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Anjos e demônios (COP)

//Henri Crouzel – Orígenes e Plotino (COP)//

Capítulo III: Alma do Mundo

PLOTINO

Os seres que possuem uma alma são, para Plotino, além da Alma do Mundo: os demônios, os astros (superiores aos homens), os homens, os animais e os vegetais. As almas têm, conforme o caso, funções racionais, sensitivas ou vegetativas. A palavra daimon na tradição grega pagã é equivalente a deus (theos) ou semideus: aplica-se assim no Médio Platonismo aos deuses da mitologia, governando os diferentes domínios da natureza - como ocorre no Discurso Verdadeiro de Celso -, distinguidos assim do Deus supremo ao qual estão sujeitos. Podem ser benevolentes ou malevolentes para com os homens. Em sua resposta a Celso, Orígenes dá à palavra o sentido judaico e cristão, que é pejorativo: ele vê nos “demônios” ou deuses da mitologia seres reais que tentam roubar a Deus a adoração dos homens.

Plotinofala repetidamente sobre os demônios, distinguindo-os dos deuses. Há entre eles seres vivos de fogo. Existem demônios bons. Os gnósticos veem nas doenças a ação de demônios. O mundo contém numerosos deuses e povos de demônios. Eles contribuem para a diversidade do mundo e são chamados de segunda natureza, após os deuses e antes dos homens.

O décimo quinto tratado (III, 4) intitula-se “Sobre o demônio que nos coube em sorte”. Porém o demônio em questão é difícil de distinguir das potências da alma, e essa passagem pouco informa sobre os seres que Plotino entende por essa palavra. No quinquagésimo tratado (III, 5) “Sobre o amor”, ele questiona desde o início se Eros é deus ou demônio ou apenas uma paixão da alma. Platão o apresentou como um demônio no Banquete. A Afrodite celeste pode ser chamada “um deus, não um demônio, sendo sem mistura e permanecendo pura em si mesma”: trata-se da Alma do Mundo.

O Eros que conduz a alma para a natureza do Bem, se for a “alma do alto” (a parte superior da alma), seria um deus; se for a alma “mista” (com o corpo), um demônio. Mas é preciso explicar a natureza desse demônio e, mais amplamente, dos demônios. O que é dito de Eros deve poder ser dito dos outros demônios, a menos que tenham em comum apenas o nome. Os deuses são impassíveis, os demônios afetados por paixões. Uns e outros são eternos. São intermediários entre os deuses e o gênero humano. Mas surgem questões: Por que não permaneceram impassíveis? Há demônios no inteligível ou apenas no sensível? Os deuses estão limitados ao inteligível? O mundo é um deus, assim como os astros? Parece preferível a Plotino afirmar que não há demônio no inteligível, exceto talvez o “demônio em si” (autodaimon), em outras palavras a ideia de demônio, que é um deus. Os demônios não são puros da matéria - não se trata da matéria que forma corpos como os nossos, pois eles têm corpos de ar ou de fogo (os dois elementos mais leves), ou do que Plotino chama de matéria inteligível.

Como Eros, os demônios são indigentes, insatisfeitos, cujo desejo se volta para bens parciais como se fossem o Bem. Têm a capacidade de falar. Não são impassíveis, possuem em si algo de irracional: pode-se atribuir-lhes lembranças e sensações, e podem ser encantados por procedimentos mágicos. Os demônios fazem os homens expiarem suas faltas.

ORÍGENES

O Contra Celso contém uma discussão de Orígenes sobre um ataque de Celso contra os cristãos por se recusarem a honrar os “demônios” no sentido pagão. Orígenes toma essa palavra apenas no sentido cristão para designar os demônios maus, entre os quais, segundo ele, estão os deuses da mitologia clássica, que ele parece considerar como seres reais, mas demônios, que roubam de Deus seu lugar ao fazerem-se adorar pelos homens. Na verdade, como os demônios, segundo o pagão Celso, estão encarregados do governo dos diferentes reinos da natureza, correspondem no pensamento de Orígenes tanto aos anjos quanto aos demônios, conforme sejam bons ou maus.

A origem dos anjos e demônios é para Orígenes a mesma que a dos homens: todas as criaturas racionais foram criadas juntas em perfeita igualdade - uma reação contra as diferenças de natureza professadas pelos valentinianos. Foram criadas na preexistência, mas não desde toda a eternidade, pois tiveram início, o que resultou em sua mutabilidade e caráter acidental no sentido aristotélico. A criação coeterna a Deus não as concerne, mas sim o mundo inteligível das ideias e razões. Serão diversificadas pela queda primordial, da qual só escapam, além da alma unida ao Verbo, algumas dessas criaturas. A maioria cai, por um esfriamento de seu fervor que transforma essas “inteligências” em “almas” (psyché-psychos, alma-frio), ou por “saciedade” (satietas-koros), algo semelhante à “acédia” dos monges gregos, o desgosto de tudo e especialmente do espiritual.

É após essa queda primordial que ocorre a divisão das criaturas racionais em anjos, homens e demônios, e dentro dessas três categorias há toda uma diversidade de níveis conforme os graus da queda. Orígenes chega a afirmar que um juízo divino, análogo ao que será o juízo final, precedeu a vinda dos homens a este mundo. Quanto aos anjos, se, como parece resultar de algumas passagens do Peri Archon, um pequeno número não pecou, a maioria o fez, mas de forma mais branda. Suas funções no mundo - anjos da guarda dos homens, dos diferentes domínios da natureza, das nações, das Igrejas etc. - são, ao que parece, o castigo misericordioso da falta inicial. Passamos rapidamente sobre esses diversos pontos que Orígenes frequentemente desenvolve, como sobre os anjos das nações. O juízo final no fim dos tempos será ao mesmo tempo o do homem e o de seu anjo da guarda.

Mas os demônios, no sentido cristão do termo, também se fazem como guardiões às avessas dos homens, apegando-se aos indivíduos para fazê-los pecar: o mesmo ocorre com as nações. Parece haver, para Orígenes, funções simétricas e invertidas em todos os aspectos para anjos e demônios. As diferentes ordens de anjos, expressas por vários textos paulinos, designam com os mesmos nomes os bons e os maus. Mas esses anjos não têm nenhum caráter divino, ao contrário dos “demônios” plotinianos: são criaturas como nós. Porém receberam de Deus autoridade sobre todos os domínios da natureza, como os “demônios” de Celso: do mesmo modo, os demônios do cristianismo se atribuíram uma autoridade semelhante. Quanto a estes últimos, a falta pré-cósmica foi uma verdadeira renegação de seus laços com Deus. Dado o sentido principalmente sobrenatural que Orígenes frequentemente confere à noção de ser e à de ser racional (logikon), em relação ao Pai que se declarou a Moisés como “Aquele que é” e ao Filho que é o Logos (origem de toda “razão” num sentido mais sobrenatural que natural), Satanás e os demônios, tendo renegado sua relação com eles, tornaram-se “não seres” e “irracionais”, como bestas espirituais. Isso é confirmado pelo estreito vínculo que Orígenes estabelece entre a imagem do Diabo e as imagens de feras que recobrem no pecador sua participação na imagem de Deus. Ou ainda: “Parece haver afinidade entre cada espécie de demônios e cada espécie de animais”, escreve o Contra Celso a propósito das predições feitas a partir da observação dos animais.

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