Marinette Bruno (HermesI) – Vias místicas, segundo Madame Guyon
Marinette Bruno (HermesI) A primeira obra proposta ao leitor, a mais próxima de nós no tempo (século XVII) e de leitura fácil, não é um livro de autoridade, mas o simples testemunho de uma grande mística secular. Madame Guyon, viúva, vivia então em Gex e foi durante uma estadia em Thonon que escreveu seu primeiro livro. «Nesse retiro, veio-me um impulso tão forte de escrever que não pude resistir», conta ela em sua autobiografia. «Ao pegar a pena, não sabia a primeira palavra do que queria escrever. Comecei a escrever sem saber como, e percebi que fluía com uma estranha impetuosidade. O que mais me surpreendia era que brotava do fundo, sem passar pela minha cabeça. Ainda não estava acostumada a essa maneira de escrever; no entanto, redigi um tratado completo sobre toda a via interior, sob a comparação dos rios e riachos.» ] Se tivesse refeito uma frase ou uma palavra, teria considerado isso uma «infidelidade». Se Madame Guyon obedeceu assim espontaneamente a uma inspiração profunda e de qualidade eminente, é porque havia então alcançado «a vida nova e divina» das almas que Deus «esconde em seu seio e sob a aparência da vida mais comum, para que sejam conhecidas apenas por Ele, ainda que sejam seu deleite». «Quando tal alma precisa escrever ou falar, fica igualmente surpresa ao ver tudo fluir desse fundo divino, sem que jamais tivesse pensado em possuir essas coisas. Ela se descobre como uma ciência profunda, sem memória nem lembrança, como um tesouro inestimável, que só se nota quando se é obrigado a manifestá-lo; e é a manifestação para os outros que é a manifestação para si mesma.» Ou, melhor ainda: «essa alma não existe mais, não age mais, mas Deus age…» ] A escrita espontânea, sem revisão ou espírito crítico, de Madame Guyon nos legou um verdadeiro tratado, uma exposição geral das diversas modalidades e graus da vida mística, digno de ser colocado em paralelo — ainda que se restrinja ao plano da experiência vivida — com as obras eruditas dos grandes místicos filósofos aqui citados. Este livro não é um estudo igualmente detalhado das três vias, pois um único capítulo basta para caracterizar cada uma das duas vias inferiores, enquanto todo o restante do volume é dedicado à via mais elevada, aqui chamada de «Fé nua», que Madame Guyon seguiu e à qual desejava conduzir todos os buscadores de Deus. Ela emprega com felicidade a metáfora dos cursos d’água — não havia descoberto recentemente o Ródano e as paisagens montanhosas? — comparando as almas das duas primeiras vias, respectivamente, a pequenos rios e a grandes rios, e as da Fé nua a torrentes que se precipitam no mar. A imagem é rica em sugestões: a rapidez e a força da corrente que arrasta, os acidentes do percurso e até a utilidade pública (barcos ou mercadorias transportadas), que simbolizam a ajuda espiritual que se pode oferecer aos outros. Por fim, a alma, na vida divina, ao final de sua jornada, perde-se em Deus como uma gota d’água no mar. Na primeira via, o esforço humano ainda é necessário, pois a graça é fraca: é a via da atividade. Na segunda, a graça é suficientemente forte para que a alma seja «passiva», ou seja, receba de Deus seus estados, descobrindo e explorando a «interioridade»: é a via da união e da grandeza, mas também do conhecimento. Em outra de suas obras, Madame Guyon esclarece que as almas dessa via «recebem luzes distintas para sua conduta… caminham segundo os testemunhos que suas luzes lhes dão, auxiliadas pela razão; e fazem bem», mas acrescenta mais adiante que «podem enganar-se nas luzes de seu espírito» ]. Em Les Torrents, nossa autora analisa com perspicácia suas outras imperfeições e lamenta que se condenem a não sair de suas «luzes» para alcançar o mais alto. Grandes são os perigos dessa via, precisamente por causa da imensa energia despertada e do papel do conhecimento. Na verdade, ela exige, talvez mais do que qualquer outra via ], a presença de um mestre pleno de graça e de ciência mística, que impedirá o discípulo de se perder, de iludir-se, de estagnar em suas realizações e que, eventualmente, o conduzirá além de suas riquezas. A via superior é a da Fé nua e do abandono total. «As pessoas conduzidas por essa via são aquelas que experimentam a ciência saborosa, ainda que guiadas por um abandono cego. Elas nunca avançam pelas luzes do espírito, como as primeiras… mas pelos caminhos impenetráveis da vontade oculta… com mais segurança do que as primeiras…» Para elas, «todas as operações mais imediatas ocorrem no centro da alma, que nada mais é do que as três potências reduzidas à unidade da vontade, onde todas se absorvem…» (Abrégé, G., 318-319.) Essa via desemboca em uma experiência essencial e decisiva, a da «toque eficaz na vontade», mencionada em Les Torrents, mas descrita em detalhes na Vie, como veremos. Muito voltada para Deus desde a infância, Madame Guyon desesperava-se por não conseguir fazer oração até encontrar um franciscano que lhe disse: «É, Madame, porque busca fora o que tem dentro. Acostume-se a buscar Deus em seu coração, e O encontrará ali.» Foi para ela uma abertura instantânea do coração, «uma flechada que atravessou meu coração de parte a parte», escreve. «Essas palavras colocaram em meu coração o que eu buscava há tantos anos, ou melhor, fizeram-me descobrir o que já estava ali e de que não desfrutava por não o conhecer.» Uma unção maravilhosa tomou todo o seu ser, mas também «um fogo devorador que acendia em minha alma um incêndio tão grande que parecia devorar tudo num instante. Fui transformada de tal modo que não me reconhecia mais, nem a mim mesma nem aos outros; não encontrava mais meus defeitos nem minhas repugnâncias; tudo me parecia consumido como um palha em um grande fogo.» E eis, em um único parágrafo, todas as características principais da via da Fé nua:
«Nada me era mais fácil então do que fazer oração; as horas passavam como momentos, e eu não podia deixar de orar: o Amor não me dava um instante de repouso… Minha oração, desde o momento de que falei, ficou vazia de formas, espécies e imagens: nada em minha oração passava pela cabeça; era uma oração de gozo e posse na vontade, onde o sabor de Deus era tão grande, tão puro e tão simples que atraía e absorvia as outras duas potências da alma em um profundo recolhimento, sem ato nem discurso. Tinha, por vezes, a liberdade de dizer algumas palavras de amor ao meu Bem-Amado, mas depois tudo me foi retirado. Era uma oração de fé que excluía toda distinção, pois não tinha nenhuma visão nem de Jesus Cristo nem dos atributos divinos: tudo era absorvido em uma fé saborosa, onde todas as distinções se perdiam para dar lugar ao amor de amar com mais amplitude, sem motivos nem razões para amar. Essa soberana das potências, a vontade, engolia as outras duas e lhes retirava todo objeto distinto para melhor uni-las em si, a fim de que o distinto, ao não as deter, não lhes roubasse a força unitiva e não as impedisse de se perder no amor. Não que elas deixassem de subsistir em suas operações desconhecidas e passivas, mas a luz da fé, como uma luz geral, semelhante à do sol, absorve todas as luzes distintas e as coloca em obscuridade para nós, porque o excesso de sua luz as supera todas.» ]
Se a primeira e a segunda vias consideradas por Madame Guyon remetem aos mesmos domínios de experiência que as vias śivaítas, sem apresentar seu caminho metodicamente conduzido, a via da Fé nua é, em todos os aspectos, muito próxima da via divina (ou de Śiva): encontram-se nela a instantaneidade, o papel da vontade, a intensidade do amor e a força do impulso, o transcendimento das representações e dos atributos na indiferenciação (ou não-distinção), e aqui essa imagem da luz não deixa de evocar a soberana Luz da Consciência.
