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Boehme (JBVAS) – Da vida além dos sentidos (8-14)

Jacob Boehme — Da vida além dos sentidos (JBVAS)

8

— Deus criou o homem na vida natural para que dominasse todas as criaturas na terra e fosse senhor sobre todas as vidas deste mundo. Devo então possuí-las como propriedade?

— Se dominas as criaturas apenas exteriormente, comportas-te com tua vontade e domínio de modo bestial: estás apenas num domínio imaginário, passageiro. E introduzes teu desejo numa essência bestial que te infecta e cativa, recebendo também um modo bestial.

Mas se abandonaste o modo imaginário, então te encontras no que está além das imagens e dominas todas as criaturas no fundo de onde foram criadas. E nada na terra pode te prejudicar, pois todas as coisas te são indiferentes, e não há nada que não te seja indiferente.

9

— Querido Mestre, ensina-me como posso o mais breve possível alcançar esse estado onde todas as coisas me sejam indiferentes.

— De bom grado. Lembra-te das palavras de Nosso Senhor Jesus Cristo quando Ele disse: “Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos fizerdes como crianças, de modo algum entrareis no reino dos céus” (Mateus 18:3).

Se, pois, queres que todas as coisas te tornem indiferente, deves abandonar todas elas e desviar delas teu desejo, não as cobiçando nem te preocupando em possuir como propriedade o que é algo. Pois tão logo agarres esse algo em teu desejo, acolhendo-o e tomando-o como propriedade, esse algo se torna contigo mesmo coisa e age contigo em tua vontade. És então responsável por protegê-lo e cuidar dele como de tua própria existência.

Mas se não deixas nada entrar em teu desejo, estás livre de todas as coisas e dominas subitamente tudo de uma vez. Pois nada tens em teu cuidado, e és para todas as coisas um nada, e todas elas também te são um nada. És como uma criança que não compreende o que é uma coisa. E mesmo que a compreendas, fá-lo sem que tua sensibilidade seja tocada, do mesmo modo como Deus domina e vê todas as coisas, sem que nenhuma tenha poder sobre Ele.

Perguntaste-me como podes alcançar esse estado. Ouve, pois, as palavras de Cristo: “Sem mim nada podeis fazer” (João 15:5). Não podes, por teu próprio querer, acceder a um repouso onde nenhuma criatura te toque, a menos que te entregues totalmente à vida de Nosso Senhor Jesus Cristo, cedendo-Lhe inteiramente teu querer e desejo, e não queiras nada sem Ele. Estarás então, no corpo, no mundo, entre as propriedades, e pela razão sob a Cruz de Cristo; mas pela vontade viverás no céu, na origem de onde todas as criaturas vêm e para onde retornam.

Poderás então contemplar todas as coisas exteriormente pela razão e interiormente pelo coração, e reinar sobre todas as coisas com e por Cristo, a quem foi dada toda autoridade no céu e na terra (Mateus 28:18).

10

— Ó Mestre, as criaturas que vivem em mim impedem-me de me abandonar por completo como gostaria!

— Se tua vontade sai das criaturas, elas ficam em ti abandonadas e permanecem no mundo: teu corpo está entre as criaturas, mas tu vives espiritualmente com Deus.

E se tua vontade abandona as criaturas, elas estão mortas nela e só vivem no corpo, no mundo. Se tua vontade não se introduz nelas, não podem tocar tua alma.

Pois como diz São Paulo: “Nossa pátria está nos céus” (Filipenses 3:20). E: “Sois templo do Espírito Santo que habita em vós” (1 Coríntios 6:19). Assim, o Espírito Santo habita na vontade do coração, e as criaturas habitam no corpo.

11

— Se o Espírito Santo habita na vontade do coração, como posso evitar que Ele se retire de mim?

— Ouve a palavra de Cristo: “Se permanecerdes em minha palavra, minha palavra permanecerá em vós”.

Se tua vontade permanece na palavra de Cristo, Sua palavra e Seu espírito permanecem em ti. Mas se tua vontade vai para as criaturas, então te separaste d'Ele.

Não podes te guardar senão permanecendo sempre numa humildade abandonada, entregando-te a uma contínua penitência, lamentando que as criaturas vivam em ti.

Fazendo isso, estarás numa morte diária das criaturas e numa ascensão cotidiana da vontade.

12

— Ó meu amado Mestre, ensina-me como alcançar essa penitência perpétua!

— Se abandonas o que te ama, e amas o que te odeia, poderás sempre ali estar.

13

— Que significa isso?

— Tuas criaturas na carne e no sangue, assim como todas que te amam, só te amam porque tua vontade cuida delas. É a elas que tua vontade deve abandonar e ter como inimigas.

E se odeias a Cruz de Cristo com todo desprezo do mundo, é ela que deves aprender a amar, tomando-a como exercício diário de tua penitência.

Assim terás sempre motivo para te odiares com as criaturas e buscares o repouso eterno onde tua vontade descanse, como disse Cristo: “Em mim tendes paz, mas no mundo tereis aflição”.

14

— Como posso, nesta tentação, me reencontrar?

— Se, uma vez a cada hora, te elevares para além de todas as criaturas, além de toda razão sensível, na mais pura misericórdia de Deus, no sofrimento de Cristo, e n'Ele te recolheres, então receberás força para dominar o pecado, a morte, o inferno, o diabo e o mundo.

Assim poderás resistir em toda tentação.

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