Plard (HPAS) – Angelus Silesius, o ser humano
HPAS
O homem tem, como todas as outras criaturas, sua essência fundada no Verbo divino (I, 73, 89); e nisto ele em nada difere delas: ele é igual no ser à pedra como ao Serafim, tendo em si uma “eternidade inata”, independente de sua vontade (V, 235). Como o resto do mundo também, ele saiu de Deus: “ellige creaturaliter” (II, 158) — e vive no tempo. Mas logo depois de constatar que “a alma vem de Deus”, portanto não está inteiramente nele, Silesius acrescenta: “Não deveria ela, então, retornar a Ele?” (II, 158.) Assim, penetra em seu pensamento a liberdade da vontade humana, motor de toda a sua mística, início do movimento que reconduz o homem e o mundo a Deus, faculdade que fecha o ciclo da criação, na verdade um retorno do poder divino sobre si mesmo, e não uma espécie de raio que se perderia cada vez mais nas trevas, sempre mais longe, como o é nas doutrinas neoplatônicas da emanação 1); ela aplica à alma humana esta categoria do possível que domina o pensamento religioso de Angelus Silesius. O homem é livre; assim se explicam os surpreendentes dísticos onde Angelus Silesius afirma que ele é superior aos anjos (II, 44; III, 121, 203) como, a propósito do mundo, ele afirmava que o tempo é superior à eternidade: pois o tempo é a possibilidade de um retorno a Deus, e o homem pode se tornar “na própria terra, um rei, um imperador, um Deus, e o que eu quiser”; esta é sua “nobreza suprema” (IV, 146). O Anjo está como que fixado em sua essência; os Tronos no repouso, os Querubins na contemplação, os Serafins no amor; o homem pode ser os três ao mesmo tempo (IV, 108) e muito mais: ele penetra em espírito até um desconhecido insondável para o Querubim, ele pode se tornar o que são os Serafins, enquanto estes nunca serão o que ele é (I, 284; IV, 145). Sua nobreza não está, portanto, em seu ser real, mas em seu ser possível; e sua escolha é inteiramente livre: ele está colocado na “encruzilhada” do mundo, atraído por duas vontades contrárias, a do bem e a do mal, mergulhado em uma fera da qual ele pode sair (I, 225), tendo em si tanto o céu quanto o inferno (I, 145; III, 92): O Homem A maior maravilha é, no entanto, o homem sozinho, Ele pode, como faz, ser Deus ou Demônio.
Der Mensch Das s grôste Wunderding ist doch der Mensch allein : Er kan, nach dent ers macht, Gott oder Teufel sein (IV, 70). Silesius chama de “eleger” (erkiesen) o ato pelo qual o homem se transforma em Inferno ou em Céu já em sua vida terrestre; ato absolutamente voluntário, que fundamenta a exortação constante de sua mística: seja eternidade, retorne à sua essência, torne-se Deus; ato sobre o qual Deus não tem nenhum poder determinante; pois, embora seja necessária sua graça para que a alma retorne a ele, Deus não tem poder para forçar o homem a seu novo nascimento, nem para escapar dele (III, 80, 146; V, 98). Não apenas o céu e o inferno são interiores ao homem (I, 82, 295, 298; V, 52), mas ele pode “atualizá-los” (herfürwürken; IV, 183) a cada momento de sua vida; basta que ele decida seriamente para ser tão santo e justo quanto seu Criador (II, 210; cf. II, 128, 155; IV, 33). Ele repousa, de certa forma, em um estado de equilíbrio perfeito que o menor movimento pode romper para uma queda ou para uma ascensão; e mesmo, parece que Silesius hesitou algumas vezes a este respeito, e considerou a possibilidade da salvação como mais acessível ao homem do que a da condenação (I, 230). Mas trata-se também de uma escolha necessária, inelutável: não sair de mim é já transformar-se em “uma Babel”, “a morada onde o diabo faz seu sabá para a eternidade” (I, 226): tudo é reconduzido à única potência da vontade humana, que Silesius glorifica em termos que quase conviriam à Onipotência: e, de fato, não é ela mais forte que a Onipotência, mantendo-a em xeque se quiser, ainda que ela tenha “criado o mundo e possa mergulhá-lo no nada” (III, 80)? A vontade perde. A vontade te faz e perdido, e encontrado. Teu querer te liberta, e te acorrenta e te prende.
Der Wille macht verlohren seyn. Der Will macht dich verlohrn, der Will macht dich gefunden, Der Will der macht dich frey, gefässelt und gebunden. (VI, 82.) Parece que Deus assiste sem intervir — Angelus Silesius dirá mesmo indiferente (V, 16, 56) — à condenação da criatura que é sua própria obra. Ele não se desvia de forma alguma do pecador: ele é como o sol cujos raios iluminam igualmente todos os seres; assim a graça de Deus atinge todas as criaturas, mesmo os demônios (VI, 40, 41; I, 112; V, 72); ninguém pode dizer que lhe faltou, pois “Deus não se desvia, mas o pecador se desvia de Deus” (V, 94). Silesius toma aqui o pecado em um sentido essencial, pois diz paradoxalmente em outro lugar que “Deus não pode condenar ao tormento eterno e à morte o pecador que não se desvia de Deus” (V, 138). O pecado de que ele fala é, portanto, um movimento total da vontade humana livre, que ele define em termos quase secos de tão precisos: “nada mais, senão o fato de um homem desviar seu rosto de Deus e se orientar para a morte” (IV, 69) (V. 72. 94. 138; cf. I, 129). Mas não é um movimento puramente negativo. Quaisquer que sejam as formas terrestres deste pecado, sua raiz é sempre a mesma: “die Ichheit”, o eu odiável, “die Eigenheit”, causa de todo mal (V, 186). O homem se recusa a reconhecer-se ligado a Deus, o que implica a humilde consciência de que sua perfeição não é deste mundo, e se coloca como seu próprio Deus. Silesius o compara em uma bela imagem ao fogo-fátuo que queima por si mesmo, enquanto o homem bom, como uma estrela, recebe sua luz do Senhor; ele o compara ainda a Narciso que se afoga por amor de si mesmo (IV, III; V, 69). Tal é o poder desta vontade própria, que se Cristo tivesse tido a menor parte dela, também teria sido arrastado para a queda, e, inversamente, se o diabo pudesse sair de seu eu, ver-se-ia imediatamente perto do trono de Deus (V, 32; I, 143). É ela, e não os demônios, que precipita o homem no abismo (V, 144). Ela é tanto mais perigosa quanto é hábil em se disfarçar: o homem não sabe que é a si mesmo que ele busca; mas o amor do mundo, o amor do determinado, do “algo”, a própria ideia do “teu” e do “meu” 2) são máscaras de sua condenação. O pensamento de Silesius a este respeito é tão profundo de um ponto de vista teológico quanto filosófico: “Teu desejo é teu ídolo” (I, 75); enquanto crês amar outra coisa que não a ti, é teu desejo que adoras, e é por esta razão que o homem, por mais santo que seja, ainda é um idólatra se deseja outra coisa que não Deus. Talvez isso permita explicar a ideia, já assinalada, de que o amor de um Deus definido ainda é imperfeito: corre-se sempre o risco de manter o amor do homem por si mesmo, fonte de toda queda.
