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Kolakowski (LKCE) – Angelus Silesius, Multiplicidade

LKCE

Reduzida às suas categorias quase metafísicas, a visão de mundo de Scheffler concebe sumariamente o mundo visível como um conjunto homogêneo onde as quidditates qualitativas não têm importância, pois todas as coisas, como coisas, manifestam-se seja como a negação da deidade, seja como sua manifestação e, nesse aspecto — e essa é a única consideração que concretamente importa — são idênticas entre si.

Na ótica dicotômica, não há lugar para sistemas emanacionistas, para uma cosmologia ou uma astrosofia, nem mesmo para uma angelologia; o homem se manifesta como um produto diferenciado, mas é também incessantemente comparado a outras coisas; só contam a unidade e o retorno à unidade, e, portanto, ao repouso definitivo que é o objetivo de toda criatura: “Desde o primeiro dia, e ainda hoje, a criatura não busca senão o repouso de seu criador” (I, 110). Uma vez que o sábio não pode ter, fora de Deus, nenhum objetivo nem nenhum ponto para o qual dirigir seus sentimentos e pensamentos; uma vez que ele está “morto para tudo o que não é Deus” (VI, 241); uma vez, por outro lado, que “nada é conhecido em Deus” (I, 285), ou seja, nada de qualitativamente determinado; e que o homem deificado “ama sem sentir, mas sabe sem conhecimento” (II, 59) — é evidente que o olhar humano, ao se dirigir para qualquer multiplicidade, qualquer coisa definida, qualquer diversificação, testemunha por isso que permanece ainda escravo de sua “solidão maldita”. Dos dois olhos que a natureza lhe deu, e dos quais um está voltado para a eternidade e o outro para o tempo, é preciso enuclear o segundo, para que o primeiro possa olhar: “A alma que quer atingir Deus, o coração, que ela vise o alvo com um só olho, o direito” (V, 336). Não há harmonia nem síntese possíveis entre os dois mundos; quem quer ver verdadeiramente, deve primeiro cegar-se; essa excaecatio espiritual — há muito encarnada nos mitos dos profetas e videntes cegos (Tirésias) — reduz a multiplicidade das coisas a uma massa indiferenciada, totalmente abraçada pelo ato de recusa. A multiplicidade, a qualidade, a diversidade do mundo figuram, portanto, nessa poesia apenas como função decorativa. Bastará deter-se um instante no tema da rosa, tão frequente em Silesius (I, 108, 289; III, 77, 84, 87, 88, 91) para se convencer de que a rosa não é de forma alguma uma rosa; ela desempenha o papel de símbolo arbitrário, usado para as comparações mais diversas, e em cada caso, pode ser substituída por qualquer outra imagem que se queira; é uma denominação para as coisas em geral ou para Cristo, ou para a alma, ou para os valores espirituais, mas, em nenhum caso, para a flor.

Se, portanto, a insistência bastante nítida com que Silesius recorre a esse símbolo pode ser explicada por reminiscências de leituras teosóficas, vê-se claramente que a dependência, nesse caso, é puramente verbal e não diz respeito ao fundo. Na convicção de que só aquele que, por sua própria vontade, se tornou cego, surdo e mudo e se privou do tato, chega a Deus, expressa-se o medo desesperado do mundo, que explica a felicidade do êxtase místico. Poderia francamente parecer que esses dois modelos de pensamento — o modelo teosófico, que busca incessantemente no mundo sinais inteligíveis de outra realidade, a “verdadeira”, e aquele que é próprio de Silesius e onde domina a fuga do mundo estranho da multiplicidade e de si mesmo — constituem, de certa forma, duas manifestações, levadas ao absoluto e formuladas em termos filosóficos, que são geralmente consideradas tipicamente esquizofrênicas: em um, a descoberta de “sinais” em tudo o que o espetáculo do mundo oferece; no outro, o sentimento de “despersonalização”, de “desrealização”, de “estranheza”.

Não temos as competências necessárias para adicionar esse terceiro ponto de vista, também possível — de natureza psiquiátrica —, às interpretações já tentadas, embora não duvidemos, obviamente, de seu valor. Nossa interpretação, como sempre, segue dois caminhos: tenta descobrir no objeto considerado uma estrutura inteligível que possa se relacionar a um fenômeno primordial eideteticamente apreensível; esforça-se, em seguida, para se interessar pelo sentido histórico possível do objeto estudado, encontrando-lhe um lugar nos conflitos “reificados” das coletividades. A eficácia desses esforços nunca é certa, dado que o sentido do fenômeno decifrado é também histórico, nisso que é obrigatoriamente uma projeção dos sentidos possíveis incluídos em nossa própria época.

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