angelus_silesius:kolakowski-lkce-angelus-silesius-ser-humano-como-espelho

Kolakowski (LKCE) – Angelus Silesius, ser humano como espelho

LKCE

Existem, no entanto, passagens que contradizem essa alternativa. Elas sugerem que o homem não é uma degenerescência inconcebível da divindade, nem um princípio demoníaco autônomo no Ser, mas sim uma exteriorização necessária de Deus, que de alguma forma o enriquece. Essa exteriorização, ao confrontar e opor-se ao Criador, apresenta-se como o único espelho de sua perfeição, indispensável para que essa perfeição se revele ou tome consciência de si. Silesius expressa isso com clareza: “Eu sou o outro Eu de Deus, é em mim que ele encontra o que lhe será semelhante e análogo por toda a eternidade” (I, 278), ou ainda: “Eu porto a imagem de Deus: se ele quiser se contemplar, isso só pode acontecer em mim e no que me é semelhante” (I, 105). Essas passagens nos permitem uma interpretação diferente da ideia de que Deus só se torna “algo” no homem. Esse “algo” não seria uma degradação ou uma queda do absoluto na finitude, mas sim uma emanação inelutável. Por meio dela, o absoluto, ao criar um “não-eu” contrastante, torna-se uma super-divindade ou uma divindade que se conhece a si mesma, enriquecida pela alienação-espelho. Contudo, isso implica um reconhecimento tácito do absoluto de que ele não é o absoluto em sua completude, que ele só se cria por meio de operações exteriorizantes. A deificação, o retorno a Deus e a identificação ontológica pela passividade ganham um novo sentido: não é um mero retorno ao estado original, mas a assimilação pela divindade de sua própria natureza que se tornara estranha, elevando-a a uma forma mais alta de perfeição através de um movimento circular. Esse esquema dialético, com raízes em Scotus Erígena e Mestre Eckhart, não só eleva o homem a uma posição vertiginosa como uma fase da evolução de Deus em direção ao seu autoaperfeiçoamento, mas também exige um novo entendimento do mal. Se a individualidade é o mal e a queda de Deus se concretiza no “eu” humano, o mal surge como um estágio evolutivo necessário do absoluto. Deus precisa “cair” nas criaturas para, então, erguer-se como um super-Deus. A santidade deve mergulhar no inferno da individualidade para retornar centenas de vezes mais santificada. Deus se encarna na existência temporal e só depois de descer aos infernos retorna a si. Na mística de Silesius, o simbolismo da vida de Cristo é articulado de forma abstrata.

/home/mccastro/public_html/cristologia/data/pages/angelus_silesius/kolakowski-lkce-angelus-silesius-ser-humano-como-espelho.txt · Last modified: by 127.0.0.1