angelus_silesius:plard-hpas-angelus-silesius-adao

Plard (HPAS) – Angelus Silesius, Adão

HPAS

“É preciso que Adão morra e que Cristo viva em nós”; este princípio era comum já nos círculos böhmistas, mas Angelus Silesius parece ter-lhe atribuído um significado particularmente profundo; este desfecho de seu pensamento só aparece relativamente tarde em sua obra, para o final do livro V. De fato, o que definimos como a morte mística é ainda apenas um limiar e prepara o homem apenas para o nascimento de Deus nele. Toda morte leva a uma nova vida: assim, morrer para o humano é nascer para o divino, ou, como ele diz, morrer para si é preparar-se para conceber Cristo. Tal é, de fato, a forma que este tema assume nos primeiros livros: está ligado à mística do Natal, da qual falamos anteriormente, e a alma é então comparada ao presépio (I, 53); Silesius lamenta não ter sido o feno e a palha onde o Menino foi depositado em seu nascimento (III, 4; cf. I, 61): e há, sem dúvida, uma parte de jogo de espírito nestas comparações, como muitas vezes na simbólica da vida de Cristo, expressão daquela da alma, tal como Silesius a desenvolve. O quarteto III, 8, já marca um aprofundamento deste tema: aqui, a alma não é mais comparada a um presépio ou à palha, objetos que dificilmente podem representá-la senão superficialmente — mas à noite de Natal, e a noite ali tem nitidamente o sentido que Eckhart dá a esta palavra: A abençoada quietude da noite. Vê, na noite tranquila Deus nasce como uma criança; E novamente se recupera o que Adão perdeu; Que tua alma seja tranquila, e noite para as criaturas, Deus se faz homem em ti, e tudo é restabelecido.

Die Seelige Nachtstille. Merk, in der stillen Nacht wird Gott ein Kind gebohrn, Und widerumb ersetzt, was Adam hat verlohrn : Ist deine Seele still, und dem Geschöpffe Nacht, So wird Gott in dir Mensch, und ailes wiederbracht (III, 8).

Frequentemente, a relação nupcial da alma e de Deus é evocada para explicar o nascimento de Cristo nela: pura serva de Deus, virgem de todo contato com a criatura, como a Virgem Maria, ela é tocada pela essência de Deus e concebe “o filho da eternidade” em si. É o que Silesius chama de “concepção espiritual”, e nela ele une a exigência de uma ascese purificadora, a união com Deus e o nascimento de Deus na alma, os três momentos importantes da vida mística (II, 101-105; II, 112; III, 23, 33). Mas é somente em quatro dísticos do livro V 1) que essa ideia do nascimento espiritual de Cristo recebe toda a sua importância. Com a rigorosidade do paradoxo que caracteriza seu espírito, Silesius levou sua ideia o mais longe possível; de simbólica, a nascimento de Cristo na alma torna-se literal; é o próprio Filho, a segunda pessoa da Trindade, o Verbo do mundo, que nasce em mim. Ele chega assim à concepção de uma “tripla nascimento” de Deus: uma é carnal, no tempo, na Virgem Maria; a outra interior ao homem e espiritual; a terceira em Deus mesmo, e eterna. Mas para que não sejamos tentados a conceber o segundo e o terceiro nascimentos como se sucedendo no tempo, ele indica claramente, por um lado, que o nascimento de Cristo — em Deus e em mim — está fora do tempo, portanto dura eternamente; por outro lado, que o nascimento espiritual é um único e mesmo ato de Deus com o nascimento eterno. A simetria entre eles é perfeita: um cria o mundo e o homem, o outro reconduz o mundo e o homem a Deus. Pois o homem divinizado é o Salvador do mundo, e sua nova vida assume um valor cósmico de redenção: “Tudo corre para ti, para chegar a Deus”, diz ele em termos que lembram os de Eckhart 2). O nascimento espiritual permite compreender como o homem pode ser “o salvador das outras coisas” (II, 66), ou pelo menos entrever que o ciclo da criação se fecha assim. É preciso dizer, aliás, que esses dísticos do livro V são a única passagem onde tal concepção aparece claramente, mas a ideia do retorno de tudo em Deus domina o livro inteiro, sem ser explicada em todos os lugares. Uma expressão do dístico V, 252, ainda deve ser destacada: é a condição desse nascimento: “Homem, se te prestares a isso…” Ela levanta a difícil questão da parte da graça nessa redenção cósmica 3). Silesius diz em algum lugar que Deus se dissimula quando deixa o santo crer que sua salvação é obra sua: “porque Deus lhe deu a força e a graça, ou porque ele mesmo o fez por seu espírito, nele, o homem” (II, 199); pareceria haver aqui uma ação única de Deus; mas o apelo constante à vontade, o papel eminente que ela desempenha no livro, outros dísticos também contradizem essa ideia. Silesius se deteve finalmente no sinergismo: Um não pode sem o outro. Dois devem realizá-lo: eu não posso sem Deus, Deus não pode sem mim: que eu escape da morte.

Eine kans nicht ohn dass andre Zwey müssen es vollziehn : ich kans nicht ohne Gott, Und Gott nicht ohne tnich : Dass ich entgeh dem Todt. (V, 48.) Deus criou o primeiro Adão sozinho, o segundo Adão — isto é, Cristo, a nova criatura, na terminologia paulina — com a ajuda do homem. Mas de que ordem é sua graça santificante? Dissemos que o pecador é inteiramente responsável por sua queda, pois se desvia de Deus, e que, inversamente, a salvação consiste em voltar-se para Deus. Em seu período mais ortodoxo, o do livro VI, Silesius aplica à graça a imagem do sol 4); ele irradia sua graça como o sol sua luz; aquele que permanece nas trevas é culpado, é ele quem vira as costas para Deus. A graça de Deus em Silesius é o oposto de uma vocação pessoal; às dúvidas sobre a eleição, ele responde com o convite a renascer de Deus, portanto, com um apelo à vontade humana. Deus derrama sua graça sobre todas as criaturas, mesmo sobre os demônios; mas o homem, se nada pode sem ela, é, no entanto, livre para se abrir ou se fechar aos raios divinos. Assim, Deus não deixa de ter uma parte essencial no processo de redenção que reconduz a ele o homem e o mundo; é ele quem gera Cristo na alma, está na origem da “nascimento espiritual”, torna possível por sua ação a divinização do homem. Mas sua graça é uma condição permanente e invariável da salvação, cuja atualidade depende da vontade humana; se Deus está no centro da criação do mundo, o homem, “outro Eu” 5) de Deus, está no centro de seu retorno, e da mística de Angelus Silesius.

1)
V, 249-252; cf. já II, 188. A ideia é clássica entre os escolásticos: cf. Nicolau de Cusa, Dies sanctificatus, e São Tomás, Sermão na Natividade do Senhor: “Triplex est Christi Nativitas: eternalis in patre, temporalis ex matre, spiritualis in corde.
2)
Cf. ainda II, 66, e Eckhart: “Todas as criaturas se portam em minha razão para serem racionais em mim. Eu sozinho preparo de novo todas as criaturas para Deus” (Pfeiffer, p. 180, l. 23). “Ele as elevou em sua razão e deu glória a Deus nelas, e as entregou a Deus em sua natureza insondável, e a si mesmo com elas, na medida em que ele é um ser criado” (Büttner, p. 105).
3)
No dístico II, 125, o verbo “seyn angeglommen”, aplicado à vida de Deus no homem, indica bem que há ali um processo em seu início. E o título de II, 126: “A Graça torna-se Natureza”, está em conformidade com a escolástica mais clássica. Cf. também V, 35.
4)
VI, 38, 42, 87, e supra, a doutrina de Silesius sobre os demônios e as causas da condenação. Cf. I, 52.
5)
I, 278; II, 45; II. 201; “O homem e o outro Deus.”
/home/mccastro/public_html/cristologia/data/pages/angelus_silesius/plard-hpas-angelus-silesius-adao.txt · Last modified: by 127.0.0.1