ela dormia sozinha, pois que José, homem justo, respeitava santamente a virgindade daquela de quem ficara noivo diante do Senhor. Myriam não respondeu e, como a porta do quarto estivesse aberta, José entrou. Vendo que não estava ali, pôs-se a chamá-la e procurá-la por toda a casa. Enfim, subindo ao eirado, foi encontrá-la desmaiada. Prosternou-se junto dela e falou: “Senhor, toma também minha alma!” porque a amava muito. Mas, reparando bem, verificou que estava viva. Seu rosto moreno estava pálido como a flor da amendoeira na montanha, quando sopra a tempestade de neve; suas pálpebras escuras haviam-se fechado e seus cílios negros estavam tão abaixados que parecia nunca mais se levantariam; somente no pálido semblante de Myriam, a nova Eva, os lábios eram rubros como brasas do beijo do Senhor, mais ardente ainda que o beijo dado à primeira Eva. Ela ficou deitada assim durante três dias e três noites, e, quando voltou a si, no quarto dia, ergueu-se como quem se levanta de um sono tranquilo, tão fresca como um lírio edênico após uma borrasca edênica. E seu rosto era radioso como o sol, pois já o sol vivia nela. “E ela exclamou em alta voz: minha alma magnifica o Senhor e meu espírito se alegra em Deus que é meu Senhor, porque ele se dignou lançar os olhos sobre a humildade de sua serva. E eis que daqui por diante todas as épocas me chamarão bem-aventurada (Lc., I, 46-48)”.
9
Floriam as vinhas, quando o Anjo apareceu a Myriam; os cachos maduros pendiam das cepas, quando José viu que ela estava grávida. “Então, não querendo expô-la à vergonha, resolveu repudiá-la sem alarde. Mas, quando pensava nisso, eis que um Anjo do Senhor lhe apareceu em sonho e lhe disse: José, filho de David, não receies tomar a Myriam por mulher, porque o filho que ela concebeu vem do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho e tu lhe porás o nome de Jesus (Mt., I, 19-20)”. Ao acordar, José foi onde estava Myriam e caiu a seus pés, dizendo: “Bendito seja o Senhor, Deus de Israel, porque visitou e resgatou seu povo e nos suscitou uma poderosa fonte de salvação na casa de David, seu servo, como o proclamou pela boca de seus santos profetas, desde os mais recuados tempos (Lc., I, 68-70.)”. E Myriam perguntou a José: Onde deve nascer o Messias? E José lhe respondeu: “Em Belém, na Judeia, pois eis aqui o que foi escrito pelos profetas: E tu, Belém, Terra de Judá, tu não és certamente a menor dentre as principais cidades de Judá, porque de ti sairá o chefe que pastoreará Israel, meu povo (Mt., 2, 5-6.)”. E Myriam disse: Quando chegar o tempo de dar à luz, iremos a Belém, a fim de que se cumpra a palavra do Senhor.
10
Três meses mais tarde, a neve cobriu as montanhas e as fogueiras da Purificação iluminaram o Templo de Jerusalém; chegara o tempo de Myriam dar à luz, e ela foi a Belém. A viagem, no inverno, por entre as serranias, foi penosa. Nos vales, a neve derretia ao sol e as poças de água obstruíam os caminhos. Myriam viajava em um burro e José caminhava a seu lado. Às vezes, o burrinho, metendo o pé nas poças, respingava de lama as vestes de Myriam. Ela sentia-se muito fatigada, mas recusava repousar, apressando-se por saber que a hora do descanso ia em breve chegar. Ao cair da noite, quando já se acendiam as luzes nas casas, chegaram a Belém, mas não encontraram cômodos no albergue, por causa do grande número de peregrinos que se dirigiam às festas de Jerusalém. Em toda a parte onde bateram, pedindo abrigo para a noite, responderam que não havia mais lugar. Um velho pastor, vendo-os de pé junto à porta fechada do albergue, de onde os haviam escorraçado com injúrias, teve pena deles e os levou para um campo em que instalara um estábulo para suas cabras numa gruta. Ali, Myriam deu à luz seu Filho, enrolou-o em panos e o deitou numa manjedoura . Uma vaca, que havia pouco tinha tido seu bezerro, estendeu o focinho, para o Menino, fitou-o com o seu olhar doce e aqueceu-o na gruta fria com seu hálito quente. Por sua vez, um burrico, não o que trouxera Myriam, mas outro dali mesmo, aproximou-se e olhou também o Menino com seu olhar inteligente — mais inteligente que muito olhar humano! — como se sobre Ele já soubesse o que os homens ainda ignoravam. E, entre a boa Vaca e o Burrico prudente, estava José, o melhor e o mais sábio de todos os homens do mundo. O Menino chorou na Manjedoura. O Burro levantou as longas orelhas como para ouvi-lo; a Vaca mugiu maternalmente como se respondesse a seu filho. José aproximou-se do Menino, tomou-o nos braços com o fervor de um mendigo que carrega um tesouro e o levou à sua mãe que adormecera no fundo da gruta. A mãe acordou, recebeu o Filho e lhe deu seu seio. Então, voltando-se para eles, José, a Vaca e o Burro viram na gruta escura resplandecerem dois sóis.
11
“Ora, havia naquele país pastores que dormiam no campo e guardavam os rebanhos em vigílias noturnas (Lc., 2, 8.)“· Dois deles estavam sentados ao pé de um braseiro, enquanto, os outros dormiam. A noite estava fria e as pedras e as ervas se cobriam de geada. Mas, entre os seus dois cães, o avô e o neto, cobertos com saiões de carneiro, dormiam sobre a terra nua como num leito quente. À meia-noite, o rapaz acordou e, lançando os olhos ao céu, viu as estrelas brilhando mais fortemente e mais perto do que de costume; depois, cada vez mais luminosas e mais próximas, elas começaram a cair do firmamento sobre a terra como flocos de neve. O menino soltou um grito, sacudiu o velho e todos os pastores despertaram. Havia uma tempestade de fogo sobre suas cabeças. “De súbito, um Anjo do Senhor se lhes apresentou; a glória do Senhor resplandeceu em volta deles, e um grande medo os tomou. Então, o Anjo lhes disse: Nada temais! Porque eu vos anuncio uma boa nova, que será para todo o povo uma grande alegria: hoje, na cidade de David, um Salvador que é o Cristo, o Senhor, nasceu para vós. E o reconhecereis por este sinal: encontrareis um recém-nascido, envolto em panos e deitado numa manjedoura… E logo surgiu com o Anjo uma multidão do exército celeste, louvando a Deus e dizendo: Glória a Deus nas alturas e paz aos homens na terra de boa vontade! Depois que os Anjos os deixaram para voltar ao céu, os pastores disseram uns ao outros: Vamos até Belém. Vejamos o que aconteceu, o que o Senhor nos fez saber. Apressaram-se em partir e foram encontrar Maria, José e o Menino deitado na sua manjedoura (Lc., 2, 9-16.)”. E prosternaram-se, saudando os dois Sóis na gruta escura — o Filho e a Mãe. Glória ao Filho que nasceu! Glória à Mãe que o concebeu! Glória a Deus nas Alturas! Amém.
IV
Aqui terminam os dois apócrifos, os frontispícios de Frei Beato Angélico, e acima deles há um traço negro, limite invencível que separa o tempo da eternidade, a História do Mistério. Isso aconteceu ou não? Para perguntá-lo, quando se ouve o lirial: “Alegra-te, Cheia de Graça”, e o trovejante: “Glória a Deus nas Alturas!” é preciso ser surdo. — “Poesia e nada mais. Nichts mehr ais Poésie”, dirá Frederico Strauss. “Tudo o que aí está escrito — dirá o lacaio Smerdiakov — é mentira”, e Ivan Karamazov será a princípio de sua opinião, porém, após seu delírio supraterrestre, sentindo sempre passar pelos seus cabelos “o frio dos espaços interplanetários”, lembrar-se-á da confissão do diabo: “Eu estava lá, quando o Verbo morto sobre a Cruz subiu ao céu, levando no seu seio a alma do bandido crucificado; ouvi os gritos alegres dos querubins, cantando e clamando hosanas, e o clamor retumbante dos serafins em êxtase abalando o céu e todo o universo”… Lembrar-se-á disso e dirá: “Que é um serafim? Talvez toda uma constelação?” e quase acreditará. Goethe-Fausto vê o que jamais verá Wagner-Strauss: “Wie Himmelskräfte auf und nieder steigen”. Subirem e descerem as Potestades celestes . “Vereis o céu aberto e os anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do Homem” (Jo., I, 51.).
V
“Eu não posso acreditar no que me dizem, só tocando com o dedo”, declarou a parteira Salomé, estendendo o braço, a fim de verificar se a Mãe continuava Virgem, e logo sua mão secou . Que, tocando, procurando se assegurar de que isso tenha acontecido, nossas duas mãos, a da esquerda, a Crítica, e a direita, a Apologética, não se ressequem de súbito, queimadas na mesma chama! Os homens poderão falar daquilo que Querubins e Serafins calam, cobrindo o rosto com espanto?
VI
A mãe aproxima seu filho da árvore de Natal, resplandecente de lumes como a noite de Belém resplandecia de estrelas; o menino não sabe ainda falar, nem rir, mas avança avidamente para a luz, olha-a com olhos arregalados pelo alegre assombro e vê que “a Luz brilha nas trevas e as trevas não a receberam (Jo., I, 5.)”. Talvez o menino se lembre ainda do que nós já esquecemos: Deus fez ao mundo dois presentes de Natal: o sol diurno, menor, e o sol noturno, maior. Eis como deveríamos contemplar a Natividade, para vê-la e compreendê-la melhor do que os teólogos e os críticos.
VII
Verbum caro factum est, magna pulchritudo. “O Verbo se fez carne, grande beleza (II)!” É o que canta Santo Agostinho em uma prece. Dedos de anjos, leves como sonhos, teceram com raios de estrelas essa “grande beleza,” — Ave, Maria gratiosa: não são mais nossas imagens carnais de três dimensões, imóveis, impenetráveis, escuras, terrenas, porém vultos celestes, impalpáveis, diáfanos, luminosos, que passam invisíveis, no entanto mais reais do que tudo o que é terrestre. Tudo está dito nisso, quase sem palavras, com a mais suave das músicas, ou melhor, tudo é calado, sendo tudo dito. O mais espantoso é que seja dito infinitamente muito em infinitamente pouco. O que há de maior é também o que há de mais pequeno — o Átomo. Se se conseguisse “decompô-lo”, descarregar as forças de polarização que existem nele, que aconteceria? Os físicos que procuram a “decomposição do átomo” não o sabem ainda: Talvez o nosso velho mundo desabasse para dar lugar a um mundo novo. “Eu não conheço homem, andra ou gignoskò (Lc., I, 34.)”. Sobre essas únicas palavras repousa todo o dogma da Conceição virginal, a força criadora e destruidora do Átomo. Por ela, o antigo mundo pré-cristão foi destruído e foi criado um mundo novo. Se essas três palavras não tivessem sido pronunciadas, o lírio branco da Anunciação, mais branco do que as neves alpinas — Maria di gratia plena — a catedral de Milão não teria sido edificada; a sombria “Virgem dos Rochedos” de da Vinci não sorriria com o seu sorriso edênico; Dante não haveria encontrado Beatriz, nem na terra, na “Vita Nuova”, nem no céu, na “Divina Comédia”; e Goethe não diria: “Aqui, a quem nunca foi é dito: Sede! O Eterno Feminino é a sua via”. Se a nossa Terra Santa, a Santa Europa, foi, é, e será, é unicamente porque isso aconteceu. Na pequena cidade de Nazaré, as ovelhas e cabras continuam a ir beber na única fonte, a Fonte de Maria; e, na Cidade Humana, os séculos e os povos bebem também na Sua Fonte única que corre na vida eterna. Ave Maria, Alegra-te, Cheia de Graça, cantam ainda os sinos por toda a Terra Santa da Europa; e no dia em que se calarem será o fim de tudo.
