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Daniel Vidal (DVPE) – A Pérola evangélica, dissoluções

DVPE Na fragilidade do texto místico, uma cisão incessante, refundando sem trégua a fórmula inicial. A Pérola Evangélica produz este efeito: dissolver toda obra anterior, tornando-a habitável por sua lenta escrituração e composição — dizer o tempo de sua gênese como tempo do aqui e agora. A Pérola é texto de acréscimo: vem somar-se a centenas de outros, repercutindo mais uma vez a injunção mística, essa experiência de devoração íntima da criatura por seu Deus até que, todo desejo desertado e todo ardor reduzido a mera figura retórica, neste matrimônio noturno, a criatura transite para o absoluto de sua forma, sua fórmula mesma, que a enuncia como sujeito. Analisando a terminologia mística de Benoît de Canfield — cuja influência A Pérola exerceu sobre seu argumento de aniquilação e essencialidade —, P. Mommaers trata desse desvanecimento do desejo na “coisa desejada”, que pressupõe o desaparecimento do desejo “uma primeira vez enquanto 'demasiado' humano (…), para tornar-se um desejo à medida do Outro”. De longe, Mommaers é, até hoje, o analista mais refinado e perspicaz da mística abstrata e de sua capacidade de dizer o outro pelo desvio da dicção de Deus. Muitos dos momentos da argumentação aqui proposta lhe são devedores, porém desdobrados em um horizonte interpretativo distinto, onde o princípio de alteridade jaz no próprio cerne do imperativo do sujeito, que assim compõe “o Outro” como fórmula do outro, e não o outro como degrau em direção ao “Outro”. Experiência dual e de ablação contínua. Neste instante — que pode ser, à medida de nossa duração, tempo reduzido ao seu grito, ou presente elevado à virtude da eternidade — não há sujeito que não seja cadinho onde se consomem todos os valores e seus mundos circunstanciais, toda identidade, toda valência. O sujeito é então essa coisa — esse nada — que emerge ao final de toda aventura do espírito: sem lugar para insistir, sem hora para permanecer, sem obra para se dedicar como assinatura. Mas o que marca o sujeito como nítida devastação do eu inaugura imediatamente uma nova configuração de sentido: essa absoluta deserção, esse desapossamento, essa despesa bruta e sem resto fundam o sujeito — que é nada — em absoluto de liberdade (a mística chegará a dizer jubilação, essa expansão sem reserva dos sentidos em seu mais vasto concerto), em uma soberania e onipotência, sujeito insular e, nessa postura à margem, fazendo nascer a seu olhar todo mundo em sua claridade primordial. Mommaers qualifica de “espaço lúdico” esse “jogo”, no próprio coração da “experiência amorosa do Outro”, entre “o próprio Deus” e seu solicitador. Aqui se evidencia que A Pérola institui esse espaço de jogo como instância de constituição do sujeito, na medida em que este se autoriza — como se verá adiante — de uma capacidade para entrar e sair de seu deus, para “querer querer”, etc. Essa capacidade e essa autoimposição de vontade só podem ser pensadas nesse intervalo de liberdade onde, de fato, tudo joga e se joga. Nada que possa testemunhar a restauração de uma identidade perdida, saqueada, vomitada de uma vez por todas — mas uma absorção de urgência tal no que a mística chama de abismo da divindade, a divindade como abismo, que o sujeito, então desprovido, reduzido à sua forma essencial, pela mesma gesta acede à sua completude: a mística designa o sujeito à sua vocação de infinita potência. Deus não é então, no caminho da criatura ao sujeito, e do sujeito como coisa de nada ao sujeito como sobreeminência e olhar total — Deus não é então senão uma frase que se cumpre no momento mesmo em que já está impronunciada, por obsoleta. A Pérola Evangélica não inventa, desse ponto de vista, uma nova via na mística do Ocidente. Ela reúne o horizonte extremo de cada enunciado anterior — e poder-se-á com prazer reencontrar no texto essas heranças reescritas, ou depositadas tal qual na trama da escrita, testemunhos maiores de uma filiação de alta tradição. Mas se não fosse senão essa retomada, em forma de paráfrase e redobramento, do que já foi enunciado em terras renanas, nessas Flandres de todos os despojamentos da alma, nessas terras brabançonas, férteis em devoções devoradoras — A Pérola manteria sem dúvida seu lugar entre os textos de mais forte tensão espiritual, mas valeria, em suma, apenas como um dizer sobreposto.

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