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Gerhard Wehr (CHJB) – Boehme, Theosophia (3)

CHJB:68-70

Em sua obra “Da eleição da graça” (De electione gratiae), Böhme tentou ele mesmo expor sua doutrina dos três princípios confrontando-a com a concepção canônica da Igreja concernente à Santíssima Trindade. Após descrever a “vontade primeira, sem começo, única, que não é nem má nem boa” e que “engendra o único e eterno bem”, Böhme afirma: “(1) Assim, a vontade sem fundo (ungründlich) chama-se ‘Pai eterno’; “(2) e a vontade encontrada, captada, engendrada do Ungrund chama-se seu Filho engendrado ou Filho inato, pois é o Ens do Ungrund, aquilo em que o Ungrund se capta em Grund. “(3) E a emanação da vontade sem fundo, através do Filho ou Ens captado, chama-se ‘Espírito’, pois guia o Ens captado para fora de si para um tecido ou uma vida da vontade, como vida do Pai e do Filho; “(4) e o emanado é a alegria, como encontrado do nada eterno, onde o Pai, o Filho e o Espírito se veem e se encontram no interior, e isso chama-se Sabedoria de Deus (Sophia) ou contemplação.” O que surpreende neste resumo de sua doutrina é que Böhme acredita perceber ali “o ser (Wesen) tríplice em seu engendramento”. Ora, por outro lado, o texto associa expressamente à Santíssima Trindade um quarto ser, a celestial Sophia. Pode-se, portanto, perguntar se, na realidade, Böhme não tem em vista uma “quaternidade” em vez desta trindade da qual, no entanto, ele se reclama. Poder-se-ia fazer-lhe aqui, como em muitos outros lugares, a censura de uma certa obscuridade ou, pelo menos, de uma falta de precisão. Seus adversários, naturalmente, não se privaram disso; e Gregor Richter certamente não foi o último a imputar-lhe esta “quaternidade” de um caráter totalmente herético. No entanto, Böhme, nesta mesma passagem, qualifica a celestial Sophia de “espelho da sabedoria de Deus” ou ainda de “força exalada por Deus”. Não se trata, parece, de tocar no mistério da Santíssima Trindade. Por outro lado, em sua “Apologia contra Gregor Richter”, o teósofo — que tem consciência da gravidade da censura que lhe é feitachega a formular uma verdadeira profissão de fé: “Reconheço um Deus único e eterno que é o ser eterno, sem começo, único e bom, que habita em si mesmo fora de toda natureza e criatura e não necessita de nenhum lugar nem espaço, e que escapa a toda medida e a toda definição da natureza e da criatura. E reconheço que este Deus é um em três pessoas, possuindo a mesma onipotência e força: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. E reconheço que este ser um em três preenche ao mesmo tempo todas as coisas, e que ele foi o fundo e o começo de todas as coisas, e que ele ainda o é, e que ele sempre o será.” Para não ser novamente mal compreendido, Böhme abstém-se aqui, diante dos teólogos ortodoxos, de fazer menção da Sophia celestial. No entanto, na sequência deste texto, ele evoca o que, do ponto de vista do conteúdo, determina a natureza desta Sophia, e para o que, como “filósofo”, ele dirige particularmente a sua atenção: “Além disso, creio e confesso que a força eterna fluiu e tornou-se visível sob a forma de exalação ou de linguagem divina. Nesta palavra fluída encontra-se o céu interior e o mundo visível, com todas as criaturas; pois Deus fez todas as coisas por seu verbo IM.” E, a fim de apoiar-se na Escritura, Böhme cita o prólogo do Evangelho segundo São João: “No começo original, havia o verbo, e o verbo estava com Deus… todas as coisas foram feitas pelo verbo, e nada do que foi feito foi feito sem ele”. É a isso, ao verbo (logos) como estrutura de toda existência, que Böhme pensa quando fala da celestial Sophia. Por que, então, ele faz intervir esta figura, Sophia, quando dispõe da noção grega do logos que o Novo Testamento utiliza? Esta questão, que apenas mencionaremos de passagem, toca em um capítulo importante da história das religiões e da civilização, capítulo ao qual Jakob Böhme contribuiu de maneira notável, particularmente do ponto de vista antropológico. Trata-se aqui do arquétipo universal do masculino e do feminino formando um todo, na imagem que os povos fizeram da divindade. Enquanto, para toda uma série de religiões antigas, era perfeitamente normal que deuses e deusas agissem juntos, e que seres espirituais fossem reunidos em sizígias, ou mesmo a priori definidos como andrógino, o judaísmo e o cristianismo, em sua respectiva tradição ortodoxa — não, contudo, em sua tradição mística ou esotérica — souberam manter à distância, por princípio, o elemento feminino de sua representação de Deus. A introdução por Böhme de tal elemento, sua Sophia, constitui, portanto, uma inovação quase revolucionária, se se abstrair de certas concepções cabalísticas da época e do Mysterium coniunctionis dos alquimistas. Certamente, o sapateiro de Görlitz devia estar por dentro dessas ideias e símbolos. É igualmente certo, contudo, que sua visão não dependia da ciência dos iniciados de seu tempo. Pode-se, aliás, recordar também, neste contexto, as visões do místico suíço Nikolaus von der Flüe que havia vivido no século quinze, e que descrevia a divindade ora como um rei-pai, ora como uma rainha-mãe. Em todo caso, pode-se, sem risco de erro, classificar Böhme entre aqueles que abordaram, no nível da visão, o mistério da divindade andrógina. É ainda de um ponto de vista diferente que convém analisar, em Jakob Böhme, o enigma da trindade e da “quaternidade”. Sua pensamento visionário, contemplando um processo dinâmico, forçava, por assim dizer, o sapateiro de Görlitz a permanecer na ambiguidade. É por isso que é vão procurar, em sua obra, noções precisas no plano filosófico ou dogmático-teológico. É também por isso que alguns o julga obscuro e confuso, e outros perigosamente herético. Ele devia fatalmente apresentar-se a seus leitores sob esta penumbra. Seus temas exigiam uma grande mobilidade do pensamento, tal como se encontra em um Goethe explorando a natureza. A “confusão” frequentemente repreendida em Böhme existe no fundo, em sua obra, apenas na medida em que o leitor exige dele uma precisão da linguagem que é, sem dúvida, uma qualidade indispensável na esfera inorgânica, nas matemáticas e nos domínios técnicos, mas que é em definitivo insuficiente para expressar o orgânico, o psíquico, o espiritual. Convém ressaltar, neste contexto, este aviso de Böhme endereçado a seus amigos e a seus contraditores: “Não confundas esta pena com a mão que a segura. É o Altíssimo quem a talhou e lhe insuflou seu hálito; é por isso que sabemos, vemos e reconhecemos tudo isso, e não por ilusão, de segunda mão ou por incidências astrais, como nos acusam. Uma porta nos foi aberta para a Santíssima Trindade, para que vemos e sabemos o que o Senhor quer saber neste tempo nos homens, para que termine a querela, para que não se discuta mais sobre Deus. É por isso que Ele se revela a si mesmo. E isso não deve ser para nós um milagre; somos nós mesmos que devemos ser o milagre que Ele engendrou com o cumprimento do tempo, uma vez que nos reconhecemos pelo que somos.” Mais uma vez, Böhme sublinha que sua conhecimento de Deus, adquirida no meio da natureza, refere-se em definitivo à conhecimento do homem.

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