Boosco Deleitoso I-IV
BOOSCO DELEITOSO — PARTE I — CAPÍTULO IV
20. Depois que o meu glorioso guiador, anjo de Deus, me houve dito isto, roguei-o que me guiasse e encaminhasse em tal guisa, que pudesse achar consolação de minhas tristezas e remédio de meus pesares e coitas e tribulações da minha alma e do meu coração. Então me tomou pela mão e levou-me por um caminho estreito, que ia por aquele deserto, e era todo coberto de ervas com flores mui formosas, que nasciam por ele; mas, entre as ervas e as flores, havia espinhas mui agudas e pedras miúdas, que me faziam grande dor nos pés; pois, como quer que eu ia calçado, pouco me valia a calçadura contra o pungimento e a dor, que sentia das espinhas e das pedras agudas; e outrossim os ramos das árvores me faziam muito nojo no rosto e em todo o corpo, pois elas eram muitas e mui espessas e mui chegadas à carreira por que íamos; e haviam espinhos mui agudos, que me pungiam mui duramente.
21. Mas, com isto, havia grande consolação na boa esperança do anjo e na vista das flores, que eram mui graciosas e de mui precioso odor, e outrossim nos mui formosos frutos, que estavam nas árvores entre aqueles espinhos. E aquele mancebo ia comigo mui alegre e não lhe faziam nenhum embargo nem nojo as espinhas. E assim andamos por espaço mui longo e saímos daquela carreira e achamos um prado mui formoso e em meio dele andava uma dona mui aposta, mas que a sua catadura era mui espantosa, como quer que era mui formosa, e era vestida de vestiduras de duas cores, a metade de cor preta e a outra metade de cor alva, e em sua cabeça uma coroa de ouro com muitas pedras preciosas, que chamam berilos; e ela tinha uma regra mui direita em uma mão.
22. E eu perguntei ao anjo quem era aquela dona tão formosa e tão espantosa. E ele me disse que era Justiça, que é mui espantosa aos maus e mui graciosa aos bons. E porém a sua vestidura é de duas cores. A cor preta demonstra a tribulação e a dor, que a justiça faz padecer aos maus; e a cor alva demonstra o prazer e o galardão que ela dá aos bons, e a pedra preciosa que tem na coroa, que há tal propriedade que queima a mão do homem que a tiver apertado, mas que é graciosa à vista, demonstra que a justiça queima os maus corrigindo-os e faz prazer aos bons; e a regra direita que tem na mão significa a obra da justiça, que dá a cada um direitamente o que seu é.
23. Quando eu isto ouvi, fiquei os joelhos em terra e roguei à dona que me desse consolação e remédio em minhas tribulações. E ela me catou de mui espantoso semblante e disse-me:
— Homem coitado, não te compra o meu remédio, pois tu hás mister misericórdia, e eu sou justiça, que te devo dar galardão segundo tuas obras, que tu obraste em muitos pecados e em muita malícia e preguiça de bem-fazer.
24. E então me tomou o anjo pela mão e levou-me adiante, e andamos muito por outro caminho, tal como o primeiro; e chegamos a outro prado mui formoso; e naquele prado estava uma donzela mui formosa e mui delicada, e tinha na cabeça uma coroa de ouro com pedras preciosas, a que chamam topázios; e suas vestiduras eram brancas, e em sua mão trazia uns açoites mui sutis de cordas, com que os servos de Deus fazem disciplinas.
25. E esta donzela estava encostada em um estrado mui formoso como se fosse fraca. E perguntei ao anjo que donzela era aquela; e ele me disse que era a Temperança e que, porque a pedra topázio presta para os movimentos da luxúria e faz fria a água quente, se a deitam nela, porém é posta na coroa da temperança, que dá remédio ao fervor da luxúria; e outrossim porque a temperança faz o homem magro e delicado, porém é esta donzela assim delicada e portanto está encostada, com fraqueza que há por razão da abstinência; e tem aqueles açoites em sua mão, porque a temperança quebranta e atormenta a carne; e as suas vestiduras são todas brancas, porque a temperança não requer senão coisas simples e sem outras misturas.
26. E então roguei àquela donzela mui humildosamente que me acorresse com sua ajuda; mas ela me disse que o não faria, porque eu lhe havia feito tantas injúrias com sua inimiga mortal, que é a glutonaria, e com outros pecados seus inimigos, e que me não ajudaria nem poderia ajudar, em tal guisa me via afeiçoado com os seus contrários.
27. Desde aí, tomou-me o anjo pela mão e andamos outro mui grande caminho, bem tal como o primeiro, e chegamos a uma torre mui alta, e estivemos ao pé dela; e em-cima dela estava uma dona assaz formosa e aposta e bem composta de seus membros, e tinha em sua cabeça uma coroa de ouro e nela encastoadas muitas pedras preciosas, que chamam calcedónias; e suas vestiduras eram de cor preta mui luzente e mui formosa, com muitas misturas de outras cores; e em a sua mão um escudo de ouro com uma cruz vermelha.
28. E perguntei ao anjo:
— Quem é aquela dona?
E ele me disse que era Fortaleza; e porém em sua coroa eram pedras calcedónias, que há virtude de fazer o homem vencedor nos pleitos e nas lides, assim como faz a virtude da fortaleza, que faz o homem vencedor nas lides espirituais. E as vestiduras pretas e misturadas demonstram que a fortaleza recebe e consume todas as contrariedades e injúrias que lhe sejam feitas, assim como a cor preta consume em si todas as outras cores; e as misturas demonstram os muitos trabalhos que sofre aquele que há o coração forte; e o escudo demonstra que a fortaleza empuxa de si os dardos das tentações do inimigo.
29. E então roguei àquela dona que me ajudasse, e ela me respondeu:
— Homem fraco e de pequeno coração, como te ajudarei, que tão quite foste e és sempre de mim e tão afastado, como da cima desta torre até onde estás? E porém vai-te tua carreira.
30. E depois disto, começamos a andar, eu e meu guiador, e andamos outro mui grande caminho e mui áspero; e chegamos a uma tenda mui rica e mui formosa, que estava em um grande campo, e o vento dava nas portas da tenda e abria-as; e eu tive mentes dentro, e vi estar uma dona em uma cadeira, e era mui formosa e parecia que estava mui cuidadosa, e em sua cabeça tinha uma coroa de prata e nela eram encastoadas pedras preciosas, que chamam celidônias; e suas vestiduras eram verdes-escuras, e em sua mão uma vara de um lenho mui formoso e bem lavrado.
31. E eu perguntei ao meu guiador quem era aquela dona, e ele me respondeu que era uma virtude que há nome Prudência, que faz o homem sábio e percebido naquilo que há-de fazer para salvar sua alma, e o adereça como deve em todas as obras que há de fazer. E porém está assim cuidadosa e tem coroa de prata, que é metal de grande som, porque a prudência, por ensinança de sabedoria, faz aos homens haver grande fama; e as pedras celidônias há virtude de fazer os homens que as trazem bem falantes e graciosos e idôneos para toda coisa; e bem assim faz a virtude da prudência. E as vestiduras verdes-escuras mostram que ela é graciosa e aprazível e escura de entender em algumas partes; e a vara, que tem na mão, mostra que ela rege e adereça todos os juízes.
32. Então lhe pedi por mercê que me adereçasse em tal guisa que achasse remédio de minhas tribulações. E ela me respondeu que assaz me ensinara e percebera por muitas vezes, e eu nunca quisera tomar seu ensino, e que era já cansada em me ensinar, e porém que me fosse à boa ventura, pois não faria nisto mais. Então eu, mui triste e coitado, fiquei mui sem conforto e estive em ponto de me tornar donde saíra. E o meu bom guiador me tomou forçosamente e levou-me consigo, dando-me sempre boa esperança.
33. Então andamos um caminho mui longo e mui fragoso, em que passávamos por muitas águas e por muitos passos perigosos; e eu sentia tudo mui fortemente e ia mui triste e não havia outro conforto senão a companhia do bom guiador e cantares de aves, que cantavam mui docemente por aquele deserto; e ainda havia aí muitas animálias bravas, de que eu havia mui grande espanto; mas o meu guiador me defendia, que me não comessem, mas me mordiam às vezes.
