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Maël Renouard (ASVC) – Angelus Silesius, querubínico?

ASVC

E se este viajante é chamado “querubínico”, é em relação à classificação dos anjos. Houve muitas versões; a mais célebre é a de Dionísio, o Pseudo-Areopagita. Nove categorias de anjos são distinguidas, divididas em três grupos, próximos de Deus em graus diversos. O mais afastado é o terceiro, que compreende as principados, os arcanjos e os anjos (o termo, portanto, aplica-se ao conjunto e restringe-se ao mesmo tempo a uma de suas partes); ao segundo pertencem as dominações, as virtudes e as potestades; ao terceiro, o mais próximo de Deus, os serafins, os querubins e os tronos. Angelus Silesius fala apenas destes últimos e, a seu respeito, emprega o nome de anjo apenas de forma genérica. Os serafins formam a mais elevada das hierarquias. Eles possuem o amor e suas chamas, a beleza, o esplendor. Os tronos possuem o repouso, o poder e o domínio. Os querubins conhecem, contemplam, têm a iluminação. Esses caracteres estão em conformidade com a tradição. Mas, para Silesius, é também Deus mesmo quem os possui através dos anjos: Deus “ama nos serafins, reina nos tronos, contempla nos querubins” (V, 215). O viajante místico, apaixonado por Deus e pela divinação, por sua vez, quer reunir em si esse triplo apanágio: ele se quer “iluminado como um querubim, calmo como um trono, inflamado como um serafim” (III, 165). Assim, o homem pode ser três vezes angélico (IV, 108). Ora, Angelus Silesius pede também mais. O livro, segundo as fórmulas que especificam seu título, visa a “conduzir à contemplação de Deus”. A dedicatória, ao próprio Deus, é assinada pelo autor que se afirma morrendo incessantemente do desejo de contemplá-Lo. E, no entanto, o conhecimento que essa visão proporciona não é suficiente. “O que o querubim conhece não pode me bastar, quero voar mais alto que ele, onde nada é conhecido” (I, 284): é preciso ir além de todo conhecimento. Pouco importa que o viajante querubínico seja já querubim ou apenas a caminho do estado de querubim, pois seu caminho deve levá-lo mais longe que a contemplação. O que é alcançado então, talvez seja o amor, o amor do serafim situado mais alto que o querubim. Mas o próprio amor deve ser superado: mais ainda do que amar a Deus, o melhor é elevar-se Nele além do amor (II, 1). Os serafins também se superam. Podemos ser mais altos, ser mais nobres que eles, tornando-nos águia, por exemplo (II, 171). Não convém parar em parte alguma. A viagem deve sempre continuar. Parar no caminho de Deus é recuar (I, 302; IV, 70). A síntese em um só homem dos três angelismos não é uma superação suficiente de cada um. O que me eleva acima do serafim não é ser ao mesmo tempo querubim e trono; é uma passagem para além, uma ascensão que não termina. A essência do homem só se encontrará em uma “super-angelidade” (Überengelheit, II, 44). Tal exigência de continuar reside em uma faculdade de metamorfose. O repouso espiritual que transforma o homem em trono, o amor que o transforma em serafim, procedem a uma “santa metamorfose” (IV, 144). Ora, passar de um estado a outro é ter uma potência que não possuem aqueles que mantêm sempre o mesmo ser. Minha preeminente nobreza, maior que a dos serafins, é que eu posso, eu, tornar-me o que eles são, enquanto eles não podem tornar-se o que eu sou (IV, 145). Posso mudar meu ser à vontade, pois a mudança é sua natureza, ao infinito. A encarnação é o indício da metamorfose. Cristo, Deus no homem, testemunha no homem uma possibilidade de infinito (IV, 147). Mais que anjo, mais que querubim, serafim ou trono, quero ser chamado filho de Deus (II, 236). Poder modificar a própria forma, sem que uma nova seja definitiva, é não ter nenhuma fixa. Cabe ao homem tornar-se sem forma, perder toda forma para se tornar semelhante a Deus (sich entbilden, II, 54). A metamorfose é a condição e a nobreza da humanidade: “Minha suprema nobreza é que posso na terra ser já um rei, um imperador, Deus, tudo o que quero” (IV, 146). É preciso querer a metamorfose: “Homem, tudo se transforma; e só tu, sem o menor progresso, continuarias sendo este velho bloco de carne? ]” (VI, 33) O homem está em potência de tudo, do anjo e do super-anjo, do melhor e do além do melhor, mas do pior igualmente. A capacidade de metamorfose é maravilha, liberdade e risco. “O homem sozinho é a maior maravilha: ele pode, segundo sua obra, ser Deus ou diabo” (IV, 70). Silesius não teme nessa essência em potência de tudo, nessa natureza que consiste em escapar a toda natureza, os mesmos abismos que Pascal, que também situava a natureza do homem em uma ausência de natureza, deixando entrever a confusão dessa natureza com a antinature do costume, mas que só reconhecia nela a desproporção com o que nos cerca, a monstruosidade, não a maravilha. Esse monstro é vã busca de uma base e de um ápice no mundo, “nada fixa o finito entre os dois infinitos, que o encerram e o fogem” (Pensées, edição Brunschvicg, n° 72); ele encontra seu ponto de referência, seu ponto fixo, e sua salvação, apenas fora da natureza, em Cristo, mas sem jamais ter parte em uma cristomorfose, em uma teomorfose como aquelas cujo poder Silesius nos reserva. Nada delimita o homem do Viajante Querubínico; a metamorfose lhe dá acesso ao infinito. “Quero a metamorfose”, wolle die Wandlung, é uma divisa de Rilke, poeta de anjos, leitor também de Angelus Silesius ]. O que se encerra no imóvel já está petrificado. Bleiben ist nirgends, em parte alguma se pode permanecer, diz a primeira das Elegias de Duino. O anjo de Rilke já sofreu as provas e as transformações. Ele sabe que não há parada, mas evolução total; ele sabe, por tê-lo realizado, que o homem, por uma série de metamorfoses, deve incessantemente dizer adeus a quem foi, e elevar-se em direção ao anjo, transformando, como ele sempre o fez, o visível em invisível, elevando as coisas no invisível. O anjo indica um caminho, uma obra a ser feita, uma poética, de certa forma. Mas ele é antes de tudo um pavor para nós, uma existência mais poderosa, que nos domina e nos derruba, ignorando-nos. O homem deve ser erguido diante dele, mas só se o descobre entre essa elevação e seu avesso, o animal, também mais forte, à sua maneira, porque ignora a morte. Angelus Silesius não mantém essa diferença do homem com o anjo e a fera. Não são, para ele, termos extremos e fechados, para os quais nosso movimento, bom ou mau, só pode permanecer assintótico; mas modos de ser possíveis, transponíveis, já que eles se abrem no próprio homem para Deus ou o diabo. Homem, anjo, Deus não são apenas três graus de uma busca, mas também como três caminhos que se unem em um além do homem, do anjo, de Deus (é preciso ir além do próprio Deus, até um deserto (I, 7); o além da divindade (Über-gotiheit) é minha vida e minha luz (I, 15)). Este triplo além é o Um primordial. O objetivo da mística é alcançá-lo. E logo, os santos, os próprios anjos nos separam de Deus e são apenas etapas a serem queimadas: “Para trás, para trás, serafins…” — tal é uma das primeiras fórmulas do livro. A indistinção primitiva estava antes do tempo, mas permanece, para Angelus Silesius, à nossa frente. O propósito é retornar, por um supremo abandono de si. É preciso aniquilar-se para renascer Deus, como Mazeppa cai e se levanta rei; mas perder-se é ir a uma memória. Faísca fora do fogo, gota fora do mar, “o que és tu, homem, se não voltares?” (V, 369). Mas “se voltares a ti, minha alma, tu te tornas o que eras — e o que reverencias e amas” (TV, 134). A unidade de si e de Deus, é o anterior, do qual o nascimento me separa, mas que um renascimento pode me devolver, por uma espécie de reminiscência. “Antes que eu seja, eu era a vida de Deus” (I, 73). Aquele que retorna ao mais distante de seu ser reencontra ali uma divindade imemorial, como o monge de Rilke dizendo, no Livro de Horas: “Somos os ancestrais de um Deus, e, por nossas mais profundas solidões, mergulhamos nos milênios vindouros até o seu começo.”

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