A Pérola evangélica
DVPE A pérola evangélica é um texto flamengo “escrito pela mão de uma mulher”, provavelmente uma beguina ainda desconhecida na região de Brabante. Foi publicado em 1535 por iniciativa de Thierry Loher, cartuxo de Colônia. Outro cartuxo, L. Surius, fez a tradução para o latim em 1545. Finalmente, os cartuxos de Paris fizeram a tradução francesa em 1602, reeditada aqui. Não podemos deixar de nos congratular por isso. Com efeito, este escrito é herdeiro dos místicos flamengos, thiois e alemães, e mergulha imediatamente no coração do encontro entre Deus e o ser humano — onde as fronteiras entre eles se tornam indistintas. Aqui não há êxtases nem gemidos, nem abandonos. Mas uma retidão do pensamento, um rigor do argumento, esse brilho prateado de uma pérola já formada, um domínio do conceito até sua ultrapassagem mesma, que elevam o texto a uma injunção de sentido de abalo maior. Não que faltem preces por salvação, devoções ardentes como nuvens vindas dos fundos tempos da religião, orações vacilantes e desejantes. E é isso, sem dúvida, que hoje surpreende o leitor — essa compleição infinitamente delicada de um verbo altivo, imperativo, sem complacência nem recurso, e essa onda súbita, e monótona, de prosas investidas de todo o peso de um mundo instituído. O que desconcerta o olhar contemporâneo reside nesse cruzamento de múltiplos registros de enunciados, entrelaçamento de orações e vozes estilhaçadas em seu próprio princípio, de prosternações de graça e de erupção de um sujeito insuspeito, portador de toda a nudez de uma alma devolvida à sua essência, que é esse nada de altíssimo preço — de bênçãos dirigidas ao deus, a seu filho não-gerado, à mulher de todas as paixões, e de ruína imediata do destinatário desses benefícios e promessas, para chegar ao texto dessa ferida que não cessa de dobrar lentamente o tempo à sua desmedida, até torná-lo nosso instante imediato. Estranho caos, para um parto de longa herança e vasta resposta. Mas nada aqui se escreveu, recompôs, reinscreveu, desconstruiu, inseriu, deportou, interpolou, que não tenha sido, nessa própria insistência em encontrar seu lugar de exato cumprimento, filtrado por uma instância de vigília e atenção, à medida do desafio produzido pelo próprio texto — que o surpreende, suspende seu ritmo e sua duração sempre tentada a durar ainda mais. Esse desafio, verdade seja dita, habita o mais profundo de todo enunciado místico, constitui sua própria razão e seu ponto de absoluta consumação. Em sua obra sobre “a anatomia da alma”, Mino Bergamo desenvolve a tese de uma solução de continuidade entre a conceituação dos “espaços” e graus da alma na mística nórdica e na espiritualidade, particularmente francesa, gerada pela obra de São Francisco de Sales. Aquela trata do “fundo da alma”, esta, da “ponta do espírito”. Essa mudança de qualificação atestaria uma mutação na “representação” do lugar onde se entrelaçam desejo da criatura e receptividade divina. Na mística renano-flamenga, esse lugar situa-se fora das regiões da alma concebida como matriz de consciência e supõe uma ruptura radical com ela. Na mística salesiana, o encontro da criatura com Deus ocorre na extrema ponta do espírito, sem dúvida sob condição de uma desconhecimento lógico, mas que não ultrapassa as fronteiras da consciência. Em outras palavras, a mística abstrata essencialista, da qual A Pérola Evangélica é testemunho magnético, cederia lugar a uma psicologização da espiritualidade em seu ato último, que instituiria um novo dispositivo e um novo argumentário na busca de Deus. Bergamo abre, evidentemente, perspectivas inéditas para a compreensão da mística francesa no século XVII. As reservas aqui expressas não recaem sobre o valor crítico da análise proposta nem sua capacidade de responder à questão que anima minha própria reflexão: o que é a mística em relação à produção permanente e inacabável do sujeito como capaz do outro e incomparável, equivalente e singular? Bergamo tem o mérito de trazer a essa questão uma resposta indireta, destacando a reintegração, no próprio âmbito da operação de consciência, do ato de encontro entre a criatura e Deus. A Pérola Evangélica, ao tratar do fundo da alma a partir de toda a tradição renano-flamenga, me parece oferecer uma resposta igualmente radical, identificando ali o próprio lugar do sujeito. Ao ler A Pérola, percebe-se muito rapidamente que esse “fundo da alma”, esse espaço em todos os pontos “essencial” onde se consomem — cinza e troca, absorção e presenças desabrochadas — criatura e Deus, Deus e sujeito, nada mais é que o regime de existência do que se pode chamar foro interior, razão íntima de todas as experiências interiores, assumindo-as todas, transcendendo-as e forçando-as a se desdobrarem como redes de intersubjetividade. O foro interior é esse princípio de reversão da extrema intimidade do sujeito, doravante habitado pelo outro. Nesse ponto preciso, a mística traz a revelação do sujeito: verdadeiro desvelamento que o liberta como pessoa privada, quando agora pode se exibir como oferta pública. E A Pérola não hesita em dizer o que ocorre em Deus com a alma “introvertida fora de si” (III, 25) — alma paroxismo, alma paradoxo. A mística, ou a instituição do sujeito. Mais ainda: a mística, ou a invenção de uma interioridade de tal tensão, vocação, disponibilidade, que é desde já operação, abertura, saída trabalhando todo deserto, experiência em seu sentido originário de passagem. Mas isso não basta, e alguns passos adiante ainda devem ser dados, alguns espaços de sentido. A mística, ou a capacidade de dizer a última dobra de uma consciência desamparada de seus referenciais de quietude e legitimidade. Não que ela se funde como imperativo de inquietude, nem se desloque para as margens de incertezas que são abrigos de heterodoxias ou heresias. Caberia, antes, propor a tese contrária; a mística só se entende como palavra em poder de uma urgência tal de Deus que fende toda fala até silenciá-la, todo verbo até extinguir seu império, toda criatura até produzi-la como pura vacância e vacuidade. A mística não é uma alternativa a um discurso sobre Deus, ou uma teologia, cujas aporias ela exibiria e para as quais proporia uma via de escape. Ela se contenta em instalar no próprio coração dessa instituição da palavra a objeção que a faz tropeçar infinitamente. A mística é essa emboscada que forma um círculo de crueldade no centro da fé e de seus expostos, e priva todo esse sistema de signos de qualquer competência para dizer seu deus. Mas o que a mística coloca, no mesmo momento em que trabalha para esse deus, não é mais uma criatura capaz de viver um mundo decaído, mas a decepção mesma como única forma do sujeito, e a isenção como único recurso da consciência. Essa isenção é assim a última superfície, e nua, do que a mística chama de alma, inteiramente liberada de qualquer intriga quanto ao século e suas próprias qualidades, e no entanto fonte permanente de recomeço, espaço onde tudo o que se consome de história, paixão, emoção, apanágios identitários, tudo o que circula e se troca, se negocia e se aprecia, não tem mais razão nem valor. Não se trata então, na mística, de opor ao século e seu povo, ao mundo e seu público, um interdito de conhecimento, mas de gerar um deserto desse mundo, e um não-lugar por vir para tudo o que tem lugar. A Pérola diz essa introversão essencial da alma, e diz com a mesma palavra essa dobra da consciência onde nada se dispõe que não se apague, onde nada tenta fazer memória que não se esqueça. Última forma de nada, quando se trata de decidir sobre um sujeito poeta de seu deus. A mística inventa continuamente, nessa lição de abismo, o foro interior como última instância no processo de desolação da criatura, tempo suspensivo de toda paixão e ação, e imperativo de alteridade. Não íntima convicção — a mística é arrasamento demasiado crucial de toda vontade própria para deixar alguma chance a uma postura impossível; nem tampouco apelo ao que se desdobra hoje como exigência ética, essa força do outro em si mesmo assumida, garantia de sua identidade e prevalência: a mística cavou demasiado sob os alicerces de toda identidade para que esta, fosse mesmo a desse outro surgido no centro de nosso olhar, pudesse valer desde já. Seria preciso justamente o que não poderia afirmar uma ética — essa falha secreta no recesso de uma alma devastada, que a mística tem por efeito manter aberta e viva permanentemente. O dito místico tende a esse único fim: subtrair toda qualidade e valor de cada criatura, derrubar os laços que decidem de uma socialidade presente, e, nessa conjunção de um nu-valor de si e de um desabrigo do mundo, levar a consciência a seu último reduto, a sua extrema desapropriação. O foro interior nomeia isso que se instaura pela mística como sua exigência originária, vindo assim ao nosso tempo como a sua hora exata e seu próprio encontro.
