Por que Jesus interroga? Compreenderam tudo isso? — Sim, disseram eles. Aquele que conhece o que há no coração dos homens, o Cristo Jesus, segundo o ensinamento que João nos deu a este respeito no seu Evangelho, não é porque ele ignora que interroga, mas porque escolheu de uma vez por todas a natureza humana e utiliza tudo o que lhe é próprio e em particular a interrogação. Não é de espantar que o Salvador aja desta maneira, já que também o Deus do Universo, se curvando aos hábitos do homem “como um homem se curva aos hábitos do seu filho”, faz perguntas, por exemplo quando ele diz: “Adão, onde estás?” e: “Onde está Abel, teu irmão?” E é fazer violência ao texto, sustentar aqui que não foi de forma interrogativa, mas afirmativamente que foi dito: “Compreenderam”, e pretender igualmente que é para apoiar esta afirmação que os discípulos lhe dizem: “Sim”. Além disso, quer ele interrogue ou que ele afirme, é necessário que ele diga não apenas: “isso”, que é demonstrativo, nem simplesmente “tudo”, mas “tudo isso”.
Os discípulos são escribas?
Parece, portanto, agora declarar que os discípulos se tornaram escribas para o reino dos céus; no entanto a esta afirmação se oporá o que é dito nos Atos dos Apóstolos nestes termos: “Vendo a segurança de Pedro e João e sabendo que eles eram sem cultura e pessoas comuns, eles se espantavam e os reconheciam como antigos discípulos de Jesus.” Perguntar-se-á, portanto, a este propósito: se eles eram escribas, como são, segundo os Atos, “sem cultura e pessoas comuns”? e se eles eram “sem cultura e pessoas comuns”, como é que o Salvador os qualifica muito claramente de “escribas”? Poderia se responder a esta questão dizendo ou bem que não são todos os discípulos, mas Pedro e João que são nomeados nos Atos “homens sem cultura e pessoas comuns”, e que havia outros discípulos aos quais se aplica, porque tinham compreendido “tudo”, a palavra: “Todo escriba” e a continuação; ou bem que se chama escriba todo homem educado pelo ensinamento da Lei segundo a letra, de modo que mesmo aqueles que são “sem cultura e pessoas comuns”, se eles são “guiados” pela letra da lei, são, dizem, escribas num certo sentido. E é sobretudo o fato dos ignorantes que não conhecem a interpretação alegórica e não compreendem o que tem relação com o sentido espiritual das Escrituras, mas se fiam na letra nua e tomam a sua defesa, de lhes dar o nome de escribas.
O escriba do reino dos céus
Também se interpretará da mesma maneira o “ai de vós, escribas e fariseus hipócritas”, dizendo que ele se dirige a todos aqueles que não sabem nada além da letra. A este propósito se buscará se o escriba da lei serve de modelo ao escriba do Evangelho, e se, a exemplo do leitor da Lei, que entende e expõe “o que está escrito de maneira alegórica”, o do Evangelho sabe, ao mesmo tempo que conserva a história baseada nos eventos, subir sem falso passo, até às realidades espirituais, de maneira a adquirir não os conhecimentos “dos espíritos do mal”, mas aqueles que são o oposto dos conhecimentos “dos espíritos do mal”, os conhecimentos do espírito do bem. Mas se torna “um escriba instruído do reino dos céus”, num sentido mais simples, quando, saído do judaísmo, se acolhe o ensinamento eclesiástico de Jesus-Cristo; num sentido mais profundo, quando, depois de ter aprendido os rudimentos graças à letra das Escrituras, se eleva até às realidades espirituais, chamadas reino dos céus. E é o encontro de cada pensamento, compreendido num sentido superior, confrontado com outros, posto em evidência, que é permitido entender como o reino do céu, de modo que aquele que possui em abundância o conhecimento que não engana, se encontra no reino da multidão dos céus assim definidos. Também se explicará num sentido alegórico o “Fazei penitência, pois está próximo, o reino dos céus”, como uma ordem aos escribas, ou seja àqueles que se atêm à letra nua, de converterem a sua maneira de entender e de acceder ao ensinamento espiritual transmitido por Jesus-Cristo, o Logos vivo, ensinamento chamado o reino dos céus. É por isso também que, enquanto Jesus-Cristo, o “Logos que é Deus e que está no princípio junto a Deus”, não vem habitar numa alma, o reino dos céus não está nela; mas, quando alguém está perto de poder acolher o Logos, dele se aproxima o reino dos céus.
E se há identidade nos fatos, senão na expressão, entre o reino dos céus e o reino de Deus, é evidente que àqueles a quem é dito: “O reino de Deus está dentro de vós”, se poderia dizer também: “O reino dos céus está dentro de vós”, sobretudo pela conversão da letra ao espírito, pois “quando alguém se converte ao Senhor, desaparece o véu que estava sobre a letra: e o Senhor é espírito”. Quanto ao verdadeiro mestre da casa, ele é ao mesmo tempo livre e rico; é rico, porque, a partir dos seus conhecimentos da letra, ele foi instruído do reino dos céus “em toda palavra” tirada do Antigo Testamento, e “em todo conhecimento” sobre o ensinamento novo do Cristo Jesus, e ele tranca esta riqueza no seu tesouro, juntando, pois ele é “instruído do reino dos céus”, “no céu, onde a traça não rói, onde os ladrões não arrombam os muros”. E é verdade que se pode assegurar, a respeito daquele que, segundo a explicação precedente, junta nos céus, que nenhuma “traça das paixões” pode atacar os seus bens espirituais e celestiais. “Traça das paixões”, eu disse, pois me apoio nos Provérbios, nos quais está escrito: “Como a traça na roupa e o caruncho na madeira, assim a tristeza rói o coração do homem”; de fato o caruncho e a traça é a tristeza que rói o coração que não coloca os seus tesouros nos céus, entre os bens espirituais; mas se alguém lá junta as suas riquezas, já que “onde está o teu tesouro, lá também está o teu coração”, é o seu coração que ele coloca nos céus e no seu coração ele diz: “Mesmo se um exército se puser em batalha contra mim, o meu coração não temerá.” Assim mesmo os ladrões de que o Salvador falou quando ele disse: “Todos os que vieram antes de mim são ladrões e bandidos”, não podem arrombar os muros para roubar o que foi juntado nos céus, nem tampouco o coração que se encontra lá e que, por esta razão, se exclama: “Ele nos ressuscitou e nos fez sentar com o Cristo, entre os habitantes dos céus”, e: “Para nós, a nossa cidade se encontra nos céus.”
O antigo e o novo
Mas já que “todo escriba instruído do reino dos céus é semelhante a um mestre da casa que tira do seu tesouro o novo e o antigo”, é evidente também que, ao se fazer o que se nomeia a inversão desta proposição, todo homem que não tira do seu tesouro o novo e o antigo não é um escriba instruído do reino dos céus. Precisamos, portanto, por todos os meios, tentar juntar no nosso coração, “ao nos consagrar à leitura, à exortação, ao ensinamento”, e “ao nos exercitar na lei do Senhor, dia e noite”, não somente os novos preceitos dos evangelhos, dos escritos apostólicos e do Apocalipse, mas também os antigos preceitos da lei “que possui a sombra dos bens vindouros” e dos profetas que profetizaram em pleno acordo com eles. Juntá-los-emos, quando “lermos e conhecermos”, e que, guardando a lembrança destas leituras, “compararemos as coisas espirituais com as coisas espirituais” no momento favorável, não das coisas que não têm nenhuma relação entre si, mas das coisas comparáveis que apresentam uma certa semelhança, o texto tendo o mesmo significado, quer se trate de pensamentos ou de preceitos, a fim de que “na boca de duas ou três testemunhas” ou mais tiradas da Escritura, estabeleçamos e garantamos “toda palavra” de Deus. E, ao fazer estas buscas, deveremos confundir aqueles que, na medida em que podem, dividem a divindade e separam do antigo o novo, tão longe estão da semelhança com o “mestre da casa, que tira do seu tesouro o novo e o antigo”.
Semelhança com Jesus, o verdadeiro mestre da casa
E como o ser comparado a um outro não é o mesmo que aquele a que se o compara, é “o escriba instruído do reino dos céus” que é comparado e ele não é o mesmo que “o mestre da casa que tira do seu tesouro o novo e o antigo”; no entanto este homem que lhe é comparado quer se parecer com ele e, para isso, agir ao seu exemplo. Ora o mestre da casa não é Jesus em pessoa? Ele tira do seu tesouro, segundo as necessidades do seu ensinamento, o novo: as verdades espirituais incessantemente renovadas por ele no “homem interior” dos justos, que é incessantemente renovado “dia após dia”, e o antigo “que foi gravado em letras sobre pedras”, e no coração de pedra “do velho homem”, a fim de que, graças à aproximação da letra e à colocação em evidência do espírito, ele enriqueça “o escriba instruído do reino dos céus” e o torne semelhante a ele, até que o discípulo “seja como o mestre”, ao imitar primeiro o imitador do Cristo, e, depois dele, o Cristo em pessoa, segundo a palavra de Paulo: “Sede os meus imitadores, como eu o sou do Cristo.” No entanto Jesus, o mestre da casa, pode também, num sentido mais simples, “tirar do seu tesouro o novo”: o ensinamento evangélico, e “o antigo”: a aproximação com textos tirados da lei e dos profetas, dos quais é fácil de encontrar testemunhos no evangelho. E, a respeito do antigo e do novo, é preciso ouvir também a lei espiritual que diz no Levítico: “Comereis as colheitas antigas, e as antigas das antigas, e fareis desaparecer o antigo diante do novo; e plantarei a minha tenda no meio de vós.” De fato nós comemos, na eucaristia, as antigas: as palavras dos profetas; as antigas das antigas: as da lei; e quando chegam as novas do Evangelho, ao viver de acordo com o Evangelho, fazemos desaparecer “a velhice da letra” diante do novo, e (Deus) planta a sua tenda no meio de nós, cumprindo a sua predição: “Habitarei e passearei no meio deles.”