Evelyn Underhill (EUJR) – Jan van Ruysbroeck, natureza de Deus
EUJR Nenhum estudante dos místicos negará a abundante inspiração pela qual Ruysbroeck foi possuído; mas esta inspiração é espiritual, não intelectual. A verdade foi-lhe contada na língua dos anjos, e ele fez o seu melhor para traduzi-la para a língua da Igreja; perpetuamente nos lembrando, ao fazê-lo, quão grande era a diferença entre visão e descrição, quão desajeitados e inadequados aqueles conceitos e imagens com os quais o artista-vidente tentava expressar seu amor. Essa distinção, que o leitor de Ruysbroeck jamais deve esquecer, é de suma importância em conexão com sua abordagem da Natureza de Deus; onde a disparidade entre a coisa conhecida e a coisa dita é inevitavelmente máxima. A alta natureza da Divindade, diz ele, numa sequência de imagens sugestivas e paradoxais, às quais São Paulo, Dionísio e Eckhart contribuíram, é, em si mesma, “Simplicidade e Unidade; altura inacessível e profundidade insondável; amplitude incompreensível e duração eterna; um silêncio indistinto, e um deserto selvagem”—linguagem oblíqua, sugestiva, musical que encanta mais do que informa a alma; abre a porta à experiência, mas não transmite nenhum conhecimento preciso da Verdade Sem Imagem, “Ora, podemos experimentar muitas maravilhas nessa Divindade insondável; mas embora, por causa da grosseria do intelecto humano, quando queremos descrever tais coisas exteriormente, devemos usar imagens, na verdade aquilo que é interiormente percebido e contemplado não é senão um Bem Insondável e Incondicionado.” No entanto, essa Realidade primal, esse Um em última instância indivisível, tem para a consciência humana um caráter duplo; e embora para a intuição do místico sua fruição seja uma experiência sintética, deve ser analisada em pensamento se é que há de ser compreendida. Deus, tal como conhecido pelo homem, exibe em sua perfeição a propriedade dual do Amor; por um lado, ativo, gerador, criativo; por outro lado, uma posse ou Fruição quieta e inefável — uma das palavras-chave do pensamento de Ruysbroeck. Ele é, então, o Um Absoluto, em quem a antítese de Eternidade e Tempo, de Ser e Vir a Ser, está resolvida; tanto estático quanto dinâmico, transcendente e imanente, impessoal e pessoal, indiferenciado e diferenciado; Repouso Eterno e Obra Eterna, o Motor Imóvel, ainda que Movimento em si mesmo. “Embora em nossa maneira de ver demos a Deus muitos nomes, Sua natureza é Uma.” Ele transcende a tempestade da sucessão, mas é o espírito inspirador do fluxo. Segundo sua natureza fecunda, “Ele trabalha sem cessar, pois é Puro Ato” — uma reminiscência de Aristóteles que parece estranha nos lábios do ‘monge ignorante’. Ele é o Criador onipotente e sempre ativo de todas as coisas; ‘uma Chama imensurável de Amor’ que exala perpetuamente Sua Vida energética em novos nascimentos do ser e novas inundações de graça, e atrai novamente todas as criaturas para Si mesmo. Contudo, essa afirmação define, não o Seu ser, mas uma manifestação do Seu ser. Quando a alma penetra além dessa natureza ‘fecunda’ para Sua essência simples — e ‘simples’ deve ser entendido aqui e em todo o texto em seu significado primordial de ‘sintético’ — Ele é aquela Realidade absoluta e permanente que para o homem parece Repouso Eterno, o ‘Silêncio Profundo da Divindade’, o ‘Abismo’, o ‘Silêncio Obscuro’; e que podemos de fato provar, mas nunca conhecer. Lá, ‘todos os amantes se perdem’ na consumação daquela experiência que nossas intuições fragmentadas insinuam. O aspecto ativo e fértil da Natureza Divina manifesta-se na diferenciação: para Ruysbroeck, o Católico, na Trindade de Pessoas, como definida pela teologia cristã. O aspecto estático e absoluto é a 'Unidade calma e gloriosa da Divindade' que ele encontra além e dentro da Trindade, “o Abismo insondável que é o Ser de Deus” – uma ideia familiar ao misticismo indiano e implícita no Neoplatonismo cristão, que governou todas as especulações de Mestre Eckhart sobre a Natureza Divina. Há, diz Ruysbroeck em uma de suas passagens mais eckhartianas, “uma distinção e diferenciação, segundo a nossa razão, entre Deus e a Divindade, entre ação e repouso. A natureza fecunda das Pessoas, de quem é a Trindade em Unidade e Unidade em Trindade, opera sempre numa diferenciação viva. Mas o Ser Simples de Deus, segundo a sua natureza, é um Repouso Eterno de Deus e de todas as coisas criadas.” Ao diferenciar os três grandes aspectos da Vida Divina, tal como conhecidos pelo amor e pelo pensamento do homem, Ruysbroeck mantém-se próximo da teologia formal; embora investindo a sua linguagem acadêmica de um significado novo e profundo, e constantemente nos lembrando de que tal linguagem, mesmo no seu melhor, nunca pode ir além da região da imagem e da semelhança ou proporcionar mais do que um reflexo imperfeito do Uno que ‘não é nem Isto nem Aquilo’. Em seus lábios, as definições credais passam perpetuamente da árida região do argumento teológico para a fecunda da experiência espiritual. Lá se tornam cânticos, tão ‘novos’ quanto o cântico ouvido pelo Apocalíptico; canais reais de luz, que mostram à mente coisas que ela nunca antes imaginou. Para o homem ‘renascido’ elas têm um significado fresco e imortal; porque aquele ‘rio de graça’, de que ele fala perpetuamente como jorrando no coração aberto para o Infinito, as transfigura e irradia. Assim, a mente iluminada conhece no Pai, não uma metáfora confusamente antropomórfica, mas a Fonte vital única e a Origem incondicionada de todas as coisas “em quem a nossa vida e o nosso ser começaram”. Ele é a “Força e Poder, Criador, Motor, Guardião, Princípio e Fim, Causa e Existência de todas as criaturas.” Além disso, a intuição do místico discerne no Filho o Verbo Eterno e a insondável Sabedoria e Verdade perpetuamente geradas do Pai, resplandecendo no mundo das condições: o Padrão ou Arquétipo da criação e da vida, a imagem de Deus que o universo reflete diante da face do Absoluto, a Regra Eterna encarnada em Cristo. E essa mesma ‘luz em que vemos a Deus’ também mostra à mente iluminada o verdadeiro caráter do Espírito Santo; o Amor Incompreensível e a Generosidade da Natureza Divina, que emana em uma procissão eterna da mútua contemplação do Pai e do Filho, “pois essas duas Pessoas estão sempre famintas de amor.” O Espírito Santo é a fonte da vitalidade Divina imanente no universo. É um torrente de Bem que flui por todos os espíritos celestiais; é uma Chama de Fogo que tudo consome no Um; é também a Centelha de transcendência latente na alma do homem. O Espírito é o lado pessoal, a Graça o lado impessoal, daquele Amor energético que envolve e penetra toda a vida; e “tudo isso pode ser percebido e contemplado, inseparável e sem divisão, na Natureza Simples da Divindade.” As relações que formam o caráter destas Três Pessoas existem numa distinção eterna para aquele mundo de condições em que a alma humana está imersa, e onde as coisas acontecem ‘de alguma forma’. Lá, do abraço do Pai e do Filho e do derramamento do Espírito em ‘ondas de amor sem fim’, todas as coisas criadas nascem; e Deus, por Sua graça e Sua morte, as recria, e as adorna com amor e bondade, e as atrai de volta à sua fonte. Este é o curso circular do processo divino da vida ‘da bondade, através da bondade, para a bondade’, descrito por Dionísio, o Areopagita. Mas para além e acima deste plano de diferenciação Divina está o mundo superessencial, transcendendo todas as condições, inacessível ao pensamento — “a solidão imensurável da Divindade, onde Deus se possui em alegria”. Este é o mundo último do místico, discernido pela intuição e pelo amor “numa visão simples, para além da razão e sem consideração”. Lá, dentro do ‘Eterno Agora’, sem antes nem depois, liberto da tempestade da sucessão, as coisas de fato acontecem, ‘mas de nenhuma forma’. Lá, “não podemos mais falar de Pai, Filho e Espírito Santo, nem de qualquer criatura; mas apenas de um Ser, que é a própria substância das Pessoas Divinas. Lá éramos todos um antes da nossa criação; pois esta é a nossa superessência…. Lá a Divindade é, em essência simples, sem atividade; Repouso Eterno, Escuridão Incondicionada, o Ser Sem Nome, a Superessência de todas as coisas criadas, e a bem-aventurança simples e infinita de Deus e de todos os Santos.” Ruysbroeck nos traz aqui à posição de Dante no último canto do Paradiso, quando, transcendendo aquelas apreensões parciais da Realidade que são figuradas pelo Rio do Devir e pela Rosa da Beatitude, ele penetrou na visão rápida da “Luz Eterna que só em Si reside” — discernida melhor pelo homem sob a imagem dos três círculos, mas em sua ‘substância profunda e clara’ indivisivelmente Uma.
“A luz simples deste Ser é ilimitada em sua imensidão, e transcendendo a forma, inclui e abraça a unidade das Pessoas Divinas e a alma com todas as suas faculdades; e isso a tal ponto que envolve e irradia tanto a tendência natural de nosso fundamento quanto a adesão frutífera de Deus e de todos aqueles que estão unidos a Ele nesta Luz . E esta é a união de Deus e das almas que O amam.”
