Boehme (JBEG) – Da Eleição e da Graça (Prefácio do Autor)
JBEG PREFÁCIO DO AUTOR AO LEITOR
- — Quando a razão humana ouve falar de Deus, do que Ele é segundo Sua Vontade e Sua Essência, ela imagina ou forma a ideia:
Que Deus é algo distante ou estranho: Que Ele habita fora do lugar deste mundo; elevado acima dos astros, reinando apenas assim no lugar deste mundo por Seu Espírito, por Sua potência presente em tudo; mas: Que em Sua glória e majestade, na Trindade, onde Ele está propriamente e particularmente manifesto, Ele permanece no céu, fora do lugar deste mundo.
- — Segue-se que a razão facilmente cai na fantasia própria da criatura e imagina que Deus é algo estranho,
Que Ele tomou conselho em Si mesmo, em Sua Trindade, por Sua Sabedoria, antes dos tempos da criação, sobre o que quis fazer das criaturas e deste mundo, A que todo ser deve servir e ser destinado; e que assim se formou um destino, em Si mesmo, pelo qual Ele quis regular, ordenar e destinar cada coisa.
- — Daí resulta a opinião errônea, a fantasia e a incerteza da disputa sobre essa deliberação divina, mantida acerca do destino dos homens; como se Deus, de propósito e desígnio premeditados, houvesse eleito uma parte dos homens para possuir o reino dos céus, fundado na bem-aventurança santa; e a outra parte para lhe fazer sofrer a danação eterna.
Que, em uns, Ele quis manifestar Sua ira e, nos outros, que são Seus eleitos, Sua graça. Que Ele também, de propósito deliberado, estabeleceu assim uma diferença entre os homens, para manifestar e fazer eclodir Sua potência em Seu amor e em Sua ira; E que, por essa razão, todas as coisas devessem acontecer assim, por necessidade. Que a parte do gênero humano destinada a manifestar Sua ira fosse de tal modo endurecida e reprovada pelo propósito deliberado de Deus, que não houvesse nenhuma possibilidade de ela vir a participar da clemência divina; e que, ao contrário, não houvesse nenhuma possibilidade na outra parte de incorrer na danação.
- — Mas, embora haja passagens semelhantes na Sagrada Escritura, e a razão humana criatural se compraza na mesma ideia (ainda que nada saiba do que Deus propriamente é), a Escritura Sagrada não deixa de dizer também o contrário:
Que Deus não quer nem pode ter feito nada de mal, de Seu propósito deliberado. Essas duas ideias são, pois, contrárias (contraria); queremos dar ao Leitor cristão e imparcial, que ama a verdade e nela busca o fundo interior das coisas, uma explicação abreviada, a fim de reunir os espíritos e dar o verdadeiro sentido aos princípios que ele deseja meditar e conhecer, e isso com a boa e sincera intenção de lhes comunicar e pôr diante dos olhos os dons que recebemos, e de lhes mostrar como chegamos a compreender tudo isso pela graça do soberano Bem. Não temos o menor desígnio de atacar ou desprezar com isso quem quer que seja, qualquer que seja sua opinião e sentimento; mas procuro conciliar os espíritos e contribuir para a reunião cristã e fraterna; pois devemos tornar-nos participantes uns dos outros nos dons que, pela graça de Deus, recebemos cada um em particular.
- — Assim como os ramos de uma árvore não são absolutamente semelhantes uns aos outros quanto à sua forma, embora saiam do mesmo tronco e se comuniquem sua essência (Ens) e sua virtude uns aos outros, dando flores e frutos, e se alegrem juntos por estarem ligados ao mesmo tronco sem se invejarem por causa da distribuição desigual de sua força e de sua virtude de frutificação,
Do mesmo modo devemos agir uns com os outros, quanto à partilha dos dons desiguais que recebemos. Trata-se apenas de voltar nossos desejos para a verdadeira fonte, para nossa mãe comum, para nosso tronco, a fim de que cada ramo empreste sua força e sua virtude ao outro, com benevolência; A fim de que não nos dobremos sobre nós mesmos, cedendo ao desejo de nosso orgulho, de nossa avareza — na intenção de superar nossa própria mãe comum, da qual temos nossa existência, elevando-nos acima de todos os seus filhos, nossos irmãos — e querendo fazer de nós mesmos uma árvore separada e particular. Trata-se de não nos deixarmos infectar pelo veneno do Diabo (isto é, pelo veneno do amor-próprio, da impressão magnética falsa, ao não querermos existir senão por amor a nós mesmos). Pois daí resultam contradições, disputas, más intenções, dissensões, divisões, cismas, violências, pelas quais todos os ramos da árvore da raça humana querem separar-se uns dos outros, invejando sua essência e sua virtude, declarando-se reciprocamente traidores e rebeldes, enquanto cada um se apresenta, no entanto, como um ramo separado de seus co-ramos e se faz reconhecer como tal por seu falso brilho e por seu orgulho. Daí nasce o grande número de dissensões e disputas que sempre dividiram os mortais.
- — É, pois, a todos os nossos irmãos que queremos dar a conhecer qual é a fonte das disputas, dissensões e cismas que resultaram naturalmente do erro; qual é o verdadeiro fundamento da única religião universal e o que deu origem a tantas divisões e opiniões diversas.
Demonstraremos de onde a contrariedade, desde que o mundo existe, teve origem, e daremos explicações fundamentadas de tudo isso, para que eles cheguem a ideias claras e justas sobre a Vontade Divina segundo o Amor e a Ira.
- — Exorto, enfim, o leitor amigo da Verdade a entregar-se absolutamente à Vontade de Deus, por uma humildade divina, e a abraçar nela seus co-ramos e irmãos, com doçura e caridade; então, ele poderá apreender facilmente as ideias e verdades sublimes e a ciência certa recebida por nós. Livre de todo erro e preconceito, poderá gozar da verdadeira tranquilidade em que se encontram todas as coisas quando estão no Verbo da potência divina.
Recomendo-o, enfim, ao Amor eficaz da Essência (Ens) de Cristo, recomendando ao seu o meu sincero desejo e minha boa vontade, com a mais terna afeição. Assim seja. ]
