Loyola Exercicios Origens
Exercícios Espirituais — Origens do Método ORIGENS DO MÉTODO É importante, antes de estudar em pormenor os Exercícios Espirituais, examinar as influências que Santo Inácio pôde sofrer, e, na falta de filiações, difíceis de descobrir, mostrar que analogias se podem descobrir entre seu método e outras técnicas de oração.
Desde as idades mais remotas da Igreja, e especialmente na época em que o monaquismo começou a tomar impulso, os cristãos ansiosos de perfeição religiosa se inquietaram com relação aos meios próprios para disciplinar o espírito durante a oração ou meditação.
Organizar a disciplina do corpo é relativamente fácil: o asceta pode estabelecer o que será sua alimentação, sua bebida, o tempo de sono. Por certo a dificuldade começa quando se trata de respeitar as Regras, mas é então um problema de simples vontade. Não acontece o mesmo na disciplina do espírito: como impedir a imaginação de vagar como um vôo desordenado de mosquitos, como dizia Teófano, o Recluso, ou então, como macacos caprichosos, que pulam de um galho a outro, como dizia Ramakrishna? Como forçar a inteligência a dominar numa prisão constante o objeto de sua meditação, sem que ela jamais fique distraída por idéias fugazes? Como, sobretudo, progredir de maneira segura na oração e chegar à união divina, fruto esperado da oração?
Estes problemas, todas as religiões os têm conhecido e têm experimentado resolvê-los, codificando de maneira mais ou menos estrita, não somente os ritos exteriores, mas ainda a devoção íntima. Os que foram mais longe na procura de um domínio absoluto de si mesmo, são seguramente os hindus: processos técnicos permitem ao asceta, ao yogi, tomar posse de seu próprio organismo, se assim se pode dizer, controlar sua respiração e até o funcionamento de certos músculos cujo mecanismo, na experiência comum, escapa a qualquer esforço consciente. As técnicas da yoga não conduzem somente a façanhas de faquires, façanhas que os verdadeiros yogis abominam como tantas profanações com interesse comercial, mas também a uma disciplina rigorosa das forças mentais e, sobretudo, à viva concentração do espírito sobre tal ou qual objeto preciso da meditação.
No fim do seu esforço, o asceta adquire não só um total domínio de si, mas ainda entretém, com o mundo exterior, coisas e pessoas, relações caracterizadas pela não violência e o desapego absoluto. Entra, então, pelo mais profundo do seu ser, pelo eu despojado de qualquer marca de individuação, em comunhão com o Eu universal e tende a nele se absorver para uma liberação definitiva.
Concluir-se-á desta análise sumária que as técnicas da yoga na medida em que visam à unificação do ser pela luta metódica contra as forças de dispersão e de desagregação, poderiam valer como uma ascese preparatória a toda vida espiritual. É preciso porém observar que essas técnicas são inseparáveis de uma certa filosofia do mundo absolutamente heterogênea ao pensamento cristão e para quem, de saída, toda noção de criação ex nihilo, obra de um Deus pessoal, não tem nenhum sentido. Um yogi“ crera mais facilmente que o ser é uma emanação de uma força não-criada, no seio da qual lhe é possível e desejável se reabsorver, abolindo toda aproximação de relação. Ora, a teologia cristã não somente vê em toda parte aproximações de relação — entre a criatura e seu Criador, sobretudo — mas ainda situa, em Deus mesmo, uma vida misteriosa de relação entre pessoas.
Não é indiferente observar que aos olhos dos pensadores hindus os Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola representam o esforço mais extraordinário que tentou o Ocidente, no curso de toda sua história, para avançar na direção aonde levam as técnicas da yoga. A este curioso testemunho respondem, como em eco, alguns ensaios tentados por outros autores espirituais do Ocidente para elaborar uma yoga cristã. Entretanto, é permitido acreditar, a despeito do inegável interesse oferecido por estes empreendimentos, que o uso de técnicas, mesmo- refinadas por séculos de experiência ascética, não é o essencial e não deve encobrir, sobretudo, o verdadeiro problema, aquele que absorve o pensamento religioso ocidental — a saber, como a graça divina desce na alma daquele que reza, graça sem a qual ele nem mesmo pode começar a rezar, e sem a qual a ascese metódica mais segura não é senão uma coleção de receitas estéreis e de indústrias desprovidas de qualquer significação real.
Desde a época distante em que João Clímaco, no século VII, querendo encontrar Deus no fundo de seu “coração” e realizar uma espécie de teofania íntima, ligava o esforço de oração contínua a uma disciplina da respiração para melhor obter esse repouso tranqüilo em Deus que chamamos hesicasmo — hesichia -, a espiritualidade da Igreja cristã do Oriente esteve constantemente preocupada com as técnicas da “guarda do coração”. A dissipação do espírito que impede esta “guarda”, sinônimo de oração ininterrupta, deve ser vencida desde o começo.
O que há de muito particular e muito estranho para nós nessa ascese é a importância que dá aos diferentes pontos do corpo onde se localizam as atividades do espírito. Assim, a zona da fronte entre as sobrancelhas é o centro do pensamento abstrato. A boca e a laringe são o centro do pensamento quando este se exprime: é aí que as palavras adquirem seu sabor, e é aí que se articula a oração. Mas o centro principal é o centro cardíaco, “situado na parte superior do coração, um pouco acima do mamilo esquerdo”.
Naturalmente, antes de concentrar toda sua atenção sobre esse lugar do coração, o noviço tomará atitudes corporais aptas à meditação. Sentar-se-á sobre um assento baixo, a cabeça inclinada sobre o peito. Experimentará em seguida dominar sua respiração e fazer coincidir as fases com a re-citação da fórmula: “Senhor Jesus Cristo, tende piedade de mim!” Esta “oração do nome de Jesus”, associada a uma técnica respiratória e a uma atenção rigorosa dada ao “lugar do coração”, entroniza quem reza na união com Deus.
A atenção, deve-se dizer, não é um fim em si para o hesicasta. Nisto ele se distingue tanto do yogi hindu como do asceta muçulmano, dado à prática do dhikr, a saber a repetição indefinida do nome divino. O essencial para o hesicasta é atingir pela “lembrança” constante de Deus numa vida sacramentai mais rica e que pode desembocar na união mística. Assim lemos na pena do grande teólogo do hesicasmo, Gregório Palamas, este trecho significativo: “Sem outra preocupação que eles próprios, por uma atenção rigorosa e uma oração pura, chegamos até Deus por uma união mística e supra-intelectual com ele, eles (os monges) foram iniciados no que ultrapassa a inteligência.
Não é aqui a ocasião de mostrar em que a teologia do hesicasmo ortodoxo difere da do cristianismo ocidental, nem examinar em que medida o método psicofísico de oração está ligado a uma religião da Encarnação — para a qual o corpo, também santificado pelos sacramentos, tornou-se espiritual. Parece que nosso pensamento ocidental estaria mais marcado pela preocupação de opor o sobrenatural ao mundo criado.
Sejam, porém, quais forem os matizes doutrinais que se poderia analisar e definir, o esforço hesicasto parece inteiramente semelhante por suas tendências, e até, como se verá em algumas de suas técnicas de pormenor, ao esforço realizado no Ocidente pelos mestres da oração metódica. E não será de admirar constatar que o monge atônita a quem a Igreja ortodoxa deve o grande despertar hesicasta do século XIX, Nicodemos Hagiorita, encontrou estreitas afinidades entre a oração constante da tradição oriental e os Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola. Em 1800, ele lançou, em Veneza, uma tradução em grego — mas sem nome de autor — do livrinho inaciano. sob o título de Gymnasmata pneumatika.7
Santo Inácio, por sua vez, entrou em contato com um método de oração análogo, senão pelo modo de agir, pelo menos pela intenção, à dos monges do Oriente, a saber, o método da devoção moderna. Esta “devoção moderna” nasceu nos Países Baixos no fim do século XIV. Seu promotor foi Geraldo Groote, amigo e talvez discípulo de João Ruysbrock. Lá para 1380, Groote começara a reunir em pequenos grupos “irmãos da vida comum” que viviam no mundo sem se ligar por votos ou' por uma regra, mas que levavam juntos uma existência de pobreza, devotada à oração e à meditação. Ganhavam sua subsistência copiando livros. Paralelamente a estes grupos, criou-se sob a direção de Florenço Radewijns, discípulo de Groote, uma congregação de cônegos regulares, submetidos, em seu convento de Windesheim, à regra agostiniana. Os irmãos da vida comum e Windesheim, tais são os dois centros de fervor onde se desenvolveu durante todo o século XV a devoção moderna. Depois, no século XVI, ela entrou em declínio, não só por causa do protestantismo que se estabeleceu fortemente nos Países Baixos, mas também porque a espiritualidade inaciana tomou com justa razão o domínio da “devoção moderna”, não rompendo com ela, mas continuando-a.
O que caracterizava de início a devoção flamenga — que importa conhecer, já que é em parte a fonte da devoção inaciana, — era primeiro o seu senso da moderação, do equilíbrio, uma certa desconfiança da ascese exagerada ou do entusiasmo místico. Esta “discrição”, porém, não significava moleza. Ela se aliava, e é o segundo caráter desta escola, a uma grande preocupação da vida interior intensa. Os cônegos de Windesheim dedicavam menos tempo aos ofícios do que à meditação. Daí a procura de métodos de oração sistemáticos e seguros. Durante um século, desde a morte de Groote, em 1384, até a de Mombaer, em 1502, a escola flamenga aplicou-se sem cessar ao aperfeiçoamento destes métodos — não sem produzir, à margem deste esforço, admiráveis tratados. Basta citar, para a maior glória da “devoção moderna”, Tomás de Kempis, o muito provável autor da Imitação de Cristo.
É na obra de João Mombaer, que viveu no mesmo convento que Tomás de Kempis, o Monte Santa Inês, na Holanda, e morreu na França, em Livry, que se deve buscar, no fim de sua evolução, a imagem exata da espiritualidade flamenga sob os aspectos mais claros da devoção codificada.
Abrindo o tratado principal de João Mombaer, o Rosetum exercitiorum spiritualium et sacrarum mediíationum, numa destas belas edições in-fólio com encadernação de couro do século XVI, fica-se admirado com a disposição tipográfica: são numerosas as chaves, tanto quanto os versinhos em fino itálico ou as séries de palavras-chave inpressas, pelo contrário, em caracteres grossos. Páginas inteiras estão cobertas de pequenos “pavés” dispostos como nos espaços livres que deixariam uma grade: cada um deles se relaciona a um pormenor a meditar sobre a Paixão, por exemplo, ou sobre qualquer outro tema. Grandes gravuras ilustradas se inserem no livro. Duas entre elas representam uma mão esquerda, de tamanho natural. É o chiropsalterium, a “mão salmódica”: cada articulação das falanges e cada porção da palma devem lembrar ao monge, que medita, um tema preciso. Por exemplo, o médio simboliza, de alto a baixo, os Evangelistas, os Apóstolos, os Santos Inocentes, os Profetas, os Patriarcas e os Anjos. Uma outra gravura representa uma cruz no cimo da qual se encontra um cantichordum, uma espécie de cravo sumário cujas cordas estão numeradas. São cinco, como as vogais, e sua significação simbólica exprime-se por dois versos:
A gaudens amat, E sperat, sed I miseretur O timet U que dolens odit et ista notes
Este longínquo e curiosíssimo ancestral do soneto das cinco vogais de Rimbaud deve ser utilizado da seguinte maneira: segundo a natureza da primeira vogai encontrada no salmo, que começa a dizer, o monge aplicará sua atenção na magnificência de Deus (A), ou então na esperança (E) ou na compaixão dos sofrimentos de Cristo (I) etc. .. .Gaudium, spes, compassio, timor, dolor, tais são as cinco notas do Cantichordum — chamado “Gersonis”, porque o chanceler Gérson teria tido a idéia, mas a figura do cravo pertence a Mombaer, bem como a observação ao lado: quis tam hebes qui non capiat ista? “Quem séria tão estúpido para não compreender isto?”
Não é inútil insistir como o fizemos sobre a oração metódica, tal como a tinha concebido a escola da devoção moderna, primeiro porque Santo Inácio de Loyola entrou em contato com esta escola antes mesmo de conhecer mais de perto os irmãos da vida comum ou pelo menos a casa impregnada do espírito deles, que era o Colégio de Montaigu, depois porque poderemos avaliar melhor a originalidade do livrinho inaciano em relação aos manuais semelhantes que o precederam.
Foi em Montserrat e por intermédio dos monges beneditinos que Inácio de Loyola conheceu os flamengos. Na época em que o peregrino vem encontrar Dom Chanon, todo o convento segue, em sua vida espiritual, as determinações deixadas pelo grande abade Garcia Jimenez, primo do famoso cardeal Francisco Jimenez: Os dois são mais conhecidos sob o nome de sua terra de origem, Cisneros.
Ora, para renovar o fervor de Montserrat, Garcia do Cisneros apoiou-se em princípios e determinações da devoção moderna, que sem dúvida já animavam a espiritualidade montserratina, mas que ele impôs a seus monges com toda a energia de um reformador. Melhor ainda, redigiu ele próprio livros apropriados para guiar a oração e, naturalmente, foi aos flamengos que se dirigiu: seus dois trabalhos, Exercitatorio de la vida espiritual et Directorio de las horas canónicas, inspiram-se muito no Rosetum exercitiorum e podem passar por uma simples compilação dos principais tratados de oração metódica em uso nesta época.
Para facilitar e espalhar o uso da devoção moderna, Garcia Cisneros quis publicar seus manuscritos. Persuadiu um mestre impressor de Barcelona, o alemão Lusehner, a içar na santa montanha seu material. Das prensas montserratinas saiu em 1500 o primeiro título de uma longa série, a saber o Exercitatorio. Um exemplar deste livro venerável está conservado na biblioteca do Escolasticado de Chantilly. Pertenceu à família de São Francisco de Bórgia. Talvez Santo Inácio tenha tido em suas mãos um exatamente igual. Ele tem o formato de um grosso livro de missa, sua composição tipográfica é um pouco comprimida, embora clara, e está protegido por uma espessa encadernação de pergaminho amarelecido.
É mais provável que o penitente de Dom Chanon recebesse de presente para seus primeiros ensaios na devoção moderna o Compêndio de Exercícios Espirituais, um resumo do Exercitatório e do Diretório devido ao abade Pedro de Burgos e impresso em Barcelona em 1520. Este trabalho, embora permanecendo estreitamente fiel aos escritos de Cisneros, dirigia-se de maneira muito geral às pessoas desejosas de adiantar-se na devoção. As diretivas que só poderiam interessar aos monges tinham sido resumidas ou eliminadas. Esse volumezinho de 200 páginas, os religiosos de Montserrat distribuíam liberalmente aos peregrinos, juntamente com uni relato dedicado à história da Santa Montanha e aos milagres que a tinham ilustrado.
Deve-se insistir sobre a influência que tais documentos puderam exercer sobre o neófito Inácio de Loyola, ávido de santidade e muito feliz, sem dúvida alguma, em descobrir, logo desde sua primeira estada num lugar de retiro e de meditação, uma coleção metódica onde os progressos na vida espiritual eram objeto de receitas aò mesmo tempo cômodas e apresentadas como eficazes. Poder-se-á até acrescentar que o Exercitatório de Cisneros contém em diversos locais a fórmula exercícios espirituales (“Exercícios Espirituais”) e que o resumo de Pedro de Burgos inclui mesmo esta fórmula em seu título. Similitude superficial, sem dúvida, mas que não é menos reveladora.
Entretanto, os Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola não se reduzem a uma formulação de uma técnica de oração mais ou menos imitada de outrem. Aí encontramos igualmente uma substância que é uma série de meditações. Aqui ainda se procuraram “fontes*'. É admitido que Santo Inácio inspirou-se em Lindolfo o Cartuxo: a Vida de Cristo foi, estamos lembrados, seu livro de cabeceira na época de sua convalescença. Ele inspirou-se igualmente no pseudo-Boaventura, sobretudo nas Meditações da Vida de Cristo, sem dúvida o melhor dos trabalhos falsamente atribuídos a São Boaventura. Essas Meditações sobre a Vida de Cristo não somente Lindolfo o Cartuxo as utilizou — em particular em seu capítulo “Exortação para seguir Jesus Cristo” — mas ainda a escola flamenga e especialmente João Mombaer aí buscaram seu gosto muito acentuado pela meditação concreta dos mistérios.
Quando Inácio de Loyola convidar seu retirante a olhar com uma atenção emocionada as cenas da vida de Jesus, ele se inscreverá numa longa tradição, conhecida por ele em Montserrat e segundo a qual toda consideração da Humanidade de Cristo é uma introdução normal à contemplação mais elevada de sua Divindade.
