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Merejkovsky – Jesus Desconhecido (I.3)
Dmitri Merejkovsky – Jesus Desconhecido. Tr Gustavo Barroso. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1935
PRIMEIRA PARTE O EVANGELHO DESCONHECIDO
E o mundo não o conheceu. Καὶ ὁ κόσμος αὐτὸν οὐκ ἔγνω. (Jo. I, 10)
**III**
**MARCOS, MATEUS E LUCAS**
**I**
A lente do telescópio apontada para o céu estrelado pela abertura móvel duma cúpula de observatório pode ser tão santa quanto este salmo de Davi:
“Os céus proclamam a glória de Deus E o firmamento manifesta a obra de suas mãos (Sl., 18, 1.)”,
Os homens de pouca ciência não o vêem, mas Newton e Copérnico o viram. A crítica é esse telescópio apontado para o céu estrelado do Evangelho, e a tensão contínua, milenária, do olhar fito no Evangelho é o polido da lente do telescópio.
Talvez as crianças e os Santos saibam ler o Evangelho melhor do que todos os teólogos e críticos, porém não podem notar o que esses notam (1).
**II**
A teoria denominada das “duas fontes”, Zweiquellentheorie, constitui no telescópio da crítica evangélica uma lente de perfeito polimento e de força até então desconhecida. Ela é tão difícil de explicar em poucas palavras quanto a análise espectral, mas é indubitável que, às vezes, os homens passam piedosamente a vida inteira na observação astronômica ou na crítica evangélica, estudando o céu exterior, cósmico, ou o céu interior, evangélico, mais insondável ainda do que o outro. A atenção continuada de toda uma existência humana não basta — é necessária a atenção de gerações inteiras — para descobrir novos astros, novos mundos. São esses que a “teoria das duas fontes” nos revela.
**III**
Marcos, o mais antigo dos Sinóticos, a mais próxima testemunha do Homem Jesus, pelo menos entre as testemunhas que atualmente conhecemos, é uma das “duas fontes” de que temos ciência. A despeito da tradição da Igreja, a ele e não a Mateus reverte o primeiro lugar na ordem histórica dos Evangelistas. Marcos, ao contrário do que outrora se pensava, nada tirou dos dois outros Sinóticos, foram eles que tiraram dele. Essa descoberta, relativamente fácil, custou, entretanto, mais dum século de busca científica, vidas humanas inteiras, às vezes com perda da fé — perdição da alma. Ora, a outra parte da teoria é ainda mais árdua.
Marcos não passa duma das duas fontes de Lucas e Mateus. Seguindo ambos a Marcos, com grande exatidão na transmissão das palavras do Senhor, com menor na descrição dos episódios, Mateus e Lucas ignoram-se: é fácil verificar isso nas suas “contradições” demasiado manifestas, inexplicáveis se se tivessem conhecido, principalmente no relato da Natividade e das aparições do Senhor após a ressurreição. Então, como explicar a concordância impressionante de Lucas e Mateus, e a impressionante semelhança, às vezes literal, gramatical, na transmissão das palavras mais importantes e mais decisivas do Senhor, que se não encontram em Marcos? Unicamente pelo fato de haverem ambos se abeberado numa fonte invisível para nós, mais antiga talvez que Marcos, pré-sinótica, certamente escrita — a mesma fonte, provavelmente, mencionada por Papias, ou o presbítero João, que está atrás dele, quando fala das “palavras do Senhor”, logia kyriaca, que o publicano Mateus-Levi teria “colhido” ou anotado em “hebraico”, isto é, em aramaico, e que ele parece confundir com o nosso Mateus grego (2).
Imaginar que essa fonte invisível nos é bem conhecida segundo os dois Sinóticos e que, por conseguinte, essa descoberta é sem importância seria grosseiro engano. É possível que as águas da fonte, no seu curso profundo, subterrâneo, tenham outra temperatura, outra cor, outro gosto do que no seu curso aparente — o qual talvez se represe em tanques artificiais — nos dois Sinóticos. Achar-se no lugar em que há uma janela ou olhar somente por essa janela não é absolutamente a mesma coisa. Essa fonte pré-sinótica designada por Q (Quelle) já está em parte reconstituída, só em parte, porque o problema não será inteiramente resolvido senão quando for igualmente resolvido o das relações entre os Sinóticos e o mais misterioso dos nossos Evangelistas, aquele que está apartado dos outros e parece até contradizê-los, constituindo “um dos maiores enigmas de todo o cristianismo” — João (3).
Mas, se nos telescópios da crítica as mais poderosas lentes ainda não penetram nessas profundezas do céu evangélico, desde já a teoria da dupla fonte nos permite aproximar da misteriosa Fonte Primitiva de nossos Evangelhos, espelho profundo, límpido e contudo obscuro em que se reflete a mais próxima e mais clara imagem de Jesus Desconhecido. Assim, às vezes, no ar muito transparente das noites muito limpidas, pode-se discernir mesmo a olho nu a parte obscura da lua incompleta, vendo-se completar-se o círculo perfeito.
Todavia, antes de lançar um olhar ao claro-escuro desse espelho e talvez mesmo além dele, além do Evangelho, é necessário contemplar atentamente os espelhos visíveis, embora terrivelmente enodoados pela poeira bi-milenária do hábito, dos Sinóticos.
**IV**
Quantos são os Evangelistas? Quatro? Não, três e um. É fácil explicar isso graficamente. Basta traçar em uma folha de papel um feixe de três riscos com lápis vermelho e, um pouco afastado, um risco a lápis azul: os três primeiros são os Sinóticos, os Concordantes, o isolado é o Não-Concordante e mesmo, segundo parece, o Contraditor dos outros — João.
Que é? Quem é? A essa pergunta só se pode responder ao mesmo tempo que à pergunta da relação de João com os Sinóticos, de um com três.
**V**
“Marcos, intérprete de Pedro, notou com exatidão, mas não em ordem, tudo quanto se lembrou dos ditos e feitos do Cristo, porque ele próprio não ouvira o Senhor; mas, somente mais tarde, como já disse, é que foi intérprete de Pedro, que ensinava segundo a necessidade, porém que não expunha na sua plenitude todas as palavras do Senhor. Por isso, Marcos não pecou, anotando de memória com o cuidado de nada omitir e de nada dizer de inexato (4)”. Isto foi dito a Papias pelo “Presbítero João”. Não sabemos com certeza quem ele seja; porém, muito provavelmente, como vamos ver, é o nosso “Evangelista João” — não o Apóstolo, filho de Zebedeu, “o discípulo amado de Jesus”, mas um outro — um duplo que se lhe soldou milagrosamente, seu gêmeo, a sombra projetada pelo corpo e já inseparável dele.
Não sabemos também se Papias compreendeu bem e fielmente relatou as palavras do Presbítero João, mas notamos, para nosso governo, que o historiador eclesiástico Eusébio nos deixou sobre Papias este aviso: “era homem de pouco espírito” (5), o que, evidentemente, não quer dizer que houvesse “perdido o espírito” — pois não poderia continuar como bispo, nem que fosse fraco de espírito — pois não chegaria a bispo, mas simplesmente que era um “trapalhão”. E, mesmo que Papias tivesse compreendido bem e fielmente relatado as palavras de João sobre a “falta de ordem” dos escritos de Marcos, não se lhe deve dar muito crédito. “Não pecou”, declara como para justificar Marcos, quando na realidade o acusa e sobre ele lança uma sombra, bem leve, aliás, porém sempre uma sombra. Entretanto, a opinião de Papias não nos deve surpreender.
Eis aí dois Evangelistas — dois escritores (se o nosso “João o Evangelista” e o “Presbítero” de Papias são uma só pessoa), João e Marcos; um diz do outro: “meu escrito é mais fiel, minha ordem é melhor” (fala de Jerusalém e da Judéia, em lugar de Cafarnaum e da Galiléia. Se nos colocarmos, não no elevado espírito da tradição, mas do ponto de vista humano (e é desse modo que se devem ler todos os monumentos antigos, mesmo os sagrados), isso não deixa de ser muito compreensível e muito natural (6).
Não sabemos ainda se é possível conciliar Marcos com João, mas já é incontestável que a única ordem clara dos acontecimentos, seguida por Mateus e Lucas, e, em grande parte, pelo próprio João só se encontra em Marcos: a única chave da vida de Jesus Desconhecido ou está ali ou em parte alguma (7).
**VI**
Marcos é o “intérprete” de Pedro. Tudo o que disse Pedro, que viu com seus olhos e ouviu com seus ouvidos o Senhor, Marcos recorda e anota fielmente, “com o cuidado de nada omitir e de nada dizer de inexato”. Podemos crer inteiramente nesse testemunho de Papias-Presbítero João (8). Mas, mesmo se não tivéssemos o testemunho de Papias e a tradição da Igreja, poderíamos concluir, segundo o Evangelho do próprio Marcos, que ele nos conservou as recordações duma testemunha ocular, dum dos Doze, e muito provavelmente as de Pedro (9).
**VII**
Há em Marcos uma palavra preferida, que qualquer leitor superficial nota, e essa palavra é: “logo”, euthus. Do primeiro ao último capítulo, volta sem conta, obstinada, monótona, a propósito e sem propósito, quase como um movimento maquinal, um tique que é difícil atribuir a Marcos ou a Pedro, ou a ambos, o que parece mais certo, tendo-o o discípulo apanhado do mestre. É talvez nesse “logo” resfolegante, pronunciado como numa corrida sem fôlego para Ele, para Ele só, para o Senhor, nesse impetuoso voo de Simão-Pedro atirado ao alvo pelo arco do Senhor, que o mestre e o discípulo melhor se compreenderam e para sempre se amaram.
Pedro ouve: “segue-me” e logo, deixando as redes, segue-o; avista-o caminhando sobre as águas e logo quer também caminhar sobre elas; sente que é “bom” estar sobre a montanha da Transfiguração e logo “levantem-se ali três tendas”; vê que a coisa degenera em tumulto e logo puxa da espada, cortando a orelha de Malco; compreende que se trata da crucificação e logo: “não conheço esse homem”; ouve dizer que o sepulcro está vazio e logo corre para lá, disputando a carreira com João e passando adiante; encontra o Senhor no caminho de Roma: “onde vais?” — “a Roma para ser de novo crucificado” — e logo volta, dessa vez para sempre, pois não irá mais a parte alguma; o “logo” tornar-se-á a eternidade; a pedra atirada tocou o alvo — parou e jamais se moverá: “Sobre essa pedra eu construirei a minha Igreja”.
O mais encantador, o mais próximo, o mais humano, o mais culposo e o mais santo dos Apóstolos — Pedro! Parece estar todo nesse “logo” precipitado, sem o qual não haveria Pedro nem cristianismo.
**VIII**
Em Marcos, Pedro tem sempre o primeiro lugar entre os discípulos. Mas de todos é o menos lisonjeado. Antes pelo contrário. Estas palavras: “tu és feliz, Simão, filho de Jonas” foram provavelmente omitidas, não por Marcos, mas pelo próprio Pedro. Entretanto se lê: “Afasta-te de mim, Satanás!” (8,33.) Quem teria podido lembrar-se, senão o próprio Pedro? E eis o que é ainda mais cruel, por ser mais doce: “Simão, dormes? Não pudeste velar uma hora?” (4,37.) Não é uma censura, é uma queixa simples e doce, mas tão dura de suportar que Mateus a atenuou e Lucas completamente a omitiu. Só Marcos a repetiu tal qual a ouvira, sem dúvida compreendendo que, assim, seria menos pesada para Pedro: compreendeu-a melhor do que os outros, porque o amava mais do que os outros.
**IX**
“Marcos não ouviu nem viu o Senhor”, é o que se depreende do testemunho de Papias. Será realmente assim?
Marcos, segundo uma tradição eclesiástica que parece exata, escreveu seu Evangelho no ano de 64, pouco tempo antes da morte de Pedro ou logo depois, o mais tardar nos anos de 70, porque no apocalipse de Marcos o fim do mundo coincide ainda com a destruição do Templo. Conforme a mesma tradição, é verossímil que o tenha escrito em Roma, como deixam crer as numerosas palavras latinas nele intercaladas, assim como a menção de Alexandre e Rufo, filho de Simão de Cirena, os quais então habitavam em Roma e eram bem conhecidos da comunidade romana (Rom., 16, 13). Porém é muito provável que Marcos tivesse escutado as Reminiscências de Pedro desde os anos de 40, em Jerusalém, onde se achava, como o sabemos pelos Atos dos Apóstolos (12, 12.), a “casa de João-Marcos” (nome heleno-judaico duplo). Foi nessa casa, segundo os mesmos Atos (1, 13; 2, 2.), que os discípulos se reuniam depois da ressurreição do Senhor e Fora lá — talvez na mesma “câmara-alta”, anagaion, onde, de conformidade com a antiga tradição da Igreja, se realizara a Ceia e o Pentecostes — que João-Marcos pôde ouvir as Reminiscências de Pedro (10).
Se em 44 Marcos tinha, como sabemos, uns trinta anos, devia ter nos anos de 30, nos dias em que Jesus vivia, mais ou menos quatorze, por conseguinte podia ter sido testemunha do que se passara nessa época em Jerusalém e na casa de sua mãe.
Há no seu relato da noite do Getsêmani uma “recordação” na aparência supérflua, que não é um ensinamento, mas uma simples descrição: “Havia um mancebo que o seguia (a Jesus), coberto somente com um pano (sindon, um pedaço quadrado de pano), e eles (os soldados) o agarraram. Mas ele, abandonando o manto, escapou nu às suas mãos” (14, 51-52.). Segundo uma lenda também muito antiga, esse mancebo desconhecido é simplesmente o próprio João-Marcos (11). Ele introduziu na sua narração esse pequeno episódio, inolvidável e caro a ele tão somente, como um pintor escreve a um canto do quadro: ipse fecit.
Nessa precipitação — “agir sem refletir” — com a qual um rapaz de quatorze anos — não dormindo e escutando o que se passa na casa — se lança pela noite, saindo diretamente do leito, o corpo nu envolto num pano e corre, às escondidas, atrás dos discípulos, de Jerusalém ao Getsêmani, para tudo ver e ouvir até o fim, — nessa precipitação julga-se já ouvir o futuro “logo” de Marcos-Pedro — a corrida sem fôlego de amor para Ele, para Ele só, para o Senhor.
**X**
São as lembranças de testemunha ocular que acordaram em Marcos uma nova e maravilhosa vivacidade quarenta anos mais tarde, em Roma, quando escutava Pedro. Que foi realmente assim confirma-o um velhíssimo testemunho que data do século II e que está no Canon Muratori: “Em outras coisas Marcos tomou parte e as foi anotando como se passavam, aliquid tamen interfuit et ita posuit” (12). Se Marcos nos transmitiu com uma vivacidade jamais ultrapassada o que Pedro viu e ouviu, foi talvez porque ele próprio viu e ouviu certas coisas (13).
Julgo Marcos sem rival na miniatura literária. Que quer isso dizer? É uma arte prodigiosa, igual à de Homero e Dante, senão maior, porque súbita, vinda não se sabe de onde nem como, porque Marcos “o intérprete”, que escreve mal o grego, não é mais instruído do que Simão o Pescador? Ou antes escreveria “sob o ditado do Espírito Santo”, realmente, que usou dele como do teclado dum órgão? Não, nem uma coisa nem outra. É o prodígio natural do amor: o santo testemunho do Santo recorda imperecivelmente porque ele ama infinitamente. E, se assim é, pode-se dizer que, em toda a história universal, não temos sobre ninguém um testemunho igual.
**XI**
Marcos, como todas as pessoas muito verídicas, não tem sorte.
Às vezes, tem-se a impressão que a Igreja não gosta nada do primeiro Evangelista e que só o venera contra vontade e pela sua antiguidade. Na ordem pré-canônica dos Evangelhos, segundo o antiquíssimo códice Cantabrigensis D, Marcos e, por conseguinte, o príncipe dos Apóstolos, Pedro, que está por trás dele, são postos em último lugar: Mateus, João, Lucas e Marcos. E mais tarde, na ordem canônica, Marcos é posto, é verdade, em segundo lugar, na aparência mais honorífico, porém isso é ainda pior, pois que se dissimulou o humilde Marcos entre os dois grandes Evangelistas Mateus e Lucas; escondeu-se o muito audacioso por trás do prudente Mateus, o muito incisivo por trás do suave Lucas, afim de que o Médico bem amado cure as feridas-mordidelas do Leão marciano. Foi nesse cantinho obscuro que ficou durante quinze séculos como um estudante de castigo (14) e só graças à crítica liberal retomou a primeira testemunha o primeiro lugar: ela não teve medo daquele que falou veridicamente d’Aquele que afirmou de si próprio: “Eu sou a Verdade!”
XII
Conhecemos um pouco Marcos, vemos seu rosto; mas não vemos nem conhecemos absolutamente Mateus. Na ordem canônica, o primeiro Evangelho pertence, malgrado a tradição da Igreja, não ao Apóstolo Mateus, mas a um personagem desconhecido até de nome. Talvez os cristãos do primeiro século ficassem menos surpresos do que nós. Se o escritor ficou ignorado, é possível que tenha sido em parte por sua própria vontade. Ele preparou um festim, convidou os amigos, abriu a porta da casa e, depois, afastou-se ou escondeu-se de tal modo que os convivas não o avistaram e nem jamais saberão onde está.
Essa ausência quase total do escritor no que escreve torna ainda mais perfeita a transparência, a ausência de ar, comum a todos os Evangelhos e que faz com que o objeto mais distante pareça próximo, o acontecimento de há dois mil anos pareça de ontem.
XIII
Papias ou o Presbítero João, como vimos, nos ensina que as logia, as palavras do Senhor, foram recolhidas (anotadas) em hebraico (em aramaico) por Mateus e cada qual as interpretava (traduzia) em seguida, como entendia. Se Papias quer dizer com isso — é assim que suas palavras podem ser compreendidas e o foram — que o nosso Evangelho segundo Mateus não é um original grego, mas uma tradução do aramaico, engana-se, confundindo Q — a fonte pré-sinótica de Mateus — com o próprio Mateus.
Tudo quanto se pôde dizer, segundo o próprio livro, se reduz ao fato do seu redator desconhecido ser um judeu-cristão, que vivia fora da Palestina e escrevia para judeus-cristãos com um fim de apologética, de defesa contra os ataques judaicos, incontestavelmente antes de João e provavelmente antes de Lucas, porém depois de Marcos, aparentemente nos anos de 80-90 do século I, isto é, após a destruição do Templo. Com efeito, no “apocalipse” de Mateus (chamemos assim, para maior brevidade), o fim do mundo não coincide mais, como em Marcos, com o fim do Templo (15). A comunidade dos cristãos de Jerusalém ou de Bataneia, ainda firmemente ligada à lei hebraica (sacrifícios, purificação, circuncisão), está constantemente diante dos olhos de Mateus (16). Ele é mesmo um piedoso rabino que acredita no divino Rabi, menos no novo Cristo heleno do que no antigo Jeschua-Messias judeu e mesmo arameu, rei de Israel.
Mas, para ele também, como o sol por trás duma nuvem, a Igreja universal, Ekklesia, nasce lentamente por trás da comunidade religiosa judaica, qahal (17).
Nas parábolas de Mateus sobre o reino celeste, a Igreja é a escola terrena desse reino celeste. Nele, a própria noção de Igreja mostra-se mais nitidamente do que em todos os outros Evangelistas. É o mais eclesiástico de todos. Foi isso que a Igreja logo compreendeu: imediatamente e para sempre deu sua preferência a Mateus e o pôs acima dos outros, acima do próprio Pedro-Marcos, no primeiro lugar.
O Anjo de Mateus acalma prudentemente a violenta impetuosidade leonina de Marcos. Lentamente e com prudência, como um boi de lento passo, ele puxa, através dos povos e dos séculos, por todas as arrieiras da terra, às vezes enlameadas ou ensanguentadas, o carro do Senhor, a Igreja, e a puxará até o Fim.
XIV
Marcos vê Jesus; Mateus ouve-o. Quantas palavras do Senhor nele! Como eles dão expressão a esta frase “com uma voz viva e inesgotável” que se não encontra em nenhum dos outros Evangelistas! Sabemos por Marcos o que Jesus fazia; por Mateus, o que dizia. É evidente que discursos tão longos como o Sermão da Montanha ou a Maldição aos Fariseus não puderam ser totalmente conservados na memória dos que os ouviram. Entretanto, Mateus os recompôs numa nova ordem, com as logia esparsas, anotadas antes dele. Mas, quando se lêem, julga-se ouvi-los diretamente da boca do Senhor, com o tom e a própria ordenação em que Jesus os dizia, porque ninguém a não ser ele jamais disse nada mais belo, mais forte, mais extra-humano em uma linguagem humana.
XV
Comparada com a de Marcos, a casa de Mateus parece, à primeira vista, nova, aberta, clara e sem mistério. Porém, se se olhar com mais atenção, ver-se-á também a fonte pré-sinótica Q — janela sombria na casa clara, dando para a profunda e antiga noite galileia de Jesus Desconhecido — mais velha talvez que a de Marcos.
XVI
De todos os Evangelistas, Lucas é o que melhor conhecemos. Ele não se esconde depois de haver convidado os amigos para as bodas, não vai embora da casa. Hospede amável, recebe os convivas ao vestíbulo e os apresenta ao Esposo — e, entre eles, um novo convidado que não deve estar nem mesmo em trajes de gala, Teófilo, seu protetor excelente, o qual, a julgar pelo seu título de clarissimus, é um alto funcionário romano, senador ou proconsul. Lucas, o “médico bem amado” (Col., 4, 14.), provavelmente de Antioquia, como o próprio Teófilo (18), é talvez seu médico particular, um liberto (Lukas, de Lucanus, é um diminutivo frequente entre os escravos), que obteve os direitos de cidadão romano. É, segundo parece, um pagão recente, um heleno puro, sem gota de sangue judaico, que, a exemplo de seu mestre Paulo, abre largamente as portas do cristianismo a todos os pagãos-helenos. Escreve o grego melhor do que todos os outros Evangelistas, melhor do que Flávio Josefo; gosta da eloquência; sua dedicatória a Teófilo é de uma composição grega perfeita, um modelo da arte literária dos antigos; imita Tucídides e Políbio, “pai da história universal” (19).
Lucas é o primeiro Evangelista universal, “católico”. É o único que faz corresponderem os setenta discípulos do Senhor aos setenta povos do Gênesis — a toda a humanidade, do mesmo modo que os Doze Apóstolos correspondem às doze tribos de Israel; e que, na genealogia de Jesus, remonta, não ao primeiro judeu, Abraão, mas ao Homem completo, Adão.
Desde o começo de seu livro, por um sêxtuplo sincronismo histórico (Tibério, Pilatos, Herodes, Filipe, Lisânias, Anás e Caifás), Lucas introduz o Evangelho na história universal — fá-lo entrar do eterno “hoje” no “ontem” e no “amanhã”, na série dos tempos, aceitando por isso mesmo adiar o Fim. Contrariamente ao “logo” de Marcos-Pedro, nos diz: “não será já o fim” (21, 9); “um homem plantou uma vinha… depois ausentou-se do país por um tempo bem longo” (20, 9.). O sentimento da eternidade imóvel foi substituído pelo do movimento no tempo; um “é” muito apavorante por um “foi” e um “será” tranquilizadores; uma vitória muito difícil sobre o tempo por uma vitória mais fácil sobre o espaço. O pequeno lago da Galileia transborda e torna-se o Mediterrâneo. Dir-se-ia que, com Lucas-Paulo, todo o cristianismo embarcou num navio para Roma — para o mundo. O Evangelho será pregado por toda a parte e somente então será o Fim — a Eternidade.
XVII
Muitas vezes, senão sempre, passar de Marcos e Mateus a Lucas é descer dos altos cimos para a planície: o ar aquece-se bruscamente, torna-se espesso e envolve-se nas brumas dos horizontes históricos. O odor da terra é menos penetrante. Lucas já está longe dela: confunde Palestina e Judeia, crê que se pode ir de Cafarnaum a Jerusalém, “passando” entre a Samaria e a Galileia (17, 11.); ora, basta olhar o mapa para ver que isso é tão inadmissível como passar entre a Alemanha e a França para ir de Paris a Madrid. Em lugar dos tetos chatos do sul, de barro ou pedra, encontram-se nele os telhados do norte, de telhas ou de ladrilhos, sem dúvida com o escoamento para a água da chuva; esquifes para os mortos ao invés de andas descobertas; peças de prata em lugar do troco de cobre romano. A discussão muito judaica sobre a purificação relatada por Marcos e Mateus é omitida por Lucas, como inútil e desinteressante para os helenos (20). Ele evita as palavras e os nomes próprios hebraicos (não faz menção nem do Getsêmani, nem mesmo do Gólgota), consequência talvez do gosto clássico que prefere o geral ao particular, à brancura do mármore aos coloridos fortes (21).
Lucas é o mais clássico, o mais heleno de todos os Evangelistas. Ele diminui os movimentos demasiado vivos de Marcos para acomodá-los ao ritmo solene das antigas cerimônias sagradas. O cego de Jericó não lança mais com gesto rápido o seu manto e se atira para Jesus. O próprio Jesus, no Getsêmani, não se prosterna mais sobre a terra, porém simplesmente se ajoelha. Os soldados romanos não lhe escarram mais no rosto (que diria Teófilo?), nem o flagelam. A fuga dos discípulos é omitida (que diria a Igreja?). Lucas preferiria antes cortar a mão do que escrever do Filho de Deus o que escreveu Marcos: “Ele saiu fora de si — perdeu o senso”.
Adoça o que é áspero, alisa o que é rugoso; dir-se-ia que tudo impregna do antigo óleo helênico e do novo óleo eclesiástico. No tempo de Homero, para tornar macias e maleáveis as pregas das roupagens, era costume embeber o linho no óleo antes de o fiar. Encontra-se em Lucas esse “linho luzente de óleo”.
XVIII
Ele mesmo nada viu e nada ouviu; lembra-se somente do que os outros viram e ouviram; ou, então, não faz mais do que adivinhar como as coisas se passaram ou deviam ter-se passado. Há um ponto entre Marcos e Lucas em que perdemos de vista o Homem Jesus, em que dele nos separamos, senão para sempre, pelo menos por muito tempo, até a segunda Vinda, em que cessamos de conhecê-lo “segundo a carne”.
Dos três Sinóticos, o terceiro Evangelho é o mais livresco, o mais escrito — aquele que não fala eternamente pela “voz viva e inesgotável”.
XIX
Dizem que a imagem visual do assassino se grava, às vezes, na pupila morta de sua vítima. O poder do ódio será maior do que o do amor? A imagem visual do amado não se gravará também, às vezes, na pupila morta de quem ama?
Parece que a imagem do Homem Jesus — “como é ela?” — não cessa de brilhar viva mesmo na pupila morta de Marcos-Pedro, enquanto que se apagou na de Lucas.
XX
Isso é muitas vezes verdade, mas nem sempre. Em Lucas também há uma janela sombria na casa clara — a fonte pré-sinótica comum a Mateus, e, demais, uma fonte que lhe é própria (Sonderquelle). Mas, se ele a encontra na lembrança de outrem — na tradição, é evidentemente porque primeiro a sentiu no próprio coração.
Lucas sabe sobre Jesus alguma coisa que nenhum dos outros Evangelistas e nenhum dos outros homens sabem. Ele ouve sem ter ouvido e vê sem ter visto: “Bem-aventurados os que não viram”, esta palavra aplica-se também a ele. Só ele sabe por que o Senhor não disse: “Bem-aventurados os pobres de espírito”, mas simplesmente “Bem-aventurados os pobres”, e por que ele “derrubará do trono os poderosos (os reis), elevará os humildes, cumulará de bens os esfaimados e repelirá os ricos com as mãos vazias” (1, 12-53.). Ele sabe — o que ninguém sabia, então, e o que ninguém hoje parece saber — por que uma única ovelha perdida é mais preciosa para o pastor do que as noventa e nove restantes, por que há mais alegria no céu por um pecador arrependido do que por noventa e nove justos, por que o pai só manda matar o vitelo gordo para o filho pródigo, por que é uma prostituta que prepara o corpo do Senhor para ser enterrado e que será a primeira a vê-lo ressuscitado; e por que é um bandido o primeiro homem que com ele entrará no paraíso.
XXI
Lucas tem um amor especial pelos “indivíduos tarados e decaídos” nota com espanto um crítico, como se Jesus não tivesse o mesmo amor singular (22). Dante compreendeu isso melhor: para ele, Lucas é “o escriba da mansuetude do Cristo, Scriba mansuetudinis Christi” (23).
“O mundo está edificado sobre a Graça”
Mundus per gratia aedificabitur (24).
Este agraphon maravilhosamente autêntico parece provir diretamente de Lucas — da própria boca do Senhor.
XXII
“Sobre a cruz, Jesus fala muito, segundo Lucas, enquanto se cala, segundo Marcos; não há mais verdade assim?” indaga o mesmo crítico (25). É possível seja assim mais verdadeiro; porém, se Lucas não tivesse ouvido, senão com os ouvidos, ao menos com o coração, estas palavras: “Hoje estarás comigo no paraíso”, como o nosso mundo, tão pobre e tão terrível, ainda seria mais pobre e mais terrível!
“Alegra-te, Cheia de Graça!” Foi ele também quem ouviu estas palavras; ele é o único que sabe o que significa “a Mãe de Deus”. Três Evangelistas conhecem o Pai e o Filho; somente Lucas conhece a Mãe.
XXIII
Como, então, não dizer: sem Lucas não haveria o cristianismo? Aliás, poder-se-ia dizer o mesmo de cada um dos quatro Evangelistas. Lendo cada um deles, pensa-se: “Eis o que me é mais íntimo!” Com efeito, talvez para nós, grandes pecadores, prostitutas que ainda não choraram, bandidos que ainda não foram crucificados, Lucas é o que está mais dentro de nós todos.
