Evágrio (Guillaumont)
ANTOINE E CLAIRE GUILLAUMONT — EVÁGRIO
Resumo feito da apresentação da tradução do Tratado Prático, por Antoine e Claire Guillaumont
Quase tudo que se sabe da vida de Evágrio provém do capítulo da História Lausíaca que lhe consagrou Paládio, seu discípulo, por volta de 420, oitenta anos após sua morte.
Nascido em Ibora, no Ponto, vizinho de Anesoi, propriedade da família de S. Basílio, onde este último e Gregorio de Nazianzo vieram a se retirar em 357-358, para uma experiência de vida monástica. Esta proximidade o pôs em contato com os capadócios, tendo recebido de S. Basílio o lectorado, e após a morte deste (379) sendo ordenado diácono por Gregório de Nazianzo. Sua formação filosófica e religiosa veio dos ensinamentos dos capadócios.
Escreveu muitos livros, que por sua condenação juntamente com Orígenes, foram destruídos em suas versões originais em grego. Restaram as traduções em armênio e siríaco. Destes escritos destacam-se o “Tratado Prático”, um ensinamento na praktike em cem capítulo, um ensinamento gnóstico em cinquenta capítulos, o Gnóstico, e a Kephalaia gnostica, seis centúrias de doutrina herdada dos capadócios e de Orígenes.
O livro “Bases da vida monástica” sobreviveu em seu original grego, e define os traços específicos da vida monástica e as condições requeridas para se tornar monge.
O Tratado ao monge Eulogo, assim como as duas coleções de sentenças “Ao monge” e “A virgem” reúnem conselhos sob a forma dos provérbios bíblicos.
Outros livros tratam diretamente da praktike:
Dos oito espíritos de malícia (kakia), editado entre as obras de S. Nilo e atribuído a este, possivelmente para salvaguardá-lo do anátema que pesava sobre Evágrio.
O Antirético (antirrhesis), grande obra compreendendo oito partes, segundo os principais vícios (kakia).
Dos diversos maus pensamentos, editado também entre as obras de S. Nilo, mas sob o nome de Evágrio, onde se faz uma análise rica e profunda dos “pensamentos” (logismos), de suas relações, de seu mecanismo de formação e de desenvolvimento.
Da oração (euche), também entre as obras de S. Nilo, que em 153 capítulos (número dos peixes da pesca milagrosa e número triangular místico), onde se expõe a tese da “oração pura”.
Vários comentários sobre os livros da Bíblia se perderam, restando apenas fragmentos em outros autores.
Por último, uma coleção de 64 cartas, duas exortações e curtos textos se conservaram em siríaco.
RESUMO DA INTRODUÇÃO
Para Evagrio a doutrina espiritual se compõe de três partes: “O cristianismo é a doutrina do Cristo, nosso salvador, que se compõe da prática, da física e da teologia”.
- A contemplação das naturezas criadas (física) e a ciência de Deus (teologia) formam juntas o gnostike, segundo tratado de Evagrio que acompanha o praktike.
- Este esquema tripartita se inspira da divisão escolar, de origem estoica, da filosofia em três partes: naturalem, moralem e rationalem (Sêneca); physikon, ethikon e logikon.
- Orígenes põe cada uma das ciências em relação com os três livros atribuídos a Salomão:
Provérbios
- Eclesiastes
- Cântico
- Para Evagrio, “a praktike é o método espiritual que purifica a parte apaixonada da alma”, em suas próprias palavras.
Seu fim é a apatheia, por sua vez, condição da ciência espiritual, via de acesso ao gnostike.
- Sob esta forma e soba forma de praktikos, praktikon, este termo tem uma uma grande história, antes de Evagrio adotá-lo dando uma significação técnica precisa, que por ele e depois dele, se tornou clássica na literatura espiritual bizantina.
- Histórico anterior a Evagrio:
O par praktike-gnostike remonta a Platão, que divide as ciências em duas partes: (a praktike (episteme) e gnostike (episteme).
A praktike episteme lida com as artes manuais
- A gnostike episteme trata da atividade do espírito
- A oposição praktikos-theoretikos (e não mais gnostikos) é aristotélica
O nous praktikos raciocina sobre o contingente e visa a ação
- O nous gnostikos encontra seu fim em sua própria atividade e deduz de um princípio suas consequências necessárias
- Decorre daí a definição de formas de vida : bios praktikos e bios theoretikos
- O praktikos ganha mais amplitude em Aristóteles, além das artes manuais se estendendo à ação em geral, incluindo a atividade política.
- Os estoicos seguem Aristóteles, definindo o praktikon como abarcando as coisas humanas, tendo por finalidade a felicidade da vida humana, que o político se aplica em realizar; quanto ao theoretikon tem por questão as coisas divinas e por finalidade a felicidade teorética, contemplativa.
O sábio deve ser um ativo e um contemplativo, ideal resumido na palavra logikos: “Entre os três gêneros de vida que existem, o theoretikos, o praktikos e o logikos, deve-se escolher o terceiro; pois o vivente que é logikos, a natureza o torna apto ao mesmo tempo à contemplação e à ação” (Crisipo, segundo Diógenes Laércio).
- Entre os filósofos gregos a palavra praktikos refere-se sempre a uma atividade de caráter profano.
- Philon, pela primeira vez, se refere a uma atividade especificamente moral e religiosa.
A melhor das coisas o theoretikos bios sucedendo, na velhice, ao praktikos bios levado durante a juventude.
- Por “vida prática”, ele entende a askesis que praticou Jacó, o “asceta” por excelência, antes de se tornar Israel, quer dizer “aquele que vê Deus”; esta ascese consiste em nada negligenciar dos affaires humanos, em conformidade ao ideal estoico, mas também não fugir de qualquer esforço, qualquer combate sustentado com vistas à verdade.
- Nos autores cristãos o termo desenvolve-se no sentido aristotélico e estoico, e no sentido de Philon.
O sentido mais comum é aquele que se refere à “vida ativa”, em contraposição à “vida contemplativa”, sendo Orígenes o primeiro a vê-las simbolizadas em Marta e Maria. Orígenes defende o ideal de sua união.
Em Orígenes destaca-se o emprego da palavra praxis que Philon usou para designar uma etapa da vida espiritual.
- Orígenes ordena a atividade espiritual em primeiramente praktikon, “fazer o que é justo”, vindo em seguida o theoretikon. O praktikon define-se como “retitude das ações”, ligada à contemplação, theoretikon, da qual é a condição: “Venham e vejam” (Jo 1,39), seria o vir uma exortação ao praktikon, e o ver a contemplação decorrente da retitude das ações.
- Esta oposição praxis e theoria, ação e contemplação, de Orígens passa para Gregorio de Nazianzo e Gregorio de Nissa, que também adotam as expressões aristotélicas: philosophia prkatike e philosophia theoretike.
Recebem novas conotações dado o aparecimento da vida monástica
- Evagrio herda a palavra praktikos mas lhe dá uma nova significação, que se pode dizer paradoxal, em relação às precedentes.
Aquele que Evagrio denomina praktikos é um monge, mais exatamente uma anacoreta, que se retira do mundo e renuncia não apenas se ocupar dos affaires humanos, mas até assumir funções ativas na Igreja, em outros termos alguém que vive na hesychia.
- A praktike implica em uma anacorese prévia e já estabelecida: a hesychia.
- Seu Tratado Prático é destinado aos monges que vivem uma vida anacorética e não aos cenobitas.
- Na trilha de Philon e de Orígenes, acentua na praktike seu caráter ascético e adaptado a vida anacorética, definindo-a de acordo com sua meta a impassibilidade, a apatheia.
Em que consiste a praktike? O tradutor siríaco traduzindo como “prática dos mandamentos”, seguiu de perto o pensamento de Evagrio que afirma: A caridade é filha da impassibilidade; a impassibilidade é a flor da prática; a prática repousa sobre a observância dos mandamentos…”. Mas a praktike não se confunde com a observância dos mandamentos.
- De certo modo a praktike é o exercício das virtudes, que Evagrio define como cinco fundamentais, constituindo uma cadeia: “A fé (pistis) é fortalecida pelo temor (phobos) de Deus, e este, por sua vez, pela abstinência (enkrateia); esta tornada inflexível pela perseverança (hypomone) e pela esperança (elpis), das quais nasce a impassibilidade (apatheia), que tem por filha a caridade, e a caridade é a porta da ciência natural a qual sucedem a teologia e por fim a beatitude”.
Esta forma encadeada parece provir de Clemente de Alexandria: “Assim a fé (pistis) nos aparece como primeiro movimento que inclina à salvação; após a qual o temor (phobos), a esperança (elpis) e o arrependimento (metanoia), se desenvolvendo com a abstinência (enkrateia) e a perseverança (hypomone), nos conduzindo até a caridade e a gnose”. (Stromates II, 31)
A praktike consiste principalmente na luta contra os “pensamentos” (logismoi). A análise dos pensamentos, particularmente dos oito principais pensamentos, o exame de sua origem e de suas características respectivas, a exposição dos remédios apropriados a cada um deles, formam quase todo o conteúdo do Tratado Prático de Evagrio.
