Cassiano Collatio XIV-10
CASSIANO — CONFERÊNCIAS
PRIMEIRA CONFERÊNCIA DO ABADE NÉSTEROS — A CIÊNCIA ESPIRITUAL
X. Como aprender a verdadeira ciência
Se, por conseguinte, queres chegar a ciência verdadeira das Escrituras, apressa-te a conseguir, primeiro, uma invariável humildade de coração. É ela que te levará à ciência, não a que enche de vento (Cf 1 Cor 8,l), mas a que ilumina, pela perfeição da caridade. É impossível a uma alma impura obter a ciência espiritual.
Assim sendo, evita com todo cuidado, que o teu zelo pela leitura, em vez de te trazer a luz da ciência e a glória perpétua prometida pela iluminação da doutrina, gere instrumentos de perdição, nascidos da vaidade e da arrogância.
Depois disto, eliminadas as preocupações e os pensamentos terrenos, esforça-te, de toda maneira, por dedicar-te assiduamente, ou melhor, constantemente, a leitura sagrada, de modo que a meditação contínua impregne a tua alma, e a forme a sua própria imagem, fazendo dela, por assim dizer, uma arca da Aliança (Cf. Heb 9, 4-5) com as duas tábuas de pedra, isto é, a eterna firmeza dos dois Testamentos: a urna de ouro, símbolo duma memória pura e sem mancha, que conserva com tenacidade o maná escondido, vale dizer, a eterna e celeste doçura dos sentidos espirituais e do pão dos anjos; e a vara de Arão, quer dizer, o estandarte da salvação, de nosso sumo e verdadeiro pontífice Jesus Cristo, sempre verdejante em sua memória imortal. Esta é, com efeito, a vara que, depois de cortada da raiz de Jessé (Cf Is 11,l), reverdece da sua morte, com um novo vigor.
Todas essas coisas são protegidas por dois Querubins, isto é, a plenitude da ciência histórica e espiritual. Porque Querubim significa “plenitude de ciência”. Eles cobrem sem interrupção o propiciatório de Deus, isto é, a tranquilidade do teu coração, e a protegem com sua sombra contra todos os assaltos dos espíritos malignos.
Assim, tua alma, elevada até se tornar não só a arca da divina Aliança, mas também o reino sacerdotal, absorvida, de certo modo, nos conhecimentos espirituais, pelo seu indissolúvel amor da pureza, cumprirá o preceito feito pelo Legislador ao pontífice: “E não sairás do santuário, para que não se profane o santuário de Deus” (Lev 21,12), isto é, o seu coração, no qual o Senhor promete que habitará para sempre: “Habitarei neles e andarei no meio deles” ( 2 Cor 6,16).
Por isto, devemos ter todo o empenho em aprender de cor a série das sagradas Escrituras, e em repassá-las na memória, sem cessar. Esta meditação contínua nos produzirá um duplo fruto: primeiro, enquanto a atenção da mente está ocupada em ler e em preparar as leituras, não se deixará cativar pelos laços dos maus pensamentos; em segundo lugar, acontece que, depois de ter repassado muitas vezes certas passagens, trabalhando para guardá-las de memória, não conseguimos, na hora, entendê-las por causa dos bloqueios que prendem a nossa mente. Mas, em seguida, libertos dos encantamentos de ocupações e de coisas vistas, quando as repassamos, em silêncio, sobre tudo na meditação noturna, nós as contemplamos com maior clareza. E, então, quando nos repousamos, como que mergulhados no torpor dum sono profundo, revela-se-nos a inteligência de sentidos totalmente escondidos, dos quais, estando acordados, não temos a mais leve suspeita.
