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Shekiná e Cabala (Abécassis)

Armand Abécassis (USSJ6)

Foi assim que a reflexão sobre a Shekiná foi acolhida pelos filósofos medievais, que tiveram a tarefa de definir a função no homem adequada à percepção da Shekiná. Saadia Gaon, no século X, chama a Shekiná de “Glória do Nome” (KaBoD HaSHeM) e a situa entre Deus e o homem em estado de profecia. Para Judah Halevi, a Shekiná aparece ao profeta em estado de receptividade, e nunca é o próprio Deus que se manifesta. Deus não se dá completamente em Sua Presença. Ele está sempre além de qualquer forma de relação na qual, no entanto, Se envolve. O homem, portanto, nunca alcança a essência divina, mas apenas a existência de Deus, o fato de que Ele é, não o que Ele é.

Com Maimônides, a Shekiná é sistematicamente considerada e analisada como uma entidade criada por Deus, que pode ser chamada de “Glória Divina” (Guia dos Perplexos I, 21) ou “Luz”, interiorizada no ser humano. É, diz a águia da Sinagoga, uma das dez luzes ou Intelectos que ligam o homem a Deus. Ele a chama de “Intelecto Agente”.

É então que se revela a natureza da função que nos permite conhecer a Shekiná. Além do corpo e das funções sensitivas, além da inteligência racional e espacial, além desses dois meios de saber e agir sobre o objeto e a exterioridade, existe uma terceira função, superior e intuitiva. O Intelecto Agente é a faculdade de ler o sentido último do real. O Talmude, já no tratado Sucá (5a), comparava a Shekiná ao Espírito Santo. Maimônides os assimila completamente. A Shekiná é, assim, o espírito de interpretação em busca do significado, em oposição ao espírito de explicação, que busca a verdade como conhecimento do que é. O espírito de interpretação busca fazer ser, fazer advir, pois não se contenta com o que é e persiste em seu ser. Está, portanto, nos antípodas do processo de causalidade.

Um campo é assim delimitado entre o homem, o mundo e Deus. Um órgão de conhecimento é assim destacado para explorar esse campo que separa a antropologia, a cosmologia e a teologia: a intuição, o Intelecto Agente, ou o “imaginal”, na expressão de Henry Corbin. Resta apenas questionar os cabalistas sobre a relação entre esse campo e esse órgão de conhecimento. Devemos, então, nos abrir para o simbólico.

No Zohar, a Shekiná é comumente chamada de Malchut. Como se sabe, é a décima sefirá, chamada “Reino” ou “Realeza”. É uma figura feminina que reúne e recolhe os germes masculinos das outras nove sefirot. Ela não tem luz própria nem características próprias, assemelhando-se às quatro letras do Tetragrama divino, que são lidas de acordo com as vogais que lhes são acrescentadas. Ela é o lugar por excelência onde as outras luzes se manifestam. As sefirot em geral brilham com vários reflexos da mesma luz: a sua; enquanto a sefirá Malchut — a Shekiná — contém apenas luzes diferentes e diversas que lhe são estranhas e às quais ela apenas empresta sua forma, como um recipiente recebe um conteúdo que se molda a sua forma sem que nenhum dos dois mude de natureza.

Ela é, por exemplo, “a rosa” que muda de cor: antes da fecundação, é verde, diz o Zohar; depois da fecundação, é vermelha com reflexos brancos. Ou ainda, é a parte inferior da chama de uma vela, que muda constantemente de cor, enquanto a parte superior da chama é sempre branca. A Shekiná seria, portanto, um modo da Presença pela Ausência: ela está lá sem pesar, dá-se sempre ao se apagar, como um mestre em relação ao seu discípulo, ou um pai em relação ao seu filho. O discípulo e o filho só podem se tornar mestre e pai se aqueles que os formam e educam se dão a eles ao se apagarem. Ou, em termos psicológicos, é o modo de presença do desejo e da falta: estar lá, sem estar lá plena e totalmente, sendo os objetos do desejo as outras nove sefirot que o preenchem sem esgotá-lo.

Malchut depende, portanto, de sua relação com as outras sefirot, às quais, no entanto, permanece exterior. Às vezes, a união entre elas não é perfeita, diz o Zohar. Então, a sefirá que preenche Malchut é mais forte e pode quebrá-la. Se a união ocorre no amor, o mundo é abençoado. Se é a justiça que se apodera de Malchut, esta é como a mulher grávida cujo filho está dentro dela e cujo amor só aparecerá quando ela o separar de si mesma. Pois há uma grande diferença entre receber para guardar e receber para dar.

Embora seja a última sefirá, Malchut tem um segundo estatuto, pois é a primeira em relação ao mundo. Ela é o limite extremo da manifestação divina e, ao mesmo tempo, o começo do universo. Ela é criada por Deus ou emanada dEle, mas está na origem de toda a criação. Primeira e última ao mesmo tempo, ocupa o espaço-tempo de tudo o que é fronteiriço, pois só assim permite a comunicação. Ela é, portanto, intermediária e, como todo intermediário, é o meio pelo qual se dá a passagem de um termo a outro, de um lugar a outro, do mundo a Deus.

Comparada à primeira sefirá, Keter, com a qual é frequentemente associada na expressão “Keter Malchut” (Coroa da Soberania), ela é “Atará”, a coroa esplêndida do Universo. Na realidade, Malchut só pode ser preenchida por Keter, mas atinge esse florescimento por intermédio das outras oito sefirot. Quando Malchut revela apenas Keter, a harmonia vem ao mundo; e como Keter significa a Vontade suprema, o projeto divino inicial, Malchut é sua realização. Ou, se preferirmos, Keter é o desejo antes do pensamento humano, transcendente e imanente ao mesmo tempo, e Malchut é o desejo após o pensamento e a reflexão, assumido inteiramente e aceito como tal. A soberania verdadeira, Malchut, não é, na verdade, o serviço e a responsabilidade?

Comparada à segunda sefirá, Chochmá (Sabedoria), Malchut é a “sabedoria inferior”, a da ação, da realização, da concretização. É a sabedoria utilitária, a da exterioridade ou da conduta, enquanto a Sabedoria superior, Chochmá, é a dos mundos espirituais e transcendentais, imaginativa e criadora, a sabedoria do sentido, não da verdade.

Comparada à terceira sefirá, Biná (Inteligência), Malchut é a “mãe inferior”. Devemos, portanto, distinguir, com os cabalistas, a Shekiná superior, Biná, chamada “mãe superior”, e a Shekiná inferior, Malchut. E os cabalistas acrescentam que, nesse caso, a Shekiná entra primeiro por Malchut antes de chegar a Biná. Ela é, portanto, a presença divina no mundo e em Israel, por meio do qual, e graças ao qual, a salvação vem à humanidade e a toda a criação.

É Israel que é, então, responsável pela Shekiná; é o povo escolhido por Deus que, fiel à sua aliança, permite que a presença divina se estenda sobre toda a realidade, unindo-a a Deus e ligando-a à sua origem e fonte. A Shekiná, também chamada de “Knesset Israel” (Assembleia de Israel), é, precisamente, a revelação da face de Malchut em relação à criatura, sendo a outra face ligada a Keter. E a criatura por excelência é chamada, na Torá, de Israel, que, como Jacó, “luta com Deus e com os homens e prevalece”.

Os destinos de Israel, o filho primogênito, e da Shekiná, a mãe, estão ligados: “Onde Israel, o filho, está exilado, lá, diz o Talmude, a mãe está exilada” (Megillá 29a), e quando o filho, Israel, retorna, a Shekiná também retorna com ele. O que os une é o amor da mãe por seu filho, total e incondicional.

É uma observação interessante e fecunda que o Zohar faz ao afirmar que a Shekiná é a forma feminina de Deus, pois é a mãe de Israel, e encontramos a esse respeito duas teses contraditórias e complementares.

A primeira tese é que a mãe, a Shekiná, foi para o exílio com seu filho Israel, por amor, para ajudá-lo a suportar seus sofrimentos e protegê-lo. Ela é Raquel, que chora seus filhos e se recusa a entrar em Jerusalém ou na caverna de Macpela, onde estão enterrados os patriarcas e suas esposas. Ela está enterrada em outro lugar, no caminho de volta para Jerusalém, e só se reunirá a seu esposo Jacó em sua caverna quando o último de seus filhos retornar a Jerusalém. Vendo Deus se separar de Seu povo e condená-lo ao exílio, a mãe se separou de seu esposo para seguir seu filho. “Ou a mãe e o filho, diz o Zohar, retornam juntos, ou ambos permanecem no exílio” (Zohar III, 297b). Mais ainda, a mãe acabará por proteger as nações para que Israel, seu filho primogênito, seja bem protegido, conforme o versículo do Cântico dos Cânticos:

“Fizeram-me guardiã das vinhas, mas a minha vinha não guardei.”

A Shekiná está, portanto, no exílio com seus filhos, mas não se divorciou de seu Esposo (Zohar II, 216b).

A segunda tese é que Deus permitiu que a Shekiná, a mãe, acompanhasse seu filho Israel em todos os lugares, como garantia da Aliança eterna que Ele nunca abandonará. A mãe estando sempre perto de seu filho, este sabe que o Pai voltará um dia. O exílio da Shekiná é, assim, o testemunho do amor do Pai, e não da mãe. A força masculina se separa da mãe, para o bem de Israel, o filho. Mas, felizmente, a nostalgia leva Deus a visitar a Shekiná e Israel no Shabat e nas festas (Zohar III, 114b).

O exílio de Israel e da Presença divina que o acompanha em suas provações é uma tragédia também para Deus, pois Ele se separa da Shekiná, a esposa, para proteger Seu filho no sofrimento. Mas acontece, em troca, dizem os cabalistas, que a mãe separada do esposo fique muda, e que sua voz se separe de sua palavra, que se saiba que ela fala, mas que não se entenda mais o que ela diz. Sua palavra não é mais ouvida (Zohar I, 36a), e é o tempo em que a profecia se perde em Israel. A unidade do Tetragrama é quebrada nesse momento, e a quarta letra, que é idêntica à segunda (He), se separa dela. É o tempo em que, como consequência do fato de que o povo de Israel não é mais capaz de produzir profetas, as nações o dominam, e a própria Shekiná é maltratada por causa das infidelidades e faltas de seu filho.

O “Leão de Safed”, no século XVI, o Ari (Rabino Isaac Luria), desenvolveu esse tema em relação à redenção final, que reunirá o Pai, a Mãe e o Filho — Deus, a Shekiná e Israel. No exílio, diz ele, o filho sofre, a mãe não tem voz, e o pai não tem palavra. Na mesma época, o Maharal de Praga ensinava que um dos sinais messiânicos é o que o Talmude (Berakhot) nos dá da alvorada que surge e da luz que se espalha pelo mundo a partir do Oriente: a esposa que dialoga com o esposo enquanto o filho se amamenta em seu seio. Como dizer, senão que o sofrimento cessa quando a voz recupera a palavra e o sentido explode em todo o seu esplendor?

Esse modelo de união mística é característico do reino divino, ao qual só se tem acesso pelo mistério da Shekiná, a Presença, que se dá em sua existência e se retira em sua essência. A Shekiná não é Deus, assim como a Presença não é o fim último: ela é apenas a condição do encontro e do diálogo. Ela não é nada e é tudo, pois é o lugar que a palavra deve atravessar para ligar os dois interlocutores. É ali que eles devem vir para se encontrar, seu ponto de encontro, por assim dizer. É ali que o homem recolhe a palavra de Deus, mas é também ali que Deus Se dispõe a ouvir o homem. Esse lugar por excelência é, no triângulo familiar, a mãe, e, na escala da humanidade, a Shekiná.

(A conferência foi seguida da audição de um Canto Judaico.)

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