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Bizet (JABR) – Ruysbroeck, a doutrina (1)

JABR

A lenda conta que Ruysbroeck, iluminado pelo Espírito Santo, redescobriu sem o auxílio das noções ensinadas, a ciência integral das coisas de Deus. A especulação teológica nasceu das controvérsias que marcaram os primeiros passos hesitantes do pensamento cristão. Os dogmas se precisaram sob a necessidade de determinar a verdade aceitável face aos erros e divagações possíveis. A doutrina espiritual dos místicos germânicos do século XIV desenvolveu-se no mesmo clima polêmico alimentado pela proliferação de doutrinas heterodoxas: o que estava em questão, porém, não era mais este ou aquele ponto controverso do dogma, mas os dados primários da fé cristã e a própria instituição eclesiástica.

Os ensinamentos de Ruysbroeck, como os de Eckhart, Suso e Tauler nos países do Reno, respondiam a uma nova necessidade de catequese popular. Já não se tratava, como nos primeiros séculos, de convencer alguns teólogos desviados de seu erro: o próprio rebanho estava contaminado. No momento em que a consciência individual se abre à inteligência das noções inculcadas, ela cede ao atrativo de teorias exaltantes, desdenhando os magros pastos que pastores incapazes e muitas vezes indignos teimavam em fazê-la pastar.

As discussões de pura forma em que se atola a escolástica decadente já não interessam aos espíritos verdadeiramente religiosos 1): poucos são aliás capazes de compreender seu significado. Então cada um começa a especular por conta própria: beguinas incultas formam ideias particulares sobre a Unidade e Trindade divinas; penitentes exasperados professam um evangelismo ilusório que lança descrédito sobre as formas tradicionais do culto, os sacramentos, a hierarquia manchada pelo espírito do mundo. Chega o tempo das procissões de flagelantes, alternando com as sarabandas de “dançarinos” levianos 2).

Por trás dessas manifestações aberrantes percebe-se contudo uma religiosidade real. Como a chama dá um salto antes de se extinguir, o sentido religioso se exaspera antes de consentir em se negar. Os campeões da fé ortodoxa sabem bem que sua tarefa já não se limita a uma pregação contra gentios: precisam levar em conta, nos desviados que deixaram o redil, o que um documento da inquisição chama de responsum spiritus 3), uma aptidão fundamental para perceber o chamado do espírito.

M. Emile Mâle escreveu que o misticismo do fim da Idade Média poderia também ser chamado de seu realismo, “pois nasceu do desejo de tocar Deus” 4). As multidões cedem então a crenças aberrantes que as mantêm na ilusão de um estado de perfeição invariável, de bem-aventurança adquirida onde creem sentir o contato de Deus: é normal que já não se contentem com uma religião de simples preceito e prática rotineira. O sentimento religioso, segundo uma palavra de Suso, quer ser vivido (Vita, C. LII.); exige, para perseverar, um alimento substancial que lhe é demasiado vezes recusado - quem sabe se, em todas as épocas, o livre pensamento (dizia-se na Idade Média o livre espírito), não é uma solução de desespero para crentes mortos de inanição! O maná, porém, existe; os que o guardam, só precisam “tomar” e “distribuir”, para que a religião vivida e sentida não seja apanágio das seitas.

Lembra-se do voto que expressava frei Gérard: era grande tempo de instruir o povo, por uma doutrina sólida, para conter o progresso da heresia. Mas Ruysbroeck não hesita em usar uma espada de dois gumes: ao mesmo tempo que ataca os erros propagados pelas seitas, estigmatiza a decadência do clero, a grande prevaricação que foi o pesadelo de todos os espirituais no período angustiado que precedeu a Reforma.

As associações de beguinas e begardos, particularmente prósperas nos Países Baixos, passavam por focos de heresias. Efetivamente esses piedosos leigos, agrupados pela emulação de uma vida de oração e obras caritativas, sem estarem ligados pela observância de uma regra monástica, eram particularmente acessíveis às doutrinas pseudo-espirituais que as seitas propagavam. A autoridade eclesiástica não parece ter usado em relação a eles de uma política concertada. A medidas de repressão massiva sucedem períodos de tolerância. A cúria fulmina as censuras pronunciadas pelo concílio de Viena, mas intervém por vezes para moderar a severidade de um bispo e fazê-lo discernir o bom grão do joio (Cf. Delacroix, o. c., pp. 88-89). A ambiguidade se acentua pela adesão de muitos begardos aos terceiros ordens, sobretudo ao de São Francisco, de modo que as ordens mendicantes encarregadas da repressão da heresia, tornam-se seus protetores naturais (Ibid.).

Não é certo que os begardos que caíam no erro professassem um sistema de doutrinas coerentes. A inspiração dominante é a do Livre Espírito cujos sectários, perseguidos nos países do Reno onde Estrasburgo e Colônia eram seus bastiões, haviam refluído para o Brabante e Flandres. O interrogatório de um begardo de Bruxelas, outrora descoberto por Preger 5), faria crer que elementos averroístas 6) se haviam amalgamado a um bloco de doutrinas heteróclitas onde os erros de Amaury de Bène se juntavam aos de Pelágio, tendo como elo um naturalismo esotérico renovado das mais antigas perversões do sentimento religioso.

As páginas que Ruysbroeck dedica, nomeadamente em As Núpcias Espirituais e em As Doze Beguinas à refutação das heresias, estão entre os documentos mais significativos de que dispõe o historiador sobre esse assunto ainda mal esclarecido. Se não está provado que o episódio centrado no nome de Bloemardinne tenha tido repercussões notáveis na obra espiritual do grande místico brabanção, encontra-se ali pelo menos prefigurados dois dos principais pontos de sua acusação: o espírito de liberdade e a sublimação do amor carnal, que resumem as aberrações morais dos pseudo-espirituais; autorizam a pensar que a heresia de Bloemardinne e seus sectários foi apenas uma ressurgência local do Livre Espírito.

Há uma maneira de entender o espírito de liberdade que se mantém na linha de uma firme ortodoxia cristã: ubi spiritus Domini, ibi libertas (II Cor., III, 17). O desvio se acentua com a presunção de sacudir por isso toda regra, toda coação ou sujeição. Os “falsos profetas” que Ruysbroeck denunciava, consideravam-se desobrigados dos preceitos e observâncias instituídos pela Igreja. Abstinham-se de louvar Deus e de orar. Não celebravam as festas. Não se consideravam ligados pela lei do jejum. Por outro lado visavam libertar-se de toda obrigação social, nomeadamente da necessidade do trabalho, para se manterem num estado de disponibilidade onde viam a realização efetiva da liberdade. Evocar um pensamento, “uma imagem”, formar mesmo um desejo, teria prejudicado o repouso interior de que não queriam se afastar. Reduzidos a um estado de pura passividade imaginavam-se meros instrumentos nas mãos da divindade, “à semelhança do instrumento que por si mesmo permanece inativo à espera do momento em que seu senhor queira trabalhar” (Cf. Infra, p. 340). Não podia haver para eles questão de se exercer na prática da virtude: julgavam-se elevados a um estado de perfeição onde a alma é incapaz de adquirir algum mérito; por isso podiam dizer-se impecáveis e entregar-se sem escrúpulos nem remorsos a todos os seus instintos. Para a alma que destruiu em si toda vontade própria, a ilusão está próxima de não mais se crer movida senão por impulsos divinos: resistir à inclinação da natureza seria opor obstáculo à liberdade interior, repudiar um estado de inocência, adquirida ou reencontrada, para o qual pode parecer que a lei não foi feita. Nessa certeza uma Bloemardinne encontra justificações seráficas para o amor menos equívoco. A mesma tendência levará Gerson a denunciar como “uma forfaiture intolerável” a aberração que consiste em fazer das complacências da carne “coisa divina e sagrada a adorar” 7). No princípio de tais desvios morais Ruysbroeck descobre um fundo de crenças panteístas, ao menos implícitas, sobre as quais se mostra perfeitamente informado - não é inútil notá-lo, pois a acusação foi lançada contra seus próprios escritos: “(Os pseudo-espirituais) pretendem ser a essência divina, acima da distinção das três pessoas, e dizem-se estabelecidos em tal repouso que já nem sequer são, por assim dizer; pois a essência divina não opera… Há os que ousam dizer que quando morrerem serão essa mesma substância que eram antes, como a água de uma fonte tirada num vaso, depois lançada de novo na fonte, torna-se o que era no princípio.” (As Doze Beguinas, c. xix).

Pode ter parecido que Ruysbroeck estabelecia distinção entre diferentes correntes doutrinárias 8). As diferenças que nota, referidas a uma série de erros contra as três pessoas divinas, parecem responder sobretudo a um artifício de composição. Discernem-se melhor em sua exposição das heresias duas direções principais, uma quietista, outra panteísta, que aliás só divergem para se reencontrarem e se reforçarem mutuamente. Uma demarcação mais nítida, ainda que secundária, traça-se em As Núpcias entre os hereges que creem na possibilidade do mérito e os que a negam (V. infra, p. 343): no estado atual dos conhecimentos sobre as heresias medievais, não se vê se seitas diversas se separavam nesse ponto doutrinal ou se não foi objeto senão de controvérsias de menor alcance. De qualquer modo convém observar que as proposições censuradas formam menos um sistema de teses definidas que um amontoado de doutrinas residuais, amalgamadas ao acaso das influências locais, num meio “provinciano” afastado dos centros onde as ideias se confrontavam.

As doutrinas espirituais desenvolvidas nos escritos que vão de O Reino dos Amantes a As Doze Beguinas, retificam o erro em seus aspectos multiformes sem repelir as almas interiores que se sentem pressionadas a viver segundo as mais altas exigências da vida em Deus. Era nesse terreno que cabia inovar. Uma simples catequese doutrinal não poderia atingir seu objetivo: importava expor a doutrina repensando-a por dentro. Se Ruysbroeck não a descobriu por si mesmo, como o menino Pascal os teoremas de Euclides, pelo menos se encontrou em condições ideais para elaborar uma construção verdadeiramente nova: a difusão das heresias, o esquecimento das noções elementares até no clero, colocavam-no na posição dos doutores da era patrística a quem seus panegiristas o compararam.

1)
Cf. Henrique Suso, Horologium Sapientiae, 1. II, c. I: De diversitate ammiranda doctrinarum atque discipulorum.
2)
Cf. H. Delacroix, Essai sur le mysticisme spéculatif en Allemagne au xive siècle, Paris, 1900, pp. 52 sq. e Wautier d'Aygalliers, Ruysbroeck l'Admirable, Paris, 1923, pp. 129-154.
3)
Cf. Compilatio de novo spiritu, publicada por W. Preger em apêndice a sua Geschichte der deutschen Mystik, t. I, pp. 461 sq.
4)
L'art religieux de la fin du moyen âge, 3e éd., Paris, 1925, p. 146.
5)
Cf. Beitraege zur Geschichte der relig. Bewegung in den Niederlanden in der zweiten Haelfte des 14. Jhts, Abh. d. barry. Akad. d. Wiss., Hist. Kl., XXI, I., Abt., Munchen, 1895, pp. 22-24.
6)
Melline d'Asbeck, La mystique de Ruysbroeck l'Admirable, Paris, 1930, pp. 32-33.
7)
Le traictié Maistre Jehan Gerson contre le Roumant de la rose, texto publicado por E. Langlois dans Romania, 1918, p. 32.
8)
Cf. Wautier d'Aygalliers, o. c, p. 145.
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