Ruysbroeck, JRO, Ornamento das Núpcias Espirituais
Extratos selecionados por Jacqueline Chambron e traduzidos de HVM
C. Terceiro Advento. O toque sentido na unidade do espírito
(…) Tal é o modo pelo qual Deus possui a unidade essencial de nosso espírito como seu reino, age e faz transbordar seus dons na unidade que é o princípio de todas as nossas potências, e nas próprias potências.
COMO O HOMEM DEVE SER ORNADO PARA ACCEDER AOS EXERCÍCIOS MAIS ÍNTIMOS
Considerai com atenção como podemos prosseguir e possuir o exercício mais íntimo de nosso espírito à claridade da luz criada. O homem, que está ornado como convém pelas virtudes morais na vida exterior e se elevou em nobreza por exercícios íntimos, até gozar da paz divina, possui a unidade de seu espírito, iluminado por uma sabedoria sobrenatural, deixando transbordar generosamente sua caridade no céu e na terra; ele remonta e reflui, rendendo glória a Deus com reverência, para o mesmo fundo, no seio da alta unidade de Deus, donde vem toda efusão; pois cada criatura, conforme recebeu de Deus dons mais ou menos elevados, está mais ou menos disposta a remontar pelo amor e a se portar com fervor para sua origem. Pois Deus, por todos os seus dons, nos pressiona a voltar para Ele, enquanto pela caridade e virtude, por nossa semelhança divina, afirma-se nossa vontade de retornar a Ele.
DO TERCEIRO ADVENTO DE CRISTO QUE NOS CONDUZ À PERFEIÇÃO NOS EXERCÍCIOS ÍNTIMOS
Mediante a inclinação amorosa de Deus e sua ação íntima no mais profundo de nosso espírito, mediante, por outro lado, nosso amor ardente e a imersão total de todas as nossas potências nessa mesma unidade onde Deus habita, produz-se o terceiro advento de Cristo nos exercícios íntimos. E é um toque interior, uma moção de Cristo em sua claridade divina no mais íntimo de nosso espírito. O segundo advento de que falamos, comparamo-lo a uma fonte viva de três riachos. Este advento, compará-lo-emos à veia d'água na fonte, pois tais riachos não existem sem a fonte, nem a fonte sem uma veia de água viva. É de modo semelhante que a graça de Deus se derrama em riachos nas potências superiores, inflamando o homem e incitando-o a todas as virtudes. E ela se encontra na unidade de nosso espírito como uma fonte: jorra no seio dessa mesma unidade onde tem origem, como uma veia d'água viva brotando do fundo das riquezas divinas que borbulha de vida e onde jamais podem faltar a fidelidade ou a graça. Tal é o toque de que quero falar. E este toque, a criatura o sofre passivamente, pois então se realiza a união das potências superiores na unidade do espírito, acima da multiplicidade de todas as virtudes. Neste caso, ninguém age senão Deus só, por livre iniciativa de sua bondade, a qual é a causa de todas as nossas virtudes e de toda nossa felicidade. Na unidade do espírito onde jorra esta veia, permanece-se acima de toda operação e de todo raciocínio, sem que, no entanto, a razão se apague, pois a razão iluminada, e particularmente a potência amante, sentem o toque, mas a razão não pode compreender nem apreender algum modo ou maneira, o como e a origem deste toque. Pois é ali uma operação divina, a fonte donde provêm todas as graças e todos os dons, o último intermediário entre Deus e a criatura. E acima deste toque na essência do espírito onde reina o silêncio, brilha uma claridade incompreensível, e é a altíssima Trindade donde provém o toque. É ali que Deus vive e reina no espírito, e o espírito em Deus.
DE UMA SAÍDA DO ESPÍRITO EM SEU FUNDO ÍNTIMO SOB A AÇÃO DO TOQUE DIVINO
Aqui o espírito se eleva, pela potência amante, acima de toda operação, na unidade onde se faz sentir o toque, semelhante a uma fonte jorrante. E este toque pressiona o entendimento a conhecer Deus em sua claridade, atrai e pressiona a potência amante a gozar de Deus sem intermediário. Ora, é isto o que deseja o espírito amante acima de tudo, natural e sobrenaturalmente.
Pela razão iluminada, o espírito se eleva em uma íntima consideração; sua contemplação e suas reflexões se voltam para o âmago de si mesmo onde se faz sentir este toque vivente. Aqui, a razão e toda luz criada se recusam a ir adiante, pois a claridade divina que brilha do alto e provoca este toque, cega pela sua presença toda visão criada, por ser infinita. E todo entendimento que se ilumina de uma luz criada comporta-se aqui como o olho do morcego à claridade do sol (…).
A claridade divina que brilha do alto repele e cega todo entendimento por sua simples presença. É assim que Deus se mantém em sua claridade acima de todos os espíritos no céu e na terra. E aqueles que escavaram o fundo de sua alma, pela virtude e os exercícios interiores, até a fonte originária, isto é, até o limiar da vida eterna, esses são capazes de sentir o toque. Aqui, a claridade de Deus resplandece com tal brilho que a razão e todo entendimento se recusam a avançar mais; devem resignar-se à passividade e ceder a esta luz incompreensível e divina. (…) A potência amante, no entanto, esforça-se por ir além, pois se sente pressionada, atraída, tanto quanto o entendimento. (…)
O toque, a moção interior de Deus, excita em nós a fome e o desejo, pois o Espírito de Deus persegue nosso espírito. Quanto mais veemente é o toque, mais a fome e o desejo se fazem sentir. E é ali uma vida de amor em suas manifestações mais elevadas, acima da razão e do entendimento; a razão, de fato, é incapaz de dar ou tirar algo do amor, pois nosso amor sofre o toque do amor divino. Desde então, a meu ver, jamais se poderia falar em separar-se de Deus. (…)
Deste contato mútuo nasce a luta de amor: no ponto mais profundo de seu encontro, no momento mais íntimo e decisivo de sua visita, cada espírito é ferido de amor. Estes dois espíritos, a saber, nosso espírito e o espírito de Deus, tornam-se luminosos um para o outro, e cada um mostra ao outro seu rosto. (…)
O homem é então possuído pelo amor a ponto de perder a lembrança de si mesmo e de Deus, e de não mais saber nada além de seu amor. (…)
Acima, não existe senão a vida na contemplação de Deus, em uma luz divina e segundo o modo divino. Neste exercício, não se pode errar ou deixar-se enganar: ele começa aqui abaixo na graça e deve durar eternamente na glória.