Pai e Filho, Alma do Mundo (COP)
//Henri Crouzel – Orígenes e Plotino (COP)//
Capítulo III: Alma do Mundo
Uma alusão à Alma do Mundo platônica aparece no Tratado dos Princípios: “Assim como nosso corpo formado por muitos membros é uno e mantido por uma única alma, do mesmo modo, em minha opinião, deve-se conceber o universo como um animal imenso e enorme, governado pela Providência de Deus como por uma única alma”. Potência e Razão, isto é, Logos, são denominações do Filho, mas as citações que ilustram essa afirmação designam o Pai - o que não surpreende, pois segundo Orígenes a criação do mundo é obra de toda a Trindade, como mostra o capítulo do Tratado dos Princípios sobre o mundo. Da mesma forma, a Providência, que Plotino atribui principalmente à Alma do Mundo, cabe em Orígenes às três pessoas.
Um trecho de homilia, isolado é verdade na obra de Orígenes, é bastante notável: “O Cristo de quem todo o gênero humano, ou melhor talvez a totalidade de toda a criação, é o corpo e de quem cada um de nós é membro em parte…”. Este texto é interessante porque Orígenes não se contenta em ver no Corpo de Cristo todo o gênero humano chamado a constituir a Igreja, mas também todos os seres inferiores ao homem, criados, ele pensa, para a utilidade do homem, pelos quais normalmente não se interessa. Se todos formam o Corpo de Cristo, é porque Cristo é sua alma. E a palavra Cristo não designa apenas o Verbo, mas também a alma humana que ele assumiu.
Encontram-se múltiplas alusões à ordem do mundo governada pelo Pai através de seu Filho: este último é de fato, como acabamos de dizer, essa Potência de Deus pela qual Deus governa o visível e o invisível e exerce sua Providência. A variedade do mundo decorre dos diversos movimentos do livre arbítrio das criaturas racionais, ou seja, da maior ou menor profundidade do pecado primitivo, mas Deus harmoniza essa variedade, sempre no respeito às liberdades, pois é ele quem governa todo o corpo do universo. A ação da Providência no mundo é mais clara quando se trata dos astros ou dos animais do que dos homens. A razão provavelmente está na ação do livre arbítrio que Deus respeita e em certo sentido assume, mas que desconcerta quem quer raciocinar sobre o desenrolar do mundo. O Filho de Deus está inteiramente presente em seu corpo humano e ao mesmo tempo inteiramente presente em toda parte.
A alma de Deus de que fala a Escritura é seu Filho: “Assim como a alma, inserida por todo o corpo, faz tudo se mover, opera e realiza todas as coisas, do mesmo modo o Filho Unigênito de Deus, sua Palavra e sua Sabedoria, atinge e chega a toda a potência de Deus, pois nela está inserido”. O mundo é “tudo o que está seja acima dos céus, seja nos céus, seja na terra, seja todos os lugares que existem e o que se diz habitar os céus: chama-se portanto mundo o universo”. Os céus designam aqui o céu astral: o que está acima dos céus é a morada dos bem-aventurados que contemplam os “mistérios”, como em Plotino o “lugar”, se assim se pode falar, da Inteligência e da Alma, acima do céu astral.
João Batista dizia de Jesus à multidão: “No meio de vós está alguém que não conheceis”. Isso significa que “embora invisível segundo sua divindade, ele está presente a todo homem e coextensivo ao mundo inteiro” e que “ele penetra a criação, de modo que sempre os seres em devir se tornam por ele”. Mas isso pode se dizer também do Pai que está no Filho e age através dele.
Um texto do Contra Celso aprofunda esse papel de Deus, criador e alma do mundo, com uma intenção polêmica contra os gnósticos: “Quanto mais eficaz e superior a todas essas fantasias (da mitologia) é a persuasão, pelo que é visível, da boa ordem do mundo e a adoração do único artífice de um mundo que é um, em harmonia com a realidade total; que não pode consequentemente ter sido obra de vários demiurgos, nem ser mantido por várias almas movendo o conjunto do céu. Uma única de fato basta, levando todo o firmamento do levante ao poente, contendo em si mesma tudo o que é necessário ao mundo mas não tem seu fim em si. Todas as coisas são partes do mundo, mas Deus não é parte do todo; pois Deus não deve ser imperfeito como a parte é imperfeita. Mas sem dúvida um raciocínio mais profundo mostraria que, em rigor de termos, Deus não é mais um todo do que é uma parte, pois o todo é feito de partes. E a razão não permite admitir que o Deus supremo seja feito de partes das quais cada uma não pode fazer o que podem as outras”. Pois o papel da alma é vivificar e mover o corpo que sem ela não poderia fazê-lo. Já vimos em Plotino a insistência sobre Deus que não é nem o todo nem parte.
Numa diatribe contra os idólatras lê-se ainda: “Por mais que vejam na criação tanta ordem, tanta harmonia e disciplina, tanta beleza no mundo, recusam-se a reconhecer o Criador a partir das criaturas; não querem ver que uma organização tão perfeita é obra de uma Providência que a dirige, são cegos e só veem o mundo com olhos de animais sem razão, com olhos de feras. Não percebem a presença de uma razão num mundo manifestamente regido pela Razão”. A Razão é o Logos divino, Palavra e Razão. Há uma analogia entre a perfeição da Escritura, obra do Verbo, e a do mundo, obra do mesmo Verbo, quer se trate dos seres mais nobres, sol, lua e astros, ou dos mais ínfimos, animais sem razão e vegetais. Em sua escola de Cesareia, Orígenes ensinava as ciências da natureza mostrando no mundo a ação da Providência.
