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Kolakowski (LKCE) – Angelus Silesius, caráter não-confessional

LKCE

O caráter não confessional e não eclesiástico da mística de Silesius, na verdade, não necessita de interpretação particular; nada impede que se o decifre diretamente em suas fórmulas e alusões, e ele revela toda a indiferença do autor tanto pela piedade católica quanto luterana. O desdém total pelas “obras” religiosas em benefício da “essência” que, sozinha, santifica cada ato, pode evocar, é verdade, a tradição dos primórdios do luteranismo:

“Homem, o sono do justo é mais estimado por Deus do que o que o pecador lhe oferece em orações e cantos a noite inteira” (V, 334).

Todavia, essa é uma concordância aparente, se notarmos que, do ponto de vista de Lutero, as obras religiosas exteriores, e também o amor ativo ao próximo, embora não comportem mérito autônomo, são manifestações indispensáveis e espontâneas da fé. Para Silesius, ao contrário, o que é decisivo na santidade é a rejeição de qualquer preocupação com coisas ou assuntos finitos, com tudo o que é “isto ou aquilo”:

“Se isto ou aquilo ainda te comove ou te agita, ainda não estás totalmente sepultado com Deus” (I, 134).

Nenhum ato santo tem importância para Deus (I, 194), enquanto o homem unido a Deus o é também em cada uma de suas atividades:

“As obras são iguais para Deus; o Santo, quando bebe, agrada-lhe tanto quanto quando ora e canta” (V, 170).

Nessa religiosidade quietista, antinominalista, os meios exteriores de salvação — a comunidade, os sacramentos, as orações vocais, a Escritura sagrada — tudo é, por sua vez, desautorizado como uma manifestação de apego ao mundo das criaturas que, na via régia da unificação, só pode constituir um estorvo. Não é a oração que é necessária, mas o silêncio no qual a voz humana se extingue para dar lugar à palavra divina:

“Quando pensas em Deus, tu o ouves em ti mesmo: se calasses e ficasses quieto, Ele falaria incessantemente” (V, 330).

É inútil buscar contato com Deus pela Eucaristia, uma vez que o santo consome Deus tão bem em cada pedaço de pão e experimenta sua presença:

“Se és deificado, bebes e comes Deus (e isso será eternamente verdadeiro) em cada bocado de pão” (II, 120).

A Bíblia escrita não tem importância, uma vez que Cristo se transmitiu a nós como “Livro vivo da vida” (V, 176) e uma vez que é o Verbo divino interior, e não a letra, que salva:

“A Escritura é Escritura, nada mais. Meu consolo é a essência, e que Deus diga em mim o Verbo da eternidade” (II, 137).

Todos os temas que opõem a mística a qualquer religiosidade confessional, e que se resumem em uma negação apaixonada de todo intermediário entre a alma e Deus (“Fora com essa divisória!” — II, 43), retornam constantemente ao longo dessas páginas, tanto em apelos gerais quanto particulares, diretos ou indiretos.

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