Ruysbroeck (JRO) – Ornamento das Núpcias Divinas III: vida na contemplação de Deus
Ruysbroeck, JRO, Ornamento das Núpcias Espirituais
Extratos selecionados por Jacqueline Chambron e traduzidos de HVM
A Vida na Contemplação de Deus (livro III)
… Essa contemplação, diz ele, nos coloca em uma pureza e em uma clareza que superam toda a nossa inteligência… E ninguém pode alcançá-la pela ciência ou pela sutileza, nem por qualquer exercício. Mas aquele a quem Deus quer unir ao Seu espírito e a quem agrada transfigurar por Si mesmo pode contemplar a Deus e nenhum outro o pode (…). … Raríssimos são aqueles que podem atingir essa contemplação divina por causa de sua própria incapacidade ou do mistério da Luz na qual se contempla. E é por isso que ninguém, por sua única ciência ou por alguma reflexão sutil, compreenderá a fundo (estas explicações), pois todas as palavras e tudo o que se pode aprender e compreender segundo a via das criaturas são estranhos e muito aquém da verdade de que falo. Mas aquele que está unido a Deus e iluminado nessa verdade, pode compreender a verdade por si mesma; pois, compreender e conceber Deus acima de todas as figuras, tal como Ele é em Si mesmo, é ser Deus com Deus, sem intermediário nem qualquer diferença que possa se interpor como um obstáculo. Peço, portanto, a todo homem que não compreende isso e não o experimenta na unidade fruidora de seu espírito que não se ofenda e que deixe as coisas serem o que são. O que direi é verdadeiro; e ver-se-ia que Cristo, a eterna Verdade, o disse Ele mesmo em Seu ensinamento repetidas vezes, se for possível mostrá-lo e expressá-lo claramente. Por isso, quem quiser compreender isto deve estar morto para si mesmo e deve viver em Deus; virará seu rosto para a Luz eterna, no fundo de seu espírito onde se revela sem intermediário a oculta verdade. Primeira parte Agora, se o espírito quiser ver Deus com Deus, sem intermediário nesta Luz divina, são necessariamente três coisas: em primeiro lugar, deve estar bem regulado por fora, em todas as virtudes, e por dentro, tão livre de toda obra exterior como se não exercesse nenhuma. … Em segundo lugar, deve interiormente aderir a Deus, aplicando a Ele sua intenção e seu amor como um fogo flamejante que jamais pode se apagar. Assim que se sente nesse estado, pode contemplar. Em terceiro lugar, deve se perder em um Não-Caminho e em uma treva onde todos os seres dedicados à contemplação se extraviam na deleite sem jamais poder se reencontrar segundo o modo das criaturas. No abismo dessa treva onde o espírito amante está morto para si mesmo começam a manifestação de Deus e a vida eterna; pois nessa treva se engendra e resplandece uma incompreensível Luz que é o Filho de Deus, em quem se contempla a vida eterna. É nessa Luz que se torna vidente; e essa divina Luz é dada na visão simples do espírito onde o espírito recebe a clareza que é Deus mesmo acima de todos os dons e de todas as obras criadas, no repouso e na vacância do espírito onde ele mesmo se extravia pelo amor de fruição, e recebe a clareza de Deus, sem intermediário. E se torna incessantemente essa mesma clareza que recebe. Vejam, essa oculta clareza na qual se contempla tudo o que se pode desejar segundo a vacância do espírito, é tão grande que o amante que a contempla, em seu fundo onde repousa, só vê e experimenta uma incompreensível Luz; na simples nudez que abrange todas as coisas, se vê e se sente essa mesma luz pela qual vê, e nada mais… Segunda parte Como a geração divina se renova sem interrupção na nobreza do espírito. Tornados videntes, podemos contemplar com alegria o eterno advento de nosso Esposo (…). É uma geração nova, uma iluminação nova que se realiza incessantemente. Pois o fundo de onde jorra a clareza e que é essa própria clareza, é vida e fecundidade. Por isso a manifestação da eterna Luz se renova sem interrupção no mais secreto do espírito. (…) Deus se engendra a Si mesmo, sozinho, no cume sublime do espírito. E só há aqui uma eterna contemplação da Luz pela Luz e na Luz. E o advento do Esposo é tão rápido que está sempre lá, permanecendo com sua opulência abissal, e está sempre vindo, em pessoa, incessantemente novo, com novas clarezas como se nunca tivesse vindo antes. Pois seu advento consiste, fora do tempo, em um agora eterno, sempre recebido com novos desejos e novas alegrias. Vejam! as delícias e as alegrias que esse Esposo traz em seu advento são sem fundo e sem limites porque são Ele mesmo. Assim, os olhos do espírito, pelos quais contempla e fixa seu olhar no Esposo, estão tão largamente abertos que jamais se fecharão, pois a contemplação e esse olhar do espírito permanecem para a eternidade na oculta manifestação de Deus. E a compreensão do espírito está tão largamente expandida para o advento do Esposo que o próprio espírito se torna a imensidão que apreende. É assim que Deus é apreendido e visto por Deus, e lá reside toda a nossa bem-aventurança… Terceira parte … Nessa clareza, isto é, no Filho, o Pai se revela a si mesmo, assim como tudo o que vive n'Ele… Por isso, tudo o que vive no Pai, oculto na unidade, vive no Filho, fluindo na manifestação e no fundo simples de nossa imagem eterna, permanece para sempre na treva, na ausência de toda via. Mas a clareza imensa que dela irradia manifesta e produz segundo certas vias o mistério de Deus… Então todos os homens, elevados acima de seu estado de criatura a uma vida contemplativa, se tornam um com essa clareza divina; são essa mesma clareza, e veem, sentem e encontram, graças a essa luz divina, que são eles mesmos esse fundo simples segundo sua essência incriada de onde essa clareza sem medida irradia, segundo a via divina, e que na simplicidade da Essência permanece eternamente na Unidade sem via de acesso. Por isso os homens interiores dedicados à contemplação sairão segundo a via da contemplação acima da razão, da distinção e mesmo de seu ser criado, por meio de um olhar intuitivo e eterno, graças a essa Luz que neles se engendra. Assim são transformados e se tornam um com essa mesma Luz pela qual veem e que veem… Aqui está a contemplação mais nobre e mais útil a que se pode chegar nesta vida, pois o homem permanece nela o mais senhor de si e o mais livre… permanece livre e senhor de si na vida interior e na prática das virtudes… … Mas se fôssemos tirados deste exílio… seríamos mais capazes, segundo nossa natureza criada, de receber a clareza, então a glória de Deus nos iluminaria melhor e mais sutilmente. Tal é a via acima de todas as vias, na qual se sai em uma contemplação divina e um olhar intuitivo eterno. Assim se é transformado e transmutado na clareza divina. Quarta parte: o encontro Sobre o encontro divino sempre novo que ocorre no mais secreto de nosso espírito, atingido o ápice da bem-aventurança, Ruysbroeck escreve uma página admirável para mostrar que no abraço do Pai e do Filho somos abraçados pelo Espírito no fundo do amor eterno: O abraço amoroso é em seu fundo deleite fruidor e ausência de via, pois o abismo de Deus é tão tenebroso e tão desprovido de via de acesso que engole em si mesmo todas as vias divinas, todas as operações e as propriedades das Pessoas no opulento envolvimento da Unidade essencial, e uma deleite fruidor se realiza no abismo do Sem-Nome. Aqui os transportes da deleite onde (o espírito) se funde e flui na nudez essencial onde todos os nomes de Deus, onde todas as vias, todas as ideias e as razões vivas que se refletem no espelho da divina Verdade, afundam todos na simplicidade sem nome, sem via e sem razão… Pois, neste abismo sem fundo da Simplicidade, todas as coisas se encontram abraçadas na bem-aventurança fruidor, mas o próprio fundo não é abraçado por nada, a não ser pela Unidade essencial. Aqui as Pessoas e tudo o que é vida em Deus devem se reabsorver. Aqui, de fato, só há um eterno repouso em um abraço fruidor onde tudo flui no Amor. Essa é a Essência sem via que todos os espíritos interiores escolheram para morada. Esse é o silêncio tenebroso onde todos os amantes se perdem. E nós, se pudéssemos nos preparar pelas virtudes, nos despiríamos de nossa vida, nos deixaríamos levar pelas ondas selvagens desse oceano de onde jamais criatura alguma poderia nos trazer de volta.
