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Gorceix (BGFA) – Angelus Silesius, deificação

BGFA Os pontos de divergência que encontramos na interpretação e apreciação da obra e do autor vêm certamente, em primeiro lugar, do fato de que, para julgá-los, os isolamos na maioria das vezes de seu tempo, não os recolocando suficientemente na evolução das correntes místicas da Alemanha do século XVII. A crítica teria sido então mais fortemente impressionada por aquilo que se pode verdadeiramente, nesta segunda metade do século XVII, chamar: o retorno da tradição mística Reno-Flamenga. Apesar dos ecos das espiritualidades estrangeiras, apesar das influências destrutivas do tempo, as estruturas e os temas especulativos que dominaram a história da espiritualidade ascética e contemplativa germânica são, em Johannes Scheffler, sempre capazes de traduzir o diálogo do homem e de seu Deus e a problemática de sua união. Quando Louis Cognet escreveu que o misticismo nórdico, no século XVII, “deixou de ser criador” , ele devia pensar mais na França do que nas Alemanhas. Daniel Czepko e Johannes Scheffler infirmam essa tese. No autor do Peregrino, a tradição se despoja até das escórias com as quais havia se enrijecido na Teologia Germânica, e que não deixam de sobrecarregar os Monodisticha. Em pontos importantes, Johannes Scheffler a prolonga com fecundidade. Essa retomada e esse renascimento aparecem primeiramente na primeira parte da especulação mística, que concerne à teologia ascética. Se o silesiano tivesse sido influenciado tanto quanto nos dizem por Boaventura e Ruysbroeck, não teria ele destacado o que é fundamental tanto em um quanto no outro, a hierarquização, a gradação, a teologia das virtudes, dos dons e das bem-aventuranças no primeiro, a distinção dos dons do espírito santo, das três vidas, a vida ativa, a vida no desejo de Deus e a vida na contemplação no segundo? Certamente, poderíamos classificar o apanhado das virtudes preparatórias no Peregrino. A progressiva acentuação do papel do amor, notadamente a partir do livro IV, opera-se por uma oposição do amor e das outras virtudes, a humildade, a pobreza, a castidade, o que conduz a um escalonamento, a um balizamento. Essas intuições isoladas não levam, entretanto, se as agrupamos, a um esquema verdadeiramente organizado: onde colocar, por exemplo, o saber, de que fala V, 320, o repouso que evoca V, 363, o desprezo de si que V, 300 identifica ao verdadeiro amor? Além disso, essas tentativas de distinção aparecem apenas nos últimos livros. O que chama mais a atenção, em Scheffler como em outro fiel discípulo de Tauler, Valentin Weigel, é menos, no nível da teologia ascética, o ensaio de análise do que o desejo de síntese. Menos a vontade de esquematizar ou classificar do que o esforço sempre renovado de apreender em seu conjunto um movimento global, sem irisação conceitual. Os dísticos aparecem como a tentativa, sempre fadada ao fracasso, de buscar a expressão adequada que possa expressar o dinamismo vivo que conduz à união. É notável, por outro lado, que a descrição do caminho ascético evite, então, pelo menos até o último livro onde, desanimada, ela se fixa em alegorias e emblemas – o sábio, o pobre, o avarento, o louco –, a moralização edificante onde Daniel Czepko se demorava fácil e frequentemente. É sempre uma reflexão sobre os termos mais ricos da tradição germânica: a pureza e seu corolário, a limpidez, a doçura à qual se juntam a candura, a confiança, a humildade, a pobreza, a quietude que não está longe da ataraxia, do repouso, da calma, desse silêncio bem-aventurado (seliges Stillschweigen) de que fala I, 19. Todas essas atitudes se agrupam em duas temáticas. A primeira traduz o abandono pelo espiritual de tudo o que se refere ao eu, dos sentidos, é claro, mas também do conhecimento, da vontade – o livre-arbítrio é condenável –, de forma mais geral, dessa egoicidade (Selbheit ou Ichheit) de que falava a tradição. A segunda temática, que concerne à resignação aos infernos, o retorno à ingenuidade da criança e a imitação de Cristo, vem ilustrar o segundo momento, o aniquilamento necessário, a morte espiritual, a indiferença absoluta, a vacuidade que é dita semelhante a Deus (I, 159):

Quando te esvaziaste, as águas jorram tais De ti mesmo, assim como de fontes eternas. O abandono que conduz ao nada, a célebre Gelassenheit, é sair de si, entendamos sair do ser individual, particular, é também, em eco e por um movimento de retorno, de troca, por uma inspiração que segue a expiração, retorno a si, às fontes do ser individual, onde se realiza a coincidência com aquilo que é apenas na aparência o mais estranho e o mais exterior, Deus, o absoluto. Deus entra, portanto, em nós, certamente do exterior – “Quanto mais você sai, mais Deus entra” (I, 138) – mas ele jorra tanto do interior, do mais profundo do nosso ser. O gosto pela abstração separa tanto Johannes Scheffler de seus contemporâneos quanto Mestre Eckhart da mística dos claustros e dos Amigos de Deus. A sutileza do pensador e a delicadeza do poeta souberam, por outro lado, evitar o perigo ao qual a Teologia Germânica, por exemplo, não escapa: a secura e a pesadez do debate de ideias. A metafísica sabe unir-se à poesia, os termos mais complexos (Uber-Engelheit, por exemplo) conseguem não romper o frágil equilíbrio do alexandrino que exige a sucessão suave do tempo forte e do tempo fraco. A mesma tendência se encontra na descrição da segunda parte do itinerário místico, a da vida contemplativa. Os críticos frequentemente notaram a ausência de qualquer evocação de uma experiência extática e concluíram que o silesiano ignorava a dita experiência. Não vamos nos apressar. O que interessa ao autor do Peregrino não é o que hoje chamaríamos de aspecto psicológico da vida mística, mas as realidades supranaturais, metafísicas, no sentido primeiro, que se revelam e se traduzem nela. Pouco importam os balbucios da embriaguez, os delírios do sentimento, ou mesmo, como em Friedrich Spee e Catharina Regina von Greiffenberg, os exercícios espirituais do suspiro e do louvor. Tudo concorre para abordar não tanto a matéria quanto a forma contemplativas. A perpétua oposição entre Deus e deidade não é mais suficiente, quando se trata de apreender a deificação da qual nasce a bem-aventurança; forjemos o termo: sobre-deidade (die Uber-Gottheit):

O que se disse de Deus não acalma meu desejo; A Sobre-deidade sozinha é minha luz e vida (I, 15). Os conceitos tradicionais são incessantemente retomados, comparados, avaliados, rejeitados ou reabilitados, banidos ou prolongados, para traduzir a passagem do acaso à essência, do instante à totalidade, da multiplicidade à unidade, do tempo à eternidade, esse além dos modos, do amor, do nada, a ascensão à superessência (Uberwesenheit) (II, 145), a transformação, a transmutação (II, 256, überformt). Todo o arsenal escolástico ressurge em setores isolados, mas o pensador raramente se detém nele, percebendo muito rapidamente a imperfeição congênita das demonstrações. Nessa tentativa filosófica sempre retomada de uma tradução dos mistérios da deificação, é ainda a especulação desenvolvida por Mestre Eckhart no sermão Beati pauperes spiritu que lhe parece a mais satisfatória. Na união, o homem reencontra o que o dominicano chamava de “modo de nascimento eterno”. Ele se torna contemporâneo do ato da geração do Filho (I. 151) e do mundo. Ele reitera a união essencial que o unia a Deus antes da criação, antes de sua criação, antes da passagem da deidade a Deus, do abismo a Sião: “Eu era a vida de Deus”, diz claramente I, 73, referindo-se a João 1: o que foi feito era vida nele, “antes de ser nada”. Em suma, a união é o retorno às origens (Ursprung, I, 119), ela “realiza”, no sentido próprio, essa identidade que evoca I, 203:

Tornei-me o que era e sou o que fui Para sempre… A tradução especulativa não se contenta com termos abstratos. A grande tradição Reno-Flamenga também lhe entrega uma legião de símbolos, de referências a objetos e fatos naturais suscetíveis de dupla interpretação, real e ideal. O poeta do século XVII não elimina essas preciosas metáforas, mas sua discrição em tempos de barroco abusivo é ainda mais meritória. Nesse contexto, deve-se incluir a perpétua comparação do status do homem nascido uma segunda vez e do status do anjo: Johannes Scheffler se detém longamente nisso, retornando a isso muito frequentemente. Na união, de fato, atingimos essa “superangelicidade” que é a verdadeira “humanidade” (II, 44). O anjo vive eternamente os deleites da união, ele não pode, como nós, prová-los, apreciá-los, saboreá-los, porque ele ignora o que é, quando se está privado deles. Somos, afinal, mais agraciados do que o anjo: por isso, devemos amar como o serafim, dominar como o trono, contemplar como o querubim, para nos tornarmos Deus (III, 165 e V. 215). O Peregrino abunda em metáforas, algumas ainda abstratas (notadamente essas três notáveis meditações sobre o centro, a morada e o lugar, no confluente de Tauler, Jacob Böhme e Valentin Weigel), outras concretas: fonte, nascente, rio, mar; tempestades, raios; faíscas, chama, fogo, incêndio; leite e vinho, árvore e seiva, lírio e rosa, pérola, águia, ímã e aço, alaúde e flauta… Deve-se também enfatizar a notável presença da imagética alquímica, da comparação entre a transformação do chumbo em ouro a partir da dissociação dos três elementos paracelsianos: o enxofre, o mercúrio e o sal, e da única transmutação real, pela única tintura imortal, ou seja, Jesus Cristo crucificado.

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