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Guyon (HVM) – Terceira Via, quarto grau: começo da vida divina

Extratos selecionados de Mariette Bruno da obra Les Torrents de Madame Guyon (HVM)

TERCEIRA VIA, passiva e de fé nua ou as torrentes Quando esta torrente começa a se perder no mar, distingue-se muito bem por um tempo notável. Percebe-se seu movimento, e enfim, pouco a pouco, perde toda figura própria para assumir a do mar. A alma, do mesmo modo, saindo deste grau e começando a se perder, conserva ainda algo de próprio, mas após algum tempo perde tudo o que tinha de próprio… Só neste grau é verdadeiramente tirada de si mesma.

Tudo o que ocorreu até agora se passou na capacidade própria da criatura, mas aqui, esta criatura é tirada de sua capacidade própria para receber uma capacidade imensa, como quando esta torrente está no mar, perde seu ser próprio, de modo que nada lhe resta, para assumir o do mar. Da mesma forma, esta alma perde o humano para se perder no divino, e nele perde seu ser e subsistência, não essencialmente, mas misticamente. Então esta torrente possui todos os tesouros do mar e, quanto mais foi pobre e miserável, mais gloriosa se torna.

É no túmulo que a alma começa a retomar a vida, e a luz ali aparece mais sensivelmente. É então que se pode dizer que os que repousam nas trevas têm uma luz muito grande e que o dia raiou para os que habitam na região e na sombra da morte. Há uma bela figura em Ezequiel desta ressurreição, onde os ossos retomam a vida pouco a pouco. E também a passagem: “Chegou o tempo em que os mortos ouvirão a voz do Senhor.”

Ó almas que saem do sepulcro! Senteis em vós um germe de vida que vem aos poucos. Ficai muito admiradas de que uma força secreta se aposse de vós. As cinzas se reanimam. Encontrais-vos em uma terra nova. Esta pobre alma, que só pensava em repousar em paz no sepulcro, recebe uma agradável surpresa. Não sabe o que fazer nem o que pensar. Crê que o Sol lançou seus raios por alguma fenda ou abertura, mas apenas por um momento. Fica ainda mais admirada quando sente esta força secreta apoderar-se fortemente de todo o seu ser e que, pouco a pouco, recebe uma nova vida para não mais perdê-la (pelo menos tanto quanto se pode estar seguro nesta vida), o que não aconteceria sem a mais negra infidelidade. Mas esta vida nova já não é como antes: é uma vida em Deus. É uma vida perfeita. Já não vive, já não opera por si mesma, mas Deus vive, age e opera, e isso vai aumentando gradativamente, de modo que se torna perfeita com a perfeição de Deus, rica com sua riqueza, ama com seu amor.

A alma sente bem que tudo o que teve antes, por maior que parecesse, estava em sua posse. Mas agora já não possui, é possuída; e já não existe e só toma uma nova vida para perdê-la em Deus, ou melhor, só vive de Sua vida; e sendo Ele o princípio, esta alma não pode falhar em nada. Que ganho não obteve com todas as suas perdas? Perdeu o criado pelo incriado, o nada pelo tudo: tudo lhe é dado, não nela, mas em Deus, não para ser possuído por ela, mas por Deus. Suas riquezas são imensas. São o próprio Deus. Sente todos os dias sua capacidade aumentar, e uma largura e extensão que a ampliam diariamente. Parece que sua capacidade se torna imensa. Todas as virtudes lhe são dadas, mas em Deus.

Mas é preciso notar que, assim como só foi despojada muito aos poucos, só é enriquecida e revivida gradativamente e por graus. Quanto mais se perde em Deus, maior se torna sua capacidade; quanto mais esta torrente se perde no mar, mais se alarga e se torna imensa, não tendo outros limites senão os do mar. Participa de todas as suas qualidades. A alma torna-se forte, imutável, firme, e perdeu todos os meios, mas está em seu fim. Como alguém que caminhasse sobre a terra para se perder no mar e usasse desse meio para chegar lá: perderia esse meio para nele se abismar.

Esta vida divina torna-se totalmente natural para a alma. A alma já não se sente, não se vê, não se conhece. Não vê nada de Deus, não O compreende, não O distingue. Não há mais amor, luzes ou conhecimentos. Deus já não lhe parece, como antes, algo distinto dela, e ela já não sabe nada, já não existe, só subsiste e vive nEle. Aqui, a Oração é a ação, e a ação é a Oração: tudo é igual, tudo é indiferente para esta alma, pois tudo lhe é igualmente Deus.

Antes, era preciso praticar as virtudes para realizar obras virtuosas. Aqui, toda distinção de ações é removida, não havendo mais virtudes próprias, mas tudo sendo Deus para esta alma, a ação mais baixa vale tanto quanto a mais elevada, desde que esteja na ordem de Deus e no movimento divino. Pois o que fosse por escolha própria, se não estiver nesta ordem, não produz o mesmo efeito, fazendo sair de Deus devido à infidelidade: não que a alma saia de seu grau ou de sua perda, mas apenas do movimento divino que torna todas as coisas uma e todas as coisas Deus, não por nua aplicação ] e pensamento, mas por estado, de modo que a alma é indiferente a estar de um modo ou de outro, em um lugar ou em outro: tudo lhe é igual, e ela se deixa levar naturalmente.

Esta vida é como que tornada natural, e a alma age naturalmente. Deixa-se levar por tudo que a arrasta, sem se preocupar com nada, sem pensar, querer ou escolher, mas permanece contente, sem cuidado ou preocupação consigo, sem mais pensar nisso, sem distinguir seu interior para falar dele. A alma já não o tem. Não se trata mais de recolhimento. A alma já não está dentro de si, mas está toda em Deus. Já não precisa se enclausurar em seu fundo. Não pensa mais em se encontrar ali. Não O busca mais ali, como se uma pessoa estivesse toda penetrada pelo mar, dentro e fora, acima e abaixo, de todos os lados está o mar; não precisaria de um lugar ou outro, mas apenas de se manter como está.

Assim, esta alma não se preocupa em fazer nada. Permanece como está, e isso basta. Mas o que faz? Nada, nada e sempre nada. Faz tudo que lhe mandam fazer. Sofre tudo que lhe fazem sofrer. Sua paz é totalmente inalterável, mas totalmente natural, como que transformada em natureza. Mas que diferença entre esta alma e uma pessoa totalmente no humano! A diferença é que é Deus quem a faz agir sem que ela saiba, e era a natureza que agia. Não faz bem nem mal, mas vive contente, pacífica, fazendo o que lhe mandam, de modo inabalável.

A obediência é seu guia, pois no tempo de sua perda perdeu toda vontade. Aqui, a alma já não tem vontade própria, e se lhe perguntassem o que quer, não saberia dizer. Não pode escolher. Todos os desejos são removidos, porque, estando no todo e no centro, o coração perde toda inclinação, tendência e atividade. Este Torrente já não tem inclinação nem movimento, está no repouso e no fim.

Mas de que contentamento está contente? De um contentamento imenso, geral, sem saber ou compreender o que a contenta ], pois aqui todos os sentimentos, gostos e visões, notícias particulares, por mais delicados que sejam, são removidos. Nada toca a alma, nem amor, nem conhecimento, nem inteligência, nem aquele certo não-sei-o-quê que a ocupava sem ocupá-la, e nada lhe resta, mas esta insensibilidade é muito diferente da da morte, sepultura, putrefação. Antes, era uma privação de vida, para as coisas era um desgosto, uma separação, uma impotência de morte, mas aqui é uma elevação acima das coisas, que não priva delas, mas as torna inúteis… Deus, neste estado, é a alma de nossa alma, e de tal modo que Se torna como o princípio natural da vida sem que a alma O sinta ou perceba, devido à Sua unidade e identidade, se é permitido usar estas palavras. A alma sente bem que vive, age, caminha e realiza todas as funções da vida, mas sem sentir sua alma.

Quando temos algum gosto de Deus, por mais delicado que seja, quando se conhecem seus abismos, certas languidez, penas, amores, desejos, gozo, não é este grau aqui, mas algum outro, pois aqui Deus não pode ser gustado, sentido, visto, sendo mais nós mesmos do que nós mesmos, não distinto de nós…

A alma aqui está em Deus como no ar que lhe é próprio e natural para manter sua nova vida, e não O sente mais do que sentimos o ar que respiramos.

No entanto, está plena e nada lhe falta, por isso todos os desejos lhe são removidos. Sua paz é grande, não como nos outros estados. No estado passado, era uma paz inanimada, uma certa sepultura da qual às vezes saíam exalações que a perturbavam. No estado de pó, estava em paz, mas era uma paz infecunda, como um morto que estaria em paz no meio das tempestades e ondas mais revoltas do mar — não as sentiria, nem teria pena, seu estado de morte o tornando insensível. Mas aqui a alma é elevada acima, como se, do alto de uma montanha, visse rugir as ondas sem temer seus ataques, ou, se se quiser, como se estivesse no fundo do mar, que permanece sempre tranquilo enquanto a superfície está agitada. Os sentidos podem sofrer suas penas, mas o fundo permanece igual, porque Aquele que o possui é imutável…

Mas o que deve fazer para ser fiel a Deus? Nada; e menos que nada. É preciso deixar-se possuir, agir, mover sem resistência, permanecer em seu estado natural e de consistência, esperando todos os momentos e recebendo-os da Providência sem nada acrescentar ou diminuir, deixando-se conduzir a tudo sem visão, razão ou reflexão… mas deixando a Deus o cuidado de fazer surgir as ocasiões e executá-las — não que se pense nisso por atos de abandono ou despojamento, mas que se permaneça nisso por estado…

A alma não pode falar de seu estado, não o vendo bem, nem das ações de vida que exerce; mas, quanto a seu princípio e fim, não pode nem quer dizer nada, não tendo conhecimento senão quanto Deus lhe dá no momento para dizer e escrever.

A alma não vê seus defeitos? Ou não os comete e não os conhece? Conhece-os e comete-os, e conhece-os melhor do que nunca. Os que conhece são muito mais sutis que antes. Conhece-os melhor porque tem os olhos abertos, mas não tem pena deles e não pode fazer nada para se livrar deles. Sente bem, quando comete uma infidelidade ou falta, uma certa nuvem ou poeira se levantar, mas ela cai por si mesma, sem que a alma faça nada para derrubá-la ou se limpar, além de que todos os esforços da alma seriam então inúteis e só aumentariam a impureza. A alma sentiria muito bem que a segunda mancha seria pior que a primeira.

Não se trata aqui de retorno, por mais simples que seja, pois o retorno supõe afastamento, e se se está em Deus, basta permanecer nEle…

O exterior dessas pessoas é totalmente comum, e não se vê nada de extraordinário. Aqui, tudo se vê, sem ver, em Deus tal como Ele é. Por isso este estado está menos sujeito ao engano. Não há visões, revelações, êxtases, arrebatamentos, mudanças. Nada disso está nesta via, que é simples, pura e nua, não vendo nada senão em Deus, como Deus se vê e por Seus olhos ].

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