Boosco Deleitoso I-XV
BOOSCO DELEITOSO — PARTE I — CAPÍTULO XV
120. Depois que aquele glorioso varão houve ditas essas razões, que haveis ouvidas, começou de dizer, cantando em alta voz mui graciosa:
— Ó morada do deserto, verde e florida com as flores de Jesus Cristo! Ó montanha apartada, em que nascem aquelas pedras preciosas das quais é feita e edificada a cidade do grande rei!
O ermo familiar é achegado ao Senhor Deus e lugar muito alegre.
121. Quando eu pecador, mui triste e mui coitado, ouvi as palavras e o cantar mui doce do glorioso varão, entrou em meu coração já quanto de alegria e de desejo daquela vida solitária do ermo que o santo homem atanto louvava, e comecei a dizer ao Senhor Deus:
— Amerceia-te de mim, Senhor, que eu sou enfermo e fraco. Senhor, dá-me saúde, que as forças da minha alma e do meu corpo são torvadas. Senhor Deus, adereça a minha carreira ante a tua face.
122. Então teve mentes em mim o glorioso varão, e começou de me falar nesta guisa:
— Ó pecador, que fazes no século, tu que és maior que o mundo? Quanto tempo te apertam e te apertam as sombras das casas e das moradas das vilas? Quanto tempo te há de ter preso e encarcerado o cárcere das fermosas cidades?
123. Sê ligeiro para te partires do século. Não te detenham nem te lembres das riquezas. Que o ermo paga-se muito dos nus e despejados. Demanda primeiro o reino de Deus, e todas as outras coisas necessárias haverás. Assaz é rico aquele que com Jesus Cristo é pobre. Que fazes na morada da cidade, homem delicado, que desejas ser cavaleiro de Jesus Cristo? Como lidarás na sua batalha espiritual, se tu não és usado às asperezas e trabalhos que os cavaleiros hão nas guerras e nas batalhas?
124. Tem mentes que o imperador celestial há de vir nas nuvens do céu, armado para lidar contra o mundo, e a espada aguda de ambas as partes que sai da boca do mui alto rei e talha a qualquer que acha, ante si; e tu, não sendo usado para lidar, queres sair da câmara em que vives viçoso, para a az da batalha, e da sombra para o sol. Certamente o corpo, que há acostumado a camisa e a saia, não pode sofrer o cargo da loriga; e a cabeça, que há usado o pano delgado, não sofre a capelina; e a mão, que é mole porque nunca usa trabalho, muito se agrava com as luvas duras do ferro.
125. E lembra-te do dia quando foste feito cavaleiro novel de Cristo, no dia do teu batismo, em que foste soterrado com Ele, e que o teu adversário se esforça de matar Jesus Cristo no teu coração. Não sei qual adoba ou qual prisão te embarga. Para mentes que o teu adversário, que é o diabo, assim como leão bravo e rugidor, anda em redor de ti, assediando-te para te tomar e destruir. E tu, coberto da sombra da árvore espessa, jazes em sono mole, para te roubar o diabo, que te faz mil enganos. E tu, mal-aventurado, pensas que és vencedor, enquanto és cativo e roubado e tomado por presa deste cruel leão.
126. E tu, que és cristão, porque hás coração temeroso? O filho da Virgem não houve lugar em que acostasse a sua cabeça; e tu queres morar em grandes casas e em amplos paços; e tu, que és herdeiro dos céus, se quiseres, com Jesus Cristo, não atendas as heranças e as herdades do século, nem queiras crer pela vida do século, nem queiras ser seguro, posto que seja tão assossegado o mar deste mundo como água do pego; que este grande campo deste mundo muitos montes tem encerrados em si dentro; que dentro é o perigo e dentro é o inimigo.
E porém te cumpre alçar a vela com sinal da cruz e sair-te deste mundo, que o assossego dele tempestade é. Pois vai-te ao porto seguro da vida do ermo.
127. Por ventura te espantas do ermo porque é só e mui apartado; mas tu, anda com a tua mente pelo paraíso, e quantas vezes subires no céu com a tua cogitação, tantas vezes te parecerá que não estás em deserto; e posto que padeças no ermo mínguas e tribulações, para mentes que diz o Apóstolo: “Não são dignos nem iguais em merecimento os padecimentos deste século à glória que será mostrada em nós”. Muito és tu delicado, se queres aqui haver prazer com o século e depois reinar com Jesus Cristo. Virá o dia da morte; bendito é aquele servo que o Senhor achar vigilante.
128. Quando eu, mesquinho pecador, ouvi isto que o varão glorioso dizia, disse:
— Senhor Deus, amerceia-te de mim e vê o meu abaixamento e levanta-me das portas da morte, que me não cative o diabo, assim como leão, nem roube a minha alma, que não há aí quem me faça salvo, senão tu.
E respondeu a mui gloriosa donzela e disse:
— O Senhor Deus te ouça e cumpra a tua petição no dia da tribulação, e o nome de Deus te defenda de todo mal, que o Senhor Deus é brando e manso e de muita misericórdia àqueles que o chamam.
129. Então disse a espantosa dona:
— Justo é o Senhor Deus e o seu juízo é muito direito e Ele é muito bom e é mui doce àqueles que são de direito coração. E porém tu, pecador, trabalha-te de servir ao Senhor Deus em temor, e achega-te a Ele com tremor, e aprende a disciplina, por tal que se não assanhe o Senhor Deus contra ti e pereças da carreira direita, quando se acender toste a sua sanha. Bem-aventurados são aqueles que hão fidúcia n'Ele pelas boas obras que obraram e a boa vida que hão feita.
130. Quando eu, mui mesquinho pecador, ouvi isto que a dona espantosa dizia, fiquei mui triste e com mui grande temor, em guisa que não pude tornar palavra, senão tão somente em meu coração dizia a Deus:
— Senhor, amerceia-te de mim segundo a tua misericórdia mui grande.
E logo a mui fermosa donzela me chamou e fez-me ser aos seus pés e disse-me:
— Pecador, sê forte e obra como varão, e o teu coração seja confortado, e sofre e espera o Senhor Deus, que toda a terra é cheia e comprida da misericórdia do Senhor.
E tanto que isto ouvi, logo fiquei confortado com boa esperança, porém o temor não se partia do meu coração.
