Dmitri Merejkovsky – Jesus Desconhecido. Tr Gustavo Barroso. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1935
I
Que é o diabo? “Um parasita de bom tom, frequentando velhos amigos que o recebem pelo seu caráter acomodado e também porque é, apesar de tudo, um homem de bem, que se pode ter à mesa, com qualquer outro conviva, colocando-o, bem entendido, à ponta”. Tal é a resposta aparentemente brincalhona que dá Dostoievsky a uma pergunta, que, para ele, nada tem de pilhéria e à qual se não poderia responder de outra forma, no nosso “século esclarecido” (1). Para nós, Dante e Santo Tomás de Aquino somente acreditavam no diabo em consequência da “ignorância” da Idade Média, e Newton e Pascal unicamente porque “seu gênio tocava às raias da demência”. Mais eis Goethe, uma das mais sadias inteligências do mundo, tão afastado quanto nós da ignorância da Idade Média: Fausto, o duplo de Goethe, quando diante dele surge outro duplo eterno de Goethe, Mefistófeles, “o estranho filho do caos, des Chãos wunderlicher Sohn”, o mais pessoal, o mais vivo dos demônios, Fausto pergunta sem o menor tom de brincadeira: “Quem és tu?” Wer bist du denn? Para Goethe, a presença — a vinda — no mundo e nele mesmo do “demoníaco” é muito palpável, muito experimental, para que à pergunta: Que é o diabo? responda com tanta leviandade quanto nossos homens “esclarecidos”, os quais são talvez mais homens do século XIX do que homens do século XX: “O diabo não passa de uma lenda supersticiosa dos séculos passados”.
II
Para duvidar profundamente, é preciso crer profundamente; os homens, cuja fé é mais profunda, os santos, são também aqueles cuja dúvida é mais profunda. “Eu te asseguro que alguns deles não te são inferiores pela inteligência… Eles podem, no mesmo momento, contemplar tais abismos de fé e de incredulidade que é por um fio de cabelo que um homem se não despenha no precipício”, diz o diabo a Ivan Karamazov. Faríamos talvez bem não desprezando a experiência dos santos em nossa resposta à pergunta: Que é o Mal — o diabo? — “Tu não existes por ti mesmo, tu és eu, tu és eu e nada mais… Tu és um sonho e não existes, exclama Ivan, lutando com o diabo. — O ardor com que me negas prova que, apesar de tudo, acreditas em mim, replica o diabo irônico. — Absolutamente. Não creio em ti nem um centésimo. — Mas acreditas um milésimo. Ora, as doses homeopáticas são talvez as mais fortes. Confessa que crês em mim um décimo de milésimo… Eu te levo ora à fé, ora à incredulidade, e tenho meu fim nisso… porque cessarás completamente de crer em mim, logo que te ponhas a me declarar face a face que não sou um sonho, mas existo realmente… então, atingirei o meu fim…”
III
O diabo de Ivan Karamazov é simples criação do “delírio”, da “alucinação” ou é alguma coisa, embora num “décimo milésimo de dose” — uma experiência religiosa ignota, uma brecha aberta sobre outra realidade, uma passagem das três dimensões à quarta, uma visão — um apagamento da cegueira, como o despertar de um homem que exclama: “Não, não, não! Não era um sonho! Ele estava ali!? “A crítica da razão pura” evidentemente não poderia responder a essa pergunta que ultrapassa seus limites: “foi ou não foi?” “O diabo não existe, porque o Mal absoluto não existe; há uma simples diminuição relativa do bem.” Esta verdade ou esta mentira metafísica é uma irrisão para a alma humana prestes a perecer no mal, do mesmo modo que esta verdade física: “o frio absoluto não existe; há uma simples diminuição relativa do calor” é uma irrisão para o corpo humano prestes a gelar. Que o que é relativo para a razão pode ser às vezes absoluto para o corpo, o corpo e a alma o sabem ou sabê-lo-ão um dia ao preço de terrível experiência. Pode-se, certamente, não acreditar nem em Deus nem no diabo, mas não há razão alguma, se se acredita num Deus pessoal, para se não acreditar também num diabo pessoal. Qual é, pois, seu semblante? O nosso, provavelmente, nos momentos em que queríamos esquecer e esquecemos, com efeito, com terrível leviandade: “Ele sou eu… Tudo o que há em mim de baixo, de vil, de desprezível”: assim, se reconhece no diabo, como num espelho de aumento, mas terrivelmente fiel, Ivan Karamazov. “Eu” — na minha sombra que me não deixa, no meu “duplo-parasita”, — no limite transcendente do mal, que ainda me não atingiu, mas que já está ameaçadoramente próximo — eis o que é o diabo.
IV
O espantalho impede os pássaros de se aproximarem das uvas. O diabo impede os cristãos atuais de se aproximarem do Cristo. “Quem poderia, em nossos dias, crer como cria Jesus? Ele cria nos demônios, em quem não cremos mais”, afirma um teólogo protestante, exprimindo ingenuamente o que têm no espírito quase todos os cristãos atuais (2). Mas, se um pequeno colegial de hoje é capaz de mostrar que Jesus se enganava na essência do mal — do diabo, quem nos garante que se não enganava igualmente na essência do bem — Deus? Ora, basta isto para que desabe todo o cristianismo. Durante toda a sua vida, Jesus não luta somente contra um mal abstrato, impessoal, mas contra seu inimigo, tão pessoal e vivo quanto ele, o diabo, e é a esse aspecto do Mal que se reporta esta súplica do Senhor: “Livrai-nos do Maligno.” “Ninguém poderá entrar na casa do homem forte e roubar seus bens, se antes não tiver amarrado esse homem forte; depois disso, é que poderá pilhar sua casa (Mc., 3, 27.)”. É o que Jesus faz toda a sua vida. Seu milagre principal, contínuo, é a “força”, dynamis, que emana dele e que expulsa os demônios. É unicamente por isso que tomou sobre si a carne e o sangue, a fim de que, na carne e no sangue, “por sua morte, destrua o poder daquele que tinha o império da morte, quero dizer o diabo (Hebr., 2, 14)”. “Senhor, os próprios demônios nos são sujeitos em teu nome”, exclamam com alegria os Setenta Enviados voltando para o Senhor. Mas ele lhes disse: “Eu vi Satan cair do céu como um raio. Eis que vos dei o poder de calcar… todo o poder do inimigo (Lc., 10, 17-19.)”. Se Satan não existe, o Senhor nada viu no céu e nada deu aos homens sobre a terra. Toda a sua vida, ele lutou contra ninguém e por nada. É preciso ser lógico: ou renegar completamente o Cristo ou aceitá-lo tal qual é. Jesus sem o diabo é um homem sem sua sombra; não passa de uma sombra dele próprio e toda a sua vida é um “erro fatal”, segundo a expressão de Renan, ou, segundo a expressão de Celso: “ele acabou por uma morte miserável uma vida infame”.
V
Toda a vida oculta de Jesus, como toda a sua vida pública, é uma luta contra o diabo, que os Evangelhos, as “Reminiscências dos Apóstolos” chamam, provavelmente segundo as palavras do próprio Jesus, a “Tentação”. “Jesus foi levado pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo diabo (Mt., 4, 1.)”. Isto se passou bem no começo de sua vida pública, logo depois do Batismo, e, no fim, na véspera da Cruz, ele dirá: “Vós (os discípulos) estivestes comigo nas minhas tentações (Lc., 22, 28.)”. Três tentações, as mesmas que sobre a Montanha — pelo Pão, pelo Milagre e pelos Reinos — atravessam toda a sua vida: pelo pão, quando, após a multiplicação dos pães, os homens querem “carregá-lo, para fazê-lo rei (Cristo) ” (Jo., 6, 15.); pelo milagre, quando lhe pedem que mostre um sinal vindo do céu (Mt., 16. 1.); pelos reinos, quando o interrogam acerca do “imposto devido a César” (Mc., 12, 14-17.). “Arreda de mim, Satan!” dirá o Senhor a Pedro, seu Confessor, (Mc., 8, 33.), repetindo o que disse ao tentador, na montanha. “Se és o Filho de Deus, atira-te daqui abaixo (Lc., 4, 9.)”, assim o tenta o diabo. “Se és o Filho de Deus, desce da cruz”, assim o tentam os homens. Toda a vida terrestre do Cristo é uma tentação: compreender isso é compreender toda a sua vida.
VI
“Ele foi tentado durante quarenta dias; não sabemos como; nenhuma Escritura fala disso. Por que? indaga Orígenes e ele próprio responde: porque ninguém teria compreendido a indizível grandeza dessa luta, pois o Senhor passou por todas as tentações com que o homem pode ser tentado (3) É o irmão dos homens em tudo, e nisso também; nisso talvez mais do que em todas as coisas. “Também era preciso que fosse tornado semelhante em todas as coisas a seus irmãos, a fim de ser… misericordioso. Com efeito, como ele próprio sofreu e foi tentado, pode socorrer aqueles que são tentados (Heb., 2, 17-18.)”. “Nós temos um sumo pontífice que pode perdoar nossas fraquezas, porque foi tentado como nós em todas as coisas (Heb., 4, 15.)”. “Ele sofreu com os desgraçados, teve sede com os sequiosos e fome com os famintos”, — foi tentado com os que foram tentados. Perder isso nele é perder tudo.
VII
“Eu vim em nome do Pai, e vós não me recebeis. Que outro venha em seu próprio nome, e o recebereis (Jo., 5, 43.) ”. Quem é esse “outro”? Um fantasma? Não, um homem de carne e sangue, um personagem tão histórico quanto o próprio Jesus, o diabo da história universal, o duplo do Cristo, o Anticristo. Eis porque se não deve esquecer que o Mal tem uma figura — o diabo — a fim de poder desmascará-lo, a fim de não se ficar cego na luta, como agora estamos, a fim de ver o inimigo face a face e compreender que o “Anticristo” não é uma lenda supersticiosa dos séculos passados, porém uma realidade terrivelmente próxima e temível, nosso inimigo de amanhã — de hoje. Há dois mil anos que o cristianismo dura e ninguém pode ver o inimigo tão claramente como nós. “Se houve jamais um milagre retumbante, foi o do dia das três Tentações, disse, para tentar o Cristo, um pequeno Anticristo (houve e há muitos), o Grande Inquisidor de Dostoievsky. — O milagre consistia precisamente na aparição dessas três perguntas (tentações). Se fosse possível imaginar que toda a raça estivesse perdida e que se quisesse restabelecê-la, toda a sabedoria da terra seria capaz de inventar alguma coisa semelhante?… Porque elas predizem toda a história e mostram as três imagens a que se reduzem todas as insolúveis contradições históricas da natureza humana em toda a superfície do globo”. Não é dizer que o diabo da história universal, seu verdadeiro semblante, posto que ainda invisível para nós, é o Anticristo, que fez sua primeira aparição no mundo sobre a Montanha da Tentação?
VIII
Qual dos dois ama mais os homens? O Cristo que somente salva, na liberdade, raros eleitos, ou o Anticristo que salva todos os homens na escravidão? É essa a tentadora pergunta que o diabo faz aos destinos da única Igreja Romana do Ocidente, a qual tomou o gládio de César, — afirma Dostoievsky, como se os destinos da Igreja Oriental não estivessem historicamente ligados ao mesmo gládio: ali, o Papa é César; aqui, o César é Papa. A mesma pergunta se impõe em outra ordem, não a da experiência histórica exterior, mas na da experiência religiosa interior: o milagre vem da fé ou a fé vem do milagre? Quem mais ama os homens: o Cristo, salvando pela fé livre alguns eleitos, ou o Anticristo, salvando a todos pela fé servil? “Tu não quiseste escravizar o homem pelo milagre, diz o Grande Inquisidor, continuando a tentar o Cristo — tu aspiravas ao amor livre do homem e não à admiração servil de um escravo diante do poder que o amedrontou de vez… Em lugar dos fundamentos sólidos (a Lei), tomaste tudo o que há de problemático. .. de incerto e acima das forças humanas… Em lugar de te apoderares da liberdade dos homens, a multiplicaste e os carregaste para sempre com seus tormentos.. . porque nunca houve coisa mais insuportável para o homem do que a liberdade… Então, nunca pensaste que o homem repeliria tua verdade, se a fizesses tão terrivelmente pesada?… Os homens acabarão desfraldando contra ti teu próprio estandarte livre… Lembra-te a que horrores de escravidão e a que perturbações os conduziu a tua liberdade!… E eles rastejarão a nossos pés e clamarão: “salvai-nos de nós mesmos”!… Dizem que tu virás e de novo vencerás com teus eleitos; porém nós diremos, então, que eles somente salvaram a eles próprios, enquanto que nós salvamos todos… Não estamos contigo, mas com ele (o Anticristo), — eis o nosso segredo!” (4)
IX
“Teu inquisidor não crê em Deus, eis todo o seu segredo!” conclui Aliocha Karamazov. “Enfim, adivinhaste”. — “Com efeito, todo o segredo está nisso”, aquiesce Ivan. Não, não só nisso. “Os demônios creem também, e tremem (Jac., 2, 19.)”. O diabo crê, vê Deus e mente, quando diz que Deus não existe, para se pôr em lugar de Deus; mente, dizendo que a Igreja está com o Anticristo, a verdade com a mentira, e que a liberdade do Cristo perde os homens. É justamente esta última mentira que é hoje a principal mentira do diabo. “Vós conheceis a verdade e a verdade vos libertará (Jo., 8, 3.)”, diz Jesus, para nos pôr de sobreaviso. A falsa liberdade, a liberdade contra o Cristo não passa de uma revolta de escravos, ponte lançada pelo diabo da mesquinha escravaria rebelde atual — que chamamos “revolução” — para a futura e suprema escravidão ao Anticristo. O diabo já nem dissimula mais esse semblante nos dois hemisférios da humanidade ex-cristã — o Ocidente que se extingue na “democracia burguesa” e o Oriente que se abrasa na “revolução proletária”. Eis a razão por que hoje, mais do que nunca, perecer ou salvar-se é aceitar ou repelir ante a face do Escravizador esta palavra tão desconhecida do Desconhecido: “Se o Filho vos libertar, sereis realmente livre (Jo., 8, 30.)”. A escravidão com o Anticristo, a liberdade com o Cristo — eis nossa resposta ao Tentador.
X
A força do diabo não está no que ele diz, porém no que faz em silêncio. A julgar pela maneira por que vai hoje o mundo, é sozinho e para ele só que Jesus venceu as tentações no deserto, enquanto que o mundo continua agora, mais do que nunca, tentado pelo diabo. O Grande Inquisidor tem razão: os destinos da humanidade, do começo à consumação dos séculos, estão pressentidos nas três Tentações e, se não fôssemos cegos ou não fechássemos voluntariamente os olhos, veríamos isso mais claramente hoje do que jamais alguém viu em dois mil anos de cristianismo. A primeira Tentação é a do Pão — pelo poder do homem sobre a matéria, pelo conhecimento, pela mecânica-magia, pelo milagre do Não-Eu; pelo fim dos sofrimentos físicos no mundo. A segunda Tentação é a do Voo — pelo poder do homem sobre seu corpo, pela liberdade, pelo milagre no Eu; pelo fim dos sofrimentos morais da personalidade. A terceira Tentação é a dos Reinos — pelo poder do homem sobre os homens, pelo milagre do amor, unindo um a todos, pelo milagre no Eu e no Não-Eu; pelo fim dos sofrimentos morais e físicos da humanidade. A primeira tentação, pelo pão, é neste momento tão fácil de compreender que é inútil apontá-la; a última, pelos reinos, é tão incompreensível para quem quer que seja que nem temos palavras para designá-la, porque o que chamamos “revolução social” parece quase irrisório diante desse horror inominável. Quanto à segunda, a do meio, em parte todos a compreendemos: é o que denominamos “progresso”, o voo para o alto ou para baixo, à escolha de cada qual; dizendo “para o alto”, certamente nos perderemos; dizendo “para baixo”, talvez nos salvemos.
XI
Como salvar-se? Para o mundo, hoje, isso equivale a dizer: como, com o Cristo, vencer as três tentações do Anticristo? Para responder a essa pergunta, é preciso saber como o próprio Cristo as venceu, e, para isso, saber como e por quem foi tentado. Sabemos isso com exatidão? De duas coisas uma: ou o relato evangélico da Tentação é uma simples invenção, o que é por demais incrível, pois que os primeiros discípulos do Senhor, pescadores galileus, únicos que poderiam ter feito essa “invenção”, eram a gente mais simples do universo. Como poderiam predizer todos os destinos do mundo, realizar esse “milagre retumbante”, achar aquilo que, segundo a expressão do Grande Inquisidor, “toda a sabedoria da terra” não bastaria a criar? É uma das possibilidades e demasiado inverossímil. A outra é que isso tenha realmente acontecido e, se assim é, os discípulos do Senhor somente poderiam sabê-lo pelo próprio Senhor, pois ele se achava sozinho sobre a Montanha da Tentação e ninguém poderia conhecer o que se passara entre ele e o diabo. Por conseguinte, teríamos aí o mais verídico testemunho que se possa ter na história — o Evangelho segundo Jesus.
XII
Que foi realmente assim — está confirmado numa passagem do Evangelho dos Ebionitas, em que os discípulos se lembram que: “O Senhor nos dizia que o diabo lhe falou (lutou) e o tentou durante quarenta dias (5)”. Encontra-se ainda uma confirmação indireta nos Evangelhos canônicos de Lucas e Mateus: “Ele (o diabo) o levou a Jerusalém e o pôs sobre o pináculo do Templo”. É provável que esse “pináculo” fosse o entablamento de uma das duas colunatas do altar de Salomão — aquela que dava para o sul, sobre o vale do Cedron. Todos, mesmo os pagãos, tinham livre acesso ao seu terraço. Ali se podia passear como numa praça e era lá que ficavam os soldados romanos durante as grandes festas judaicas (6). O muro exterior era construído acima de um rochedo tão abrupto que, quando alguém se aproximava da borda e olhava entre as ameias “tinha vertigem”, relata Flávio Josefo (7). Talvez o jovem Jesus, quando veio aos doze anos a Jerusalém, nas festas da Páscoa, e ficou sozinho na “casa de seu Pai”, também tivesse a vertigem, subindo a esse eirado e aproximando-se curiosamente do abismo, a fim de olhar para baixo. Não seria nisso que pensava, quando o diabo o tentou nesse mesmo pináculo pelo milagre do voo? Parece que se ouve o latejar do sangue nos ouvidos, o bater do coração que vai parar atraído pelo vórtice e o próprio murmúrio da voz do Senhor através do murmúrio da voz do diabo: “Atira-te daqui abaixo!”
XIII
A autenticidade histórica dessa recordação está ainda confirmada por um fragmento do “Evangelho dos Hebreus”, em que o próprio Senhor evoca essa tentação pelos reinos, que é aqui a primeira, enquanto que é a terceira em Mateus: “Imediatamente (após o Batismo), o Espírito Santo, minha mãe, me tomou por um cabelo e me transportou sobre o alto monte Tabor (8)”. Isto não tem mais sentido nas modernas línguas arianas: o Espírito Mãe levando seu Filho por um cabelo é uma imagem que não podemos mais compreender e que nos parece absurda e blasfema; porém nas antigas línguas semita e aramaica, que Jesus falava, é compreensível, embora não menos “espantosamente terrível”. Rucha, não Ele, mas Ela, é o Espírito, o sopro dos lábios divinos, que, como um vendaval silencioso, mais silencioso do que tudo o que existe na terra e, ao mesmo tempo, mais irresistível, agarra os profetas do Antigo Testamento por uma “mecha de cabelos” e os carrega, os “arrebata”: “… o Espírito me arrebatou pelos cabelos e me levou por entre o céu e a terra (Ez., 8, 3.)”. A Mãe somente toma seu Filho por um “fio de cabelo”, porque não precisa atraí-lo pela força; ele mesmo a segue, voa após ela, bastando o mais leve contato para ser arrebatado (9).
Na tentação pelos reinos, nos dois sinóticos, o diabo se substitui ao Espírito Santo. Em Mateus, o diabo transporta Jesus “sobre uma montanha muito alta” (4, 8.). Em Lucas, leva-o, não sobre uma montanha, porém sobre uma altura desconhecida, ANÃGA-GON, provavelmente porque, não vendo mais com os olhos o milagre, a brecha aberta sobre outra realidade, Lucas duvida que haja uma montanha da qual se possam descobrir “todos os reinos do mundo” (4, 5.). Mas, nos três sinóticos, é o Espírito Santo que conduz Jesus ao deserto, a fim de ser tentado, quando, ao contrário, num fragmento de um Evangelho desconhecido que Justino nos conservou, é o diabo quem: “… logo que Jesus saia do Jordão… segundo o que está escrito nas Reminiscências dos Apóstolos, se aproximou dele e o tentou (10)”. Aí, onde num Evangelho está o Espírito Santo, no outro está o diabo, e vice-versa. É bem o que há de terrível na Tentação, não somente para nós, mas talvez para aqueles mesmos que receberam a confidência dos próprios lábios de Jesus: os dois Espíritos que lutam por sua causa, semelhantes aos turbilhões em uma tromba, se entrelaçam e se entremeiam tão intimamente que é impossível distingui-los um do outro.
A ordem das tentações está também misturada. Em Mateus, a segunda tentação é a do voo e a terceira, a dos reinos. Em Lucas, dá-se o contrário. E, no Evangelho dos Hebreus, todas três estão fora do lugar: a primeira é a dos reinos, a segunda é a do voo e a terceira é a do pão. Ora, é isso, a ordem das tentações que tudo decide na sua tríplice dialética — diabólica, divina e humana. Que significa isso senão que essas coisas foram contadas em voz baixa, ao ouvido, no escuro. Eles escutaram e tiveram tanto medo que não compreenderam. Talvez Ele também estivesse assombrado: sabe que lhes deve dizer tudo, porque eles também serão tentados como ele foi; porém tem medo: saberão eles vencer tudo? É possível ainda que não encontre mais na sua memória humana a recordação exata do que não se passou somente “nas três dimensões”; não acha mais palavras nem noções humanas para falar disso aos homens. Eis porque o relato evangélico da Tentação parece tão confuso, como se nele se falasse de coisas esquecidas, quando, na realidade, tudo nele é nítido, memorável, autêntico. E eis porque está impregnado de tanto pavor.
Esse pavor é especialmente sensível nos dois curtíssimos versículos obscuros de Marcos, dois segredos não decifrados, que se diria foram cochichados ao ouvido, na escuridão. Aqui, o Espírito não “conduz”, não “arrebata” mais Jesus, porém o “impele” logo depois do Batismo (o logo, EUTHYS, de Marcos-Pedro aí é particularmente rápido), o “lança”, EKBALLEI, o arranca dos lugares habitados para o deserto, como o sopro da tempestade carrega a folha arrancada da árvore. A lei da metafísica celeste parece agir com tanta precisão matemática quanto a da física terrestre — o ângulo de reflexão iguala o ângulo de incidência, a oscilação do pêndulo é igual para a direita e para a esquerda — tanto Jesus se impregna do Espírito Santo quanto é tentado pelo diabo. “Ele passou quarenta dias no deserto, tentado por Satan; estava com os animais selvagens e os anjos o serviam (Mc., I, 13.)”. Como era tentado? Por que os animais ao lado dos Anjos? De onde vêm e quais são? Trata-se somente de bichos do deserto ou de fantasmas arranjados pelo diabo? E que fazem com o Tentado? Sobre tudo isso Marcos-Pedro silencia; sabe talvez mais do que diz, porém o terror lhe “cola a língua ao céu da boca”. Quantas heresias satânicas teriam turbilhonado em torno desse enigma e quantas almas se teriam perdido, se o pavor insuportavelmente concentrado de Marcos-Pedro não tivesse sido diluído, em Lucas e Mateus, nas três Tentações! Estes já podem falar; têm menos medo, talvez porque, para eles, o que o outro cala não é mais tão sagrado.
“Senhor, permite-me tentar o Cristo-Messias”, diz no Talmude Satan, que parece, sabendo que Deus não o pode recusar, antes reivindicar um direito do que formular um pedido (11). “Ei-lo, está no teu poder (Jó, 2, 6.)”. diz o Senhor a Satan a propósito de Jó o Justo, — e dirá também a propósito de seu Filho Único. O Pai entregará seu Filho à tentação do demônio; não é só apavorante, porém inimaginável, como é inimaginável para nós, que vivemos nas três dimensões, o que se passa na quarta. O Espírito-Mãe arrebata seu Filho pelo mais suave hálito-beijo de amor e o entrega como de mão a mão, ao diabo. E, livremente, alegremente, como uma criança que aprende a caminhar, o Filho se afasta da Mãe, sabendo ou não aonde vai ou o que vai fazer. Isto não é só apavorante, porém inimaginável para nós. Algo de semelhante poderia vir ao espírito de entes vivendo nas três dimensões, se um Ente de outra dimensão lhes não tivesse dito? A autenticidade de todo o testemunho não está atestada por esse signo sobre-humano, selo ardente impresso pelo fogo celeste a um acontecimento terrestre?
Em toda a tentação, por pouco sentido que tenha esta palavra, o mal não humano, o diabo se aproxima da vontade humana. E, quanto mais forte é aquele que é tentado, mais violenta é a tentação, mais fino o fio de cabelo que separa a vontade do mal. Jesus podia ser tentado, induzido ao pecado? Aí ainda, como em todas as profundezas extremas da experiência religiosa, há uma antinomia, os “contrários concordantes”; podia ser e não podia. Se não podia, ele não era o Filho do Homem; se podia, ele não era o Filho de Deus. O diabo vê, sabe com quem trata? Aí ainda os contrários são concordantes: sabe e não sabe. Vê tudo, menos este ponto único, cego e deslumbrante: o Amor é Liberdade. Ora, é nesse ponto que, para ambos, o Tentado e o Tentador, tudo se decide. “Eu sei quem tu és, o santo de Deus”; se isso era sabido dos pequenos demônios que se incarnavam nos possessos, devia sê-lo ainda mais do mais luminoso dos Filhos de Deus, do antigo irmão do Filho Único. Ele sabe, ele vê o Natal, a Anunciação, a Epifania; mas, como nós, se torna cego num único ponto deslumbrante; pergunta, como nós: que é um milagre? A fé vem do milagre ou o milagre vem da fé? Isto foi ou isto não foi?
Jesus sabe que não pecará desde o instante em que foi tentado ou não o sabe ainda, porque o homem não o pode saber e que o Filho de Deus não o quer saber? O próprio Pai sabe ou também não quer saber, para não tirar do Filho o mais precioso dom do amor — a liberdade? (13) Nós, homens, não devemos também saber e devemos parar a tempo, à beira do abismo, quando Satan murmura: “Atira-te daqui abaixo! “Não é dado aos homens saber o que lhes é útil e na medida em que isso lhe seja útil: que o Homem Jesus morreu realmente, um por todos, no Gólgota, que sofreu até suar sangue no Getsêmani, um por todos, e que foi tentado sobre a Montanha, um por todos. Jamais fio de cabelo mais tênue separou maior vontade humana de mal maior; jamais o amor atingiu mais alto ponto de liberdade. Por três vezes, nas três Tentações, os destinos do mundo oscilaram em torno desse supremo ponto, como no gume de uma lâmina; três vezes se abriu diante de nós o mistério do Filho no Pai. O Amor é Liberdade. E por ela foi que Jesus venceu o diabo e por ela o Cristo vencerá o Anticristo.
Se chegássemos enfim a compreender que foi nesses quarenta dias e por amor-liberdade que, em nosso lugar, Jesus foi tentado pelo Anticristo, talvez acabássemos de escrever no nosso coração o Evangelho secreto começado por Dostoievsky: O Apócrifo da Tentação.