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Daniel Vidal (DVPE) – A Pérola evangélica, alter ego - sed alter

DVPE A mística de A Pérola Evangélica, em seu princípio instituinte, rejeita todas as delongas do conceito e os deleites da certeza interior. A experiência de que ela nos fala, e que explica seu eco hoje, trata precisamente do desafio mesmo de todos os tempos sociais da modernidade: na estrutura ou anatomia da alma, nesse espaço interior onde se forjam as erradicações mais radicais de toda qualidade e vontade, nesse fundo nu de toda emoção e presença, de toda herança e paixão, ali vem a seu cumprimento a certeza do sujeito, sua afirmação, sua assunção. Se o sujeito místico é de fato essa aniquilação sem resíduo da criatura, é preciso, a alto custo, tirar todas as consequências. E A Pérola é esse enunciado após o golpe terrível do nada, após essa razão infernal, após esse saque. Desprovida, reduzida à pobreza, desidentificada, a criatura advém como sujeito. Isso quer dizer que ela se extingue como vetor de valor e deixa limpo o espaço lógico para a invenção daquilo que aqui se chama sujeito, pois subtraído a tudo o que se funda como mundo, como fórmula do século, como postura de agir e padecer. Recuo, ablação, desconto. O sujeito jaz nessa falta. Convém a essa falta, ele é sua declinação, sua gramática, sua lei. Essa lei é esse nada do qual A Pérola diz magnificamente a consonância exata com esse nada que é seu deus. E sabe-se de que capacidade catastrófica esse dizer místico é tecido: essa catástrofe, essa reviravolta, essa inflexão da ponta extrema de uma alma em luta com sua própria gênese, é condição do sujeito enfim levado a sua fórmula inicial — aquilo que sustenta sua razão de decair uma vez mais, esta última, depois que todas as coisas e circunstâncias conheceram declínio radical. O sujeito de A Pérola é essa instância vazia que suporta todo o peso de um nada longamente trabalhado na mística renana. Ele é essa experiência essencial que assume todos os desertos da alma, todos os silêncios, todas as cinzas. O sujeito é esse fundo do qual a mística não cessa de clamar a urgência e o impossível dizer, e que A Pérola entrega em seu enunciado como espaço de liberdade súbita e nova. Vacuidade do eu, suspensão decidida do mundo e de suas consequências — assim se cumpre enfim em A Pérola o itinerário da alma em sua última estrofe. Mas por que essa falta global, essa disjunção de moradas multiplicadas do corpo, essa falha das atribuições sociais, essa deserção generalizada das vontades e tensões próprias de toda criatura? A mística diz que assim Deus pode vir habitar essa alma nua e simples, devolvida à sua origem, à sua unicidade, à sua virgindade principial. A Pérola diz também isso, que é necessária uma alma desnuda para que seu deus faça dela seu abrigo, pois uma é então a possibilidade do outro, e pois esse deus e essa alma, chegados a sua fusão completa, passam à indistinção. Mas em A Pérola ouve-se outro enunciado, tão perturbador que sem dúvida teria sido fácil surpreendê-lo em qualquer outro dizer místico, se não se corresse o risco, ao dizê-lo, de quebrar de vez toda crença religiosa. Esse outro enunciado, fazendo a mística chegar a seu ponto de exato incêndio: não há sujeito assim definido como aniquilação da criatura, mesmo ao risco de um deus, senão para ilimitar seu último depósito e se disseminar por todo o espaço assim recém-conquistado pelo próprio processo dessa disseminação. Eu sou, desde que, reduzido a esse nada que foi de meu desejo antes de ser destino sem medida comum com esse eu que fui, me resolvo em relações infinitas com todo outro. O sujeito é essa expansão doravante sem fronteiras de um espaço de absoluta interioridade como instância de alteridade. Como injunção de alteridade. A mística é essa empresa obstinada de desencantamento do mundo, essa obra imoderada de partilha do sujeito como fundamento de toda subjetividade e de toda a paixão do outro que daí decorre. De toda sua necessidade.

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