Gnose Pré-valentiniana
José A. de Aldama — Maria na Patrística dos séculos I e II Contribuição e tradição Antonio Carneiro
2.2.A gnose pré-valentiniana
Os recentes estudos de Peterson1). Nem um nem outro, segundo a exposição que de seus respectivos sistemas faz São Irineu, encontramos nada relativo à Marialogia. Nem é de estranhar. A encarnação do elemento soteriológico divino na própria pessoa de Menandro ou de Simão deixava pouca margem para falar de Jesus em seus sistemas. Não são cristãos. Mas é curioso observar que Simão se transfigura para aparecer entre os homens como homem, sem sê-lo realmente, e para que se acreditasse sofrer a paixão sem padecê-la na realidade. Teremos aí a sugestão para o docetismo posterior de Satornil ?2) 3)
Os sitemas gnósticos mais antigos, que conhecemos, pertencem à gnose vulgar e coincidem com as referências de São Irineu nos capítulos 29 e 30. Nos fins do século passado, K. Schmidt descobriu um papiro de Berlim, entre outros escritos gnósticos, um “Apócrifo de João” , que resultou ser a fonte principal desses capítulos. Schmidt não chegou a publicar o texto, o fez em 1955 W.Till4). Mas, entretanto, os descobrimentos de Nag Hammadi, donde apareceram tres exemplares do “Apócrifo”5), puseram em destaque até que ponto este se lia e se utilizava nos meios gnósticos do Egito. Tudo isso recomenda a boa informação de que dispunha Irineu.
Suas referências no capítulo 30 parecem aludir aos ofitas. Para eles, Jesus nasceu virginalmente por especial ação divina6). Por isso é o mais sábio no Jordão o Cristo superior, som o que resultou constituído Jesus cristo. Perseguido por sua predicação e seus milagres, no momento da paixão, o Cristo superior abandona a Jesus, que é crucificado. Uma virtude enviada pelo Cristo superior o ressuscita em um corpo “psíquico e pneumático” , não em um corpo terreno (“mundiale”), que, como incapaz de salvação, fica abandonado no mundo. Neste sistema se mantem expressamente a maternidade virginal de Maria. Fruto dela parece ser o corpo terreno de Jesus7). Isso nos obriga a não dar às palavras do Pseudo Tertuliano8), (falando também dos ofitas), “Christum non in substantia carnis fuisse” , o sentido doceta que pudesse crer-se insinuado nelas9). O ponto, de todos os modos, é obscuro, nem tem por que pretender que nos resulte claro com as fontes que possuímos; nem sequer que o fora em absoluto para os mesmos ofitas.
Como quer que seja, nestes sistemas se mantem a crença na maternidade virginal de Maria, como a manterão também os gnósticos posteriores10).
Entre os gnósticos mais antigos nomeia São Irineu à Satornil, cujo ensino se situa em Antioquia pelos anos 105-110. Sua fonte principal está, sem dúvida, nas especulações cosmogônicas e antropológicas do judaísmo tardio, por intermédio do simonismo samaritano, segundo as referências de São Irineu. Por outro lado, sua Cristologia se inspira em outras fontes, se é que não prolonga sugestões simonianas. O Salvador não nasce de mulher, é incorpóreo e não tem figura sensível; somente na aparência se apresenta como homem; realmente não o é. São Irineu escreve:
“Salvatorem autem innatum demonstravit et incorpoalem et sine figura, putative autem visum hominem”11).
Naturalmente, esta Cristologia doceta leva consigo a negação da verdadeira maternidade de Maria. também ela é mãe só na aparência. Será considerada mãe (talvez virginal) de Jesus; mas realmente não o é. Novamente se quebrou assim o equilíbrio do “kerygma”; mas agora foi sacrificando o outro extremo da verdade revelada.
Uma concepção semelhante São Irineu atribui à Basilides. Basilides representa o primeiro ensaio certo de gnose sábia que conhecemos. São Epifânio, talvez fundamentado na frase ambígua de São Irineu, o faz condiscípulo de Satornil em Antioquia12). O que sim é certo é que sua presença em Alexandria por volta de 120 o colocou em contacto com o platonismo da época, interpretação do platonismo clássico cujo iniciador foi Antíoco de Ascalon. Seu influxo, unido ao da gnose vulgar alexandrina e ao da gnose pré-cristã, ia somar-se aos próprios conhecimentos cristãos para dar lugar ao curioso sistema , em que não poucos traços diferem do valentianismo radicalmente13).
Segundo a referência de São Irineu14), Basilides falava de uma missão feita pelo Pai, que envia o “Nous” primogênito ao mundo para libertar os que creem nele. Este aparece no mundo na pessoa de Jesus. Mas Jesus não é uma realidade sensível; é uma pura aparência. A frase de São Irineu “(apparuisse eum in terra hominem et virtude fecisse)” ficou bem esclarecida no texto de Epifânio, que acrescenta um dokesei15). E, desde logo, o contexto confirma a exatidão dessa interpretação. A aparência se matem em toda a vida de Jesus, que é incorpóreo e impassível. No momento da paixão toma a forma de Simão Cirineu, e é nesta realidade o crucificado, não Jesus. Isto nem todos chegam a saber; mas compreendê-lo assim, é condição essencial de obter a liberdade e salvar-se. Estamos outra vez diante uma concepção doceta que supõe uma maternidade de Maria puramente aparente. Irão acreditar ser mãe de Jesus, sem sê-la na realidade. Com a descrição de São Irineu coincidem com as de São Epifânio (Ib.), o Pseudo Tertuliano16), Filastrio17) e Teodoreto18). Este docetismo de Basilides o supõe também Tertuliano19).
No entanto, como é sabido, sobre Basilides temos outra exposição completamente diferente em “Elenchos” de Hipólito. Segundo esta interpretação do sistema basilidiano, o Salvador possui uma estrutura composta de cinco elementos diferentes: um corporal, recebido da “deformidade” (da matéria terrena e sensível); outro animal (psíquico), proveniente da “hebdomada” (região aérea); o terceiro, proporcionado pelo grande arconte (demiurgo) que rege a “ogdoada” (região etérea); o quarto espiritual (pneumático), vindo do “espírito limítrofe” (Espírito Santo), situado no firmamento entre o mundo e a região supra-mundana; finalmente o que pertence à esta região supra-mundana, donde habitam Deus e seu Filho20). De todos estes elementos nos interessa aqui o primeiro, que se refere ao corpo de Jesus. esse corpo é terreno e sensível, como o prova o fato de que, ao ir-se dissolvendo a unidade de Jesus no momento de realizar sua obra soteriológica, esse elemento permanece na terra, reduzido à ela. Esse corpo o recebeu Jesus de Maria, por isso se lhe chama “o filho de Maria”. O docetismo está excluído. Mas foi virginal essa maternidade de Maria ? Não existe no sistema uma explicação particular sobre este ponto. A resposta afirmativa parece incluir-se na exegese que Basilides faz de Lc 1,35, na que, entretanto, a descida do Espírito Santo até o seio de Maria representa melhor a “filiação” mesma pela qual seu filho é verdadeiro Filho de Deus21).
Tais são as duas explicações divergentes do sistema de Basilides. Ambas tem resultado suspeitas para os pesquisadores modernos, ainda que a segunda, confirmada por Clemente de Alexandria, admite-se hoje correntemente com preferência à primeira22). Hipólito tem sem dúvida à vista um escrito que poderia ser do próprio Basilides. Por outro lado, São Irineu, passando do singular ao plural, fala, evidentemente, dos basilidianos, dos que inclusive refere algumas palavras concretas. Corresponderá a exposição de São Irineu à doutrina de Basilides, todavia em Antioquia, representada por alguns discípulos da primeira hora antes de haver estruturado completamente seu sistema pessoal nas lições posteriores e mais maduras de Alexandria ? Isso explicaria a coincidência de ambas exposições em alguns pontos23).
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