Identidade [CNEJ]
DITOS DE JESUS — CARNE E SANGUE (Jo VI, 25-71)
Joaquim Carreira das Neves: “Excertos de “Escritos de São João”
Trata-se do maior discurso de Jesus no quarto evangelho, com pequenos diálogos e monólogos. Podemos dividir o discurso em duas grandes partes. Na primeira (vv. 25-59) trata-se de perguntas dos judeus (vv. 25. 28. 30. 34. 41. 52) sobre a verdadeira identidade de Jesus, a quem Jesus responde de maneira calma e em estilo sapiencial. O diálogo termina de maneira estranha no v. 29 ao ser colocado pelo redator na “sinagoga de Cafarnaum”, uma vez que começa no v. 25 “no outro lado do lago”, em campo aberto. Na segunda parte (vv. 60-71), o diálogo dirige-se aos “discípulos” (vv. 60. 66: “muitos dos seus discípulos”) e aos “doze” (vv. 67. 70. 71) por causa das afirmações “eucarísticas” de Jesus.
Há uma unidade temática no diálogo, que vai do “comer do pão” (v. 26) até ao “comer da carne e beber do sangue” (vv. 51-56). A segunda parte é uma resposta “a muitos dos discípulos” de Jesus escandalizados pelas suas afirmações sobre o “comer a sua carne e beber o seu sangue”, terminando pela fé de Pedro (Doze) e do anúncio profético de Jesus sobre a traição de Judas.
Na primeira parte, os judeus interrogam Jesus porque não o percebem. Uma vez mais, o redator apresenta os dois tempos reais da pessoa de Jesus, o Jesus real dos judeus, ligados a Moisés e ao passado do êxodo, e o Jesus que se identifica por cima desse real bíblico do passado, centrando em si mesmo todo esse passado numa perspectiva de tipo sapiencial e de revelação escatológica. Jesus é imensamente compreensivo em relação a tal incompreensão, uma vez que se trata duma cultura religiosa fundamentada na própria Bíblia dos judeus. Só no v. 36 acusa os judeus: ”…vós vistes-me e não credes.“ Pelo contrário, os judeus, à medida que as perguntas e respostas se sucedem, “murmuram contra Ele” (v. 41), “exaltam-se”,”discutem“ (v. 52) e, finalmente,— mas já relacionados com os discípulos — “escandalizam-se” (v. 61) e abandonam-no (v. 66).
Na opinião de Jesus, os judeus só veem o aparente, a começar pelo pão físico, quando deviam ir mais fundo e mais longe (v. 27: “Trabalhai, não pelo alimento que desaparece, mas pelo alimento que perdura e dá a vida eterna…”). Esta resposta, de tipo sapiencial, leva os judeus a perguntar: “Que havemos nós de fazer para realizar as obras de Deus?” (v. 28)…“Que sinal realizas tu, então, para nós vermos e crermos em ti? Que obra realizas tu?” (v. 30). São perguntas retóricas, na intenção do autor, centradas no “sinal” do maná caído do céu. Jesus responde sempre substituindo-se ao próprio Deus ou fundindo-se com Ele:“Em verdade, em verdade vos digo: não foi Moisés que vos deu o pão do céu, mas é o meu Pai quem vos dá o verdadeiro pão do céu, pois o pão de Deus é aquele que desce do céu..!' (vv. 32-33)…“Eu sou o pão da vida…” (vv. 35. 38). Os judeus continuam a perguntar-se: “Não é Ele Jesus, o filho de José, de quem nós conhecemos o pai e a mãe…”? (v. 42).
O tema do maná era central na teologia dos judeus, recorrente ao longo dos tempos (Ex. 16,14.31; Dt 8,3; Ne 9,20; Sb 16,20-21: Am 8, 11; SI 78, 24). Quando viesse o Messias deveria apresentar sinais destes para ser identificado (v. 30:“Que sinal realizas tu, então, para nós vermos e crermos em ti?”).
O problema reside, assim, na rigidez teológica dos judeus que não se abrem à palavra profética das expectativas messiânicas. O tema do maná, como vimos, já aparece, ao longo dos tempos, na própria Bíblia, não apenas como uma comida duma planta, mas em sentido simbólico-sapiencial. E é deste modo que os livros sapienciais desenvolvem o sentido do pão da palavra e a comida do banquete messiânico (Sir. 15, 1.3; 24,19-21; Sb 16,20. 26; Pr 9,1-6). Na novela judaica José e Asenet, do tempo de Jesus, José “come o pão bendito da vida” (6, 3) e Asenet, depois de convertida, “comerá o pão da vida e beberá a taça da imortalidade” (15, 4). Jesus vem dizer que ele mesmo é este pão e esta vida uma vez que é o enviado do Pai, e “a vontade do Pai é que todo aquele que vê o Filho e nele acredita tenha a vida eterna e eu o ressuscitarei no último dia” (v. 40).
Na linha da profecia, Jesus cita o texto de Is 54, 13 e Jr 31, 34: “E todos serão ensinados por Deus”(v. 45). Se assim é, continua Jesus: “Todo aquele que escutou o ensinamento que vem do Pai e o entendeu vem a mim” (v. 46).
Nos vv. 51-58, o Jesus joanico passa do sentido sapiencial e simbólico do maná-pão, identificado com a sua pessoa, para o sentido “eucarístico”: “Em verdade, em verdade vos digo: se não comerdes mesmo a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós” (vv. 53-56). Jesus é demasiado realista para podermos dizer que as afirmações dos vv. 53-56 se devem interpretar apenas na linha sapiencial-simbólica dos versículos anteriores1).
No v. 51b a afirmação:”…e o pão que eu hei-de dar é a minha carne, pela vida do mundo” é sinônima da dos Sinópticos da ceia pascal: “pão-dar-carne-pela (sentido sacrificial de hyper)-vida do mundo” (os Sinópticos dizem pela multidão).
Nos vv. 53-56, Jesus repete uma e outra vez: “Em verdade, em verdade vos digo: se não comerdes mesmo a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós”. E culmina no v. 56:“Quem come da minha carne e bebe do meu sangue permanece em mim e eu nele”. E sempre a “pessoa de Jesus” que o autor apresenta no diálogo desde o v. 26, mas em registos diferentes: a do registo sapiencial-simbólico e a do sapiencial-sacramental ou “eucarístico”. Nos vv. 54-58, o autor releva ainda o existencialismo sacramental com o verbo trôgein (“mastigar” a minha carne). Assim se explica o “incômodo” (v. 52) e o “escândalo” dos “judeus” e de “muitos dos seus discípulos”: “Que palavras insuportáveis! Quem pode entender isto?” (v. 60b). E fato que Jesus afirma: “E o Espírito quem dá a vida; a carne não serve de nada: as palavras que vos disse são espírito e vida” (v. 63), mas nem por isso os discípulos voltam atrás; pelo contrário, “A partir daí, muitos dos seus discípulos abandonaram-no e já não andavam com ele” (v. 66). Assim sendo, o texto espelha as realidades vivas da comunidade joanica, que nós desconhecemos em particular. Os autores que defendem tratar-se dum discurso unívoco de sabor sapiencial em todo o cap. 6, 25-71, não reconhecem esta realidade de dissensões internas por detrás do texto. Semelhante realidade é também patenteada com a anotação espacial do redator:“Isto foi o que Ele disse em Cafarnaum, ao ensinar na sinagoga” (v. 59a). Se o “discurso” abre em campo aberto (vv. 24-25) como é que, agora, fecha numa sinagoga? Só se entende se também entendermos os dois tempos históricos, espaciais e teológicos de todo o evangelho. Quando o evangelho foi escrito, quem dominava na religião judaica era a sinagoga e não o Templo e Jerusalém. A oposição entre Moisés e Jesus, a Lei e o maná que descem do céu e Jesus que realiza escatologicamente esta descida pelo seu ensinamento corporizado na sua própria pessoa e pela liturgia eucarística da Igreja (igrejas), passava pelas questões sinagogais entre judeus fariseus e judeus cristãos. As aporias locais, históricas, temporais e espaciais, que encontramos continuamente ao longo do texto, explicam-se desta maneira2).
