Dmitri Merejkovsky – Jesus Desconhecido. Tr Gustavo Barroso. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1935
I
A Creta — “Atlântida na Europa” — é uma misteriosa ilha-arca, que, vinda do remoto Ocidente, do “Poente de todos os sóis (1)”, se deteve em face da Terra Santa. Se o Pentateuco de Moisés conta dos primeiros estabelecimentos em Canaã dos Keretim-Cretenses numa fabulosa antiguidade, pré-histórica ao dilúvio — à “Atlântida” (2), os últimos surgem na história em 1700 e 1400, na época em que dois terremotos, duas pequenas “Atlântidas”, devastaram a Creta, cujos habitantes se refugiaram na terra firme, provavelmente em Canaã (3). “A Creta… berço sagrado de nossa raça…” Creta… gentis cunabula nostrae… dirá Virgílio (4). Para nós, a Creta aparece cada vez mais claramente através de Canaã-Palestina, a Terra Santa, como sobre um palimpsesto antigo a antiga escrita transparece sob a nova. Somente então começamos a descobrir sob a camada superior das areias movediças de Israel, que o vento trouxe dos desertos do Sinai, o negro e húmido barro cretense da Terra Santa, em que talvez mergulhem também as raízes do Lírio galileu — o Evangelho.
II
O peregrino que desce de Jerusalém para Jericó vê abrir-se bruscamente diante dele, num cotovelo da estrada, uma fenda vulcânica, escancarada na terra como a boca do inferno; mas, se aí mergulha o olhar, descobre um paraíso subterrâneo, florescente e vicejante num deserto morto — num mar de pedras. Dir-se-ia uma pequena “Ilha dos Bem-aventurados”, uma “Atlântida”. É o atual oásis de Uadi-Kilt, o antigo Kerith. Evidentemente, esse nome foi dado a essa torrente pelos Keretim, originários da ilha de Creta. Estranha maravilha no deserto silencioso e sem água, essa garganta onde ruge a torrente, como numa concha marinha rola o rumor contínuo das vagas. A torrente do Kerith, prolongada pela Ladeira do Sangue, une Jerusalém-Gólgota, o local da Cruz, ao Jordão, o local do Batismo, o mistério do Oriente ao mistério do Ocidente. “Esconde-te na torrente do Kerith, que fica em face do Jordão”, diz o Eterno a Elias, o primeiro Precursor (I Reis, 17, 3-4.); talvez, o segundo Precursor, João, se tenha escondido perto da mesma torrente, a fim de escapar ao rei ímpio, Herodes, como Elias ao rei ímpio Acab. O Kerith lança-se no Jordão a dois passos de Betabara-Betânia. Nesse paraíso subterrâneo, cuja sombra húmida, verde, quase submarina, só recebe o sol ao meio-dia, zumbem, entre as moitas embalsamadas de loureiros-rosa, enxames de abelhas selvagens. João podia encontrar aí o mel com que se alimentava (Mc., I, 6). E, se Jesus, como é muito provável, (“Rabi, onde moras? — Vinde e vereis”. Jo., 38-39.) passou alguns dias, depois de seu batismo, sob as tendas de Betabara, também viu a Creta.
III
O próprio nome de Jordão veio para a Palestina da Creta, onde o povo de Sidon, como sabemos por Homero, habitava junto às claras águas do Jordan (6), É esse o primeiro dom da Creta à Terra Santa, e eis o segundo: No começo do século XX, nas ruínas do palácio de Cnossos, em Creta, se descobriu uma antiga cruz pagã de mármore acinzentado, de oito braços iguais. Parecia tanto com a nossa cruz cristã que um padre grego, presente ao achado, se persignou e a beijou “com tanta veneração como a deviam mostrar os antigos”, nota o arqueólogo inglês Artur Evans, descobridor de Cnossos. A cruz cretense remonta provavelmente a meados ou ao começo do segundo milenário, aos tempos pré-mosaicos, porém é evidente que semelhantes cruzes existiram muito antes, nas eras pré-abramicas: “Antes que Abraão fosse, eu sou (Jo., 8, 58.)”. Da Creta, supõe Evans, a cruz foi levada à Palestina, onde, após um sono e um olvido milenares, de novo se levantou no alto do Gólgota (8).
IV
E, enfim, temos o terceiro dom, o mais maravilhoso, da Creta à Terra Santa: a Pomba, a grande deusa Mãe, da qual já se encontram numerosas estatuetas em barro e pedra, nas camadas neolíticas (contemporâneas da “Atlântida” — do Dilúvio), na Europa, na África do Norte e na Ásia Ocidental, do golfo Pérsico ao Atlântico. É a grande deusa Mãe, não só talvez de nossa segunda humanidade, mas também da primeira — a Britomartis creto-egeia (9), a Afrodite celeste, a Urania helena, a Ishtar babilônia a Astarteia cananeia, a Anahit iraniana, a eterna Virgem-Mãe, trazendo o menino nos braços (10). Na antiga cidade cananeia de Ascalon, a mesma Mãe-Pomba desce sobre o Deus Filho, o Ciniro-Adônis cretense, cujos mistérios (eles olham aquele que traspassaram — Zach., 12, 10.) se celebravam no vale de Megido, que se podia avistar da colina de Nazaré, ao fim da planície de Jezrael, ao pé das montanhas da Samaria, onde se adorava o Schechiná, a Luz emanando da face do Eterno sob o aspecto da mesma Pomba-Mãe branca (11). “Procurai a mãe antiga”, Antiquam exquiritematrem, dirá Virgílio (12) dessa deusa cretense, Mãe das duas humanidades, ou das três, se, após a nossa, a segunda, deve haver uma terceira.
V
E, ainda em nossos dias, se pode ver voar acima de Uadi Kilt, da gruta do Kerith, bandos de pombas brancas. Não teria sido uma dessas pombas a que se achava acima da nuvem tempestuosa, no dia em que Jesus foi batizado no Jordão e em que “os céus se abriram sobre ele” (Mt., 3, 16.) ? Segundo o Talmude, parecia com uma pomba voejando sobre seus borrachos O Espírito Divino pairando sobre o abismo aquoso do caos, Tehon. Foi uma pomba ainda que, solta por Noé, voou sobre as águas do dilúvio. Será afinal uma pomba que descerá sobre as águas do Jordão (13). Três pombas, mensageiras das três humanidades, a de antes do dilúvio, a nossa e a que virá depois. A significação, incompreensível para nós, dessas três pombas, signos do Fim, Kepler, que tão miraculosamente adivinhou com seus cálculos errôneos sobre a estrela de Belém o verdadeiro ano do nascimento do Cristo, teria podido compreender, como teriam talvez compreendido os astrônomos babilônios, assombrados pela entrada, nesse ano, do equinócio no signo do Peixe — do segundo Dilúvio —, se vivessem em nossos dias da Atlântida-Europa. Há dois mil anos dura o cristianismo e ninguém a não ser nós poderia compreender o sentido desses três signos; e, assim mesmo, somente os vemos com os olhos e não com o coração. Mas, se soubéssemos hoje o que se passará amanhã, talvez os víssemos também com o coração. Então, nossos cabelos se arripiariam de pavor.
VI
O Peixe aparece unido à Pomba nas mais antigas pinturas das catacumbas. O Peixe ali representa o Cristo, ou porque as primeiras letras das palavras gregas IÊSOUS KRISTOS THÊON UIOS SÓTER com põem o termo — IKTHUS, peixe; ou porque os primitivos cristãos conheciam a passagem, então visível, não só para os sábios, mas também para as crianças, do ponto equinocial do mundo para o signo do Peixe — do segundo Dilúvio de fogo e água — do fim da segunda humanidade — sinal, para os primeiros cristãos, da alegria que apavora: “Quando essas coisas começarem a acontecer, erguei-vos e levantai a cabeça, porque próxima está vossa libertação (Lc., 21, 28). “Raça divina do Peixe celeste recebe este manjar doce como o mel do Salvador dos Santos”, reza uma inscrição da Gália proto-cristã (14). Sobre uma ânfora encontrada em Festos, capital meridional de Creta, vê-se pintado um Peixe carregando às costas, do oceano para o céu estrelado, uma Pomba que belisca o pólen — o maná celeste — nos pistilos do lótus desabrochado (15). Essa pintura que se reporta talvez aos mistérios dos dias pré-mosaicos, pré-abramicos, não teria sua melhor explicação nesta inscrição proto-cristã das catacumbas: “Raça divina do Peixe celeste recebe este manjar doce como o mel”? A mais antiga imagem da Eucaristia, datando do fim do século I ou do começo do século II, parece ser a pintura que se encontra no Cubículo da Cripta de Lucina: um peixe que fende as águas e leva às costas uma corbelha cheia de pães e um frasco de vidro cheio de vinho rubro. Os primeiros cristãos, conta São Jerônimo, ofereciam o Corpo do Cristo em cestinhos de vime e seu Sangue, em vasos de vidro (19). Na pintura de Lucina, o Peixe une a água do Batismo ao vinho — ao sangue da Eucaristia. A Água — o Vinho — o Sangue — o Fogo — o Espírito: o Peixe fica em baixo dessa escala ascendente, e em cima, a Pomba.
VII
O Peixe-Pomba de Festos refere-se aos mistérios celebrados em Creta, dezesseis séculos talvez antes do nascimento de Cristo; dezesseis séculos depois de seu nascimento, Santa Tereza de Ávila, na véspera de Pentecostes, da descida do Espírito Santo, teve uma visão: “Uma pomba muito diferente das deste mundo, porque não tinha penas e suas asas pareciam formadas de pequenas escamas resplandecentes (17)”. Muitos anos mais tarde, lembrando-se dessa visão, a Santa não podia compreender a causa da alegria misturada de medo que sentira. Esse medo teria talvez sido compreendido pelos astrônomos babilônios que, no ano do nascimento de Cristo, observavam a entrada do sol no signo do Peixe — do Fim; a alegria talvez fosse compreendida pelos cristãos primitivos, adoradores do Peixe celeste, que se recordavam da palavra do Senhor: “Erguei-vos e levantai a cabeça, porque próximo está vossa libertação”.
VIII
Mas os que melhor teriam compreendido o símbolo do Peixe-Pomba seriam os membros de uma comunidade secreta judaica, os Essênios, os Taciturnos (18), que habitavam os desertos montanhosos a oeste do mar Morto, entre Hebron e Engadi, onde João Batista, taciturno habitante do deserto, vivera vinte anos. Homens estranhos, um tanto dementes, “tendo o aspecto de crianças atemorizadas pela palmatória do mestre (19) ”, possuídos pelo único pensamento do iminente fim do mundo, tão súbito, tão terrível como o de Sodoma, cuja lembrança as águas do mar Morto continuamente lhes lembravam. Todo o essenismo é como um asfodelo, flor de morte, regada por essas águas. Os Essênios são, para Plínio o Naturalista, “o povo eterno”, gens aeterna (20) e, para Hipólito, autor dos Philosophumena: “o mais antigo, pela religião, de todos os povos do Universo (21) ”. Ambos se enganam. A seita dos Essênios não é uma raça à parte. Seus membros são da mesma origem de Abraão, como todos os outros judeus, e sua aparição na história era recente, mais ou menos 150 anos antes de Jesus Cristo. As raízes do Essenismo, porém, pareciam mergulhar em insondável antiguidade, talvez pré-israelica, pré-cananeia. O historiador que melhor conhece os Essênios é Flávio Josefo, que passou três anos de sua mocidade sob a direção de um velho chamado Banus, Essênio ou Nazareno (as duas comunidades se confundiam). João Batista era um nazareno, “consagrado a Deus desde o seio materno (Lc., I, 15.), do mesmo modo que Jesus (Mt., 2, 23.: “ele será chamado Nazareno”). Até no modo de viver, o velho Banus lembra João Batista: usa tanga de cascas de árvore; alimenta-se de frutos silvestres; dia e noite “se batiza” — “mergulha na água fria para se purificar”. Estas duas últimas palavras são as mesmas que Josefo emprega a respeito do Batista (23). Com a mesma coragem e o mesmo ardor, os Essênios, essas crianças “atemorizadas pela palmatória do mestre”, obcecados pelo medo do Fim, se “batizam”, mergulham na água, a fim de escapar à iminente consumação pelo fogo — à segunda Sodoma. “Era uma figuração (a arca de Noé, quando do Dilúvio) do batismo (imersão) que agora vos salvava”, poderiam dizer os Essênios, como dirão os cristãos (I Pedro, 3, 21).
IX
“Seu gênero de vida lembra o que Pitágoras ensinou aos helenos”, observa Josefo (24). Comunhão de bens, celibato, renúncia à alimentação animal e aos sacrifícios sangrentos, roupas de linho branco, adoração do sol como imagem viva de Deus, doutrina do pecado original e do “corpo — prisão da alma”, prova de três anos antes da iniciação e juramento terrível de calar os mistérios da seita; sua magia, sua teurgia, sua simbólica, tudo deles é pitagórico (25)· “Eu me vesti com vestes brancas, Eu me purifiquei de mortes e nascimentos, E eu tomo cuidado que nenhum alimento Animal toque em minha boca”, poderiam dizer os Essênios como os Cretenses de Eurípides (26). Conhecendo tudo isso, é difícil crer que esses Essênios sejam judeus e não, com efeito, “uma raça à parte”.
X
O monte Carmelo, que se avista da colina de Nazaré, o primeiro batizador pelo fogo, fez do céu descer a chama sobre o altar rodeado e inundado de água (I Reis, 18, 38), foi visitado, mais ou menos trezentos anos depois de Elias, por Pitágoras, discípulo de Orfeu — do Dionísio Cretense (27). Além do próprio Flávio Josefo, há ali uma alusão à ligação possível entre os mistérios-mitos essênios, os antigos mistérios do Oriente e o mistério, ainda mais antigo, do Ocidente: o altar rodeado de água e o fogo que a ele desce. Não será a imagem da Atlântida, da Ilha destruída pelo fogo? A Ilha dos Bem-aventurados, situada alhures além do Oceano, no Extremo Ocidente, no “Poente de todos os sóis”, é o paraíso essênio (28). Josefo fala disso em termos tais, que como ele, ninguém pode deixar de pensar na “Atlântida” de Platão e nestes versos de Horácio: “Somos todos atraídos pelo Oceano que banha a Ilha dos Bem-aventurados”, e nos versos de Homero sobre os Campos Elísios: “Onde correm serenamente os dias sem a tristeza do homem onde não há neve, nem chuva, nem nevoeiros de inverno, onde sopra o Zéfiro de suave murmúrio, que, com suave frescura, o Oceano envia aos Bem-aventurados (29)”. Que os Essênios o soubessem ou não (aliás, poderiam saber alguma coisa pelo livro de Enoque —. “Atlas”); que se recordassem do nome de “Extremo Ocidente” ou que o houvessem esquecido, não pode haver dúvida de que o paraíso essênio era a “Atlântida” (30). Habilíssimos jardineiros e hortelões, os Essênios procuravam avidamente no deserto o menor trato de terreno fértil, a menor gruta regada pela água, a fim de plantarem vergéis e hortas, mesmo pequenos jardins, canteiros com flores, legumes, plantas medicinais — pequenas “Ilhas dos Bem-aventurados”, pequenas “Atlântidas”, no meio de um mar morto de pedras, salinas e areais. A alma de todo Essênio era um desses ilhéus no deserto do mundo, espécie de paraíso no inferno.
XI
Se é certo que a alma noturna da Atlântida — da Pré-história — é a “magia”, a “teurgia”, o poder vivo, “orgânico”, sobre a natureza, que se opõe à nossa alma diurna, à “mecânica”, nisto também os Essênios se assemelham aos “ Atlantes”, aos homens da Pré-história. Cada dia oram para que “o sol nasça”, conjeturam-no por meio de uma prece-encantamento mágica, “legada pelos antepassados”, como se tivessem medo que ele se deitasse para sempre (31). É o mesmo temor que deviam sentir os homens das cavernas, nossos ancestrais, “essas crianças atemorizadas”, nas trevas da noite glacial, após a destruição da primeira humanidade, após a Atlântida-Dilúvio. Eis o sentido em que os Essênios, recentes na história, eram talvez no mito-mistério um “povo eterno”, gens aeterna.
XII
A chave, tão miseravelmente perdida para nós, do mistério de fogo e água do Batismo — da imersão na Água, no Fogo, no Espírito — se encontra talvez nesse resto da primeira humanidade, milagrosamente salvo, surgido das profundezas da Atlântida submersa. Todas as tardes, ao pôr do sol, os Essênios mergulham na água, “se batizam”, conta Josefo, e, logo após, vestidos de roupas brancas, entram num aposento especial, secreto, somente acessível aos iniciados, onde o superior da comunidade, celebrando o segundo mistério sagrado, benze o pão e a água (a água substitui igualmente o vinho na Eucaristia dos proto-cristãos), que os irmãos saboreiam em respeitoso silêncio (32). Batismo-Comunhão: aqui a ligação entre os dois sacramentos é evidente; não é menos evidente que ambos os sacramentos são pré-cristãos, vindo talvez dessa mesma antiguidade, insondável para nós, cujo vestígio milagrosamente conservado é “o povo eterno dos Essênios. Eis o que significa a expressão de Salústio o Místico: Não foi uma vez, porque é sempre (33). Ou, falando com maior exatidão: isto foi uma vez, isto é sempre. Ou ainda, segundo a palavra de São Paulo: “Isto é a sombra do futuro, mas o corpo está no Cristo (Col., 2, 17.). Ou, enfim, conforme a expressão de Schelling: “A história universal é um éon de que o Cristo é o conteúdo eterno, o começo e o fim, a causa e o fim”.
XIII
Melhor talvez do que nenhum dos ex-cristãos que nós somos, os Essênios teriam compreendido o sentido de todos esses símbolos: o Peixe das Catacumbas levando nas águas do Batismo o pão e o vinho da Eucaristia; “a raça divina do Peixe celeste, recebendo o manjar doce como o mel”; o Peixe de Festos, com a Pomba, beliscando o pólen de mel nos pistilos do Lótus celestial, e, na visão de Santa Tereza, a Pomba de escamas nacaradas com sua apavorante alegria. Mas, mesmo que os Essênios tivessem compreendido tudo isso, não teriam ouvido nem visto o que viu e ouviu, quando o céu se abriu acima de Betabara, o só, o único de toda a humanidade, do começo ao fim dos tempos, o Homem Jesus.
XIV
Conhecia ele os Essênios? Em todo o caso, João Batista devia conhecê-los. Poderia ignorá-los, ele, que viveu tantos anos a seu lado, no mesmo deserto, ele, que, como eles, se calava e esperava, ele, que, como eles, batizava, anunciando o castigo do mundo pelo fogo e a redenção pela água do batismo? É mais do que incrível que jardineiros como os Essênios, ávidos buscadores de terrenos férteis no deserto, não tenham descoberto a garganta do Kerith, esse paraíso terrestre. E, se ali foram, João Batista certamente os conheceu e Jesus também, provavelmente. O Evangelho guarda sobre os Essênios um estranho silêncio, mas talvez natural como sobre alguma coisa muito paralelamente próxima e maravilhosa, separada dele por esse muro cristalino de silêncio que separa João o Batista de Jesus o Batizado. Talvez os discípulos de João Batista tenham, como os Essênios, esse aspecto de “meninos atemorizados pela palmatória do mestre”, porém não os de Jesus, que são os “filhos da alcova nupcial enquanto o esposo estiver com eles”; somente terão esse aspecto mais tarde, quando o esposo lhes for arrebatado (Mt., 9, 15.); tanto que, desde o século IV, o historiador eclesiástico Eusébio não poderá mais distinguir os Essênios do Egito, os Terapeutas, dos cenobitas cristãos. Mas, se Jesus mesmo não conhecia os Essênios, respirou o mesmo ar que eles toda a sua vida. “O que aconteceu nos dias de Noé acontecerá também na vinda do Filho do Homem (Mt., 24, 32.)”. Se o dilúvio é a “Atlântida”, é dela que Jesus fala nessa palavra sobre o Fim, palavra que para ele tudo decide. Lembremos que a via marítima, Via Maris, partindo do Extremo Ocidente, das Colunas de Hércules, do Atlântico, onde pereceu a Atlântida, para ir pelo Egito para o Norte, percorria a colina de Nazaré e o lago de Tiberíades — o caminho de toda a vida de Jesus. “Quando os profetas falam, eis que sou eu mesmo quem fala”, diz um agraphon do Senhor (35). Onde estão, pois, os profetas? Somente em Israel? Não, na humanidade inteira: “Muitos virão do Oriente e do Ocidente· (Mt., 8, 11.)”. “Aquilo mesmo que se denomina agora religião cristã jamais cessou de existir, desde a origem do gênero humano até que o próprio Cristo se encarnasse”, diz admirável trecho de Santo Agostinho (36). O anel perdido que une o Cristo à “religião cristã” existente antes dele — eis o que é o Essenismo. Talvez o primeiro raio do Cristo já ilumine as vestes brancas dos Taciturnos de Engadi. “O Cristo dos pagãos é o sol dos cegos” (Schelling). Eles caminham cegamente para ele, sem o verem ainda, porém já se fazem batizar nele, comungam nele desde o começo dos tempos; porém somente o viram no dia 6 de janeiro do ano 29, quando os céus “se abriram” sobre o Jordão.
XV
“Ora, aconteceu naquele tempo que Jesus veio de Nazaré, cidade da Galileia, e foi batizado por João, no Jordão. Logo, ao sair da água, viu os céus se abrirem e o Espírito descer sobre ele, como uma Pomba. E baixou dos céus uma voz, que dizia: Tu és o meu Filho bem amado, em quem pus toda a minha afeição (Mc., 1, 9, 11.)”. Este testemunho de Marcos, provindo de Pedro, testemunha provável do que se passara em Betabara-Betânia, Mateus e Lucas repetem quase sem nada acrescentar, limitando-se a modificá-lo, quase imperceptivelmente à primeira vista, porém muito profundamente, se se examinar bem, e de modo bastante significativo. Jesus “viu”. O testemunho de Marcos-Pedro cifra-se a essa única palavra. Fosse o que fosse, Jesus foi o único a ver e foi por ele, com os olhos dele, que Pedro viu nesse mesmo momento, ou ouviu contar mais tarde. Terá outro qualquer visto? Essa pergunta nem ocorre ao espírito de Pedro, testemunha provável, sem dúvida porque isso lhe saiu naturalmente da memória, como do campo de visão de Jesus mesmo tudo desapareceu naquele momento: João e o povo. Ficou somente ele face a face com O ou com Aquele que via. Que significa, pois, esse “ele viu”? Isso aconteceu ou não? Se nos contentamos em acreditar, se não sabemos, se não vemos mesmo que isso aconteceu mais realmente do que tudo o que pode acontecer no mundo, não nos afastaremos uma linha da “mitologia”, da “mitomania” de nossos sábios gênero Smerdiakov: “Tudo que aí está escrito não passa de mentiras”. Em outros termos: que se passou com Jesus em Betabara: simples “visão espiritual”, Theoria noetiké, como o supõem Orígenes e outros doutores, ou algo mais, uma brecha aberta sobre o outro mundo, um evento impossível, inconcebível para nós e, contudo, mais real do que tudo o que é possível, ao mesmo tempo exterior e interior, intelectual e sensual, espiritual e carnal, espécie de passagem das três dimensões à quarta, alguma coisa que se não pode exprimir exatamente senão com uma única palavra: o milagre?
XVI
Se, para responder a essa pergunta, se examinam mais de perto as dessemelhanças apenas sensíveis de Marcos e Lucas, vê-se que enorme diferença de qualidade há entre suas duas experiências religiosas: “Ora, como todo o povo se fazia batizar, Jesus também se fez batizar. Enquanto ele orava, o céu se abriu. E o Espírito Santo desceu sobre ele, em forma corporal, como uma pomba; e baixou do céu uma voz… (Lc., 3, 21-22.)”. Em Lucas, não é só Jesus quem “vê” mas “todo o povo”. O ponto de apoio se transportou de um só sobre todos, de dentro para fora. O que era, ao mesmo tempo, interior e exterior, transparente, torna-se unicamente exterior, impenetrável. O que era, ao mesmo tempo, espiritual e sensual, fica sendo somente sensual. Da extremidade da terra, do horizonte que separa os dois mundos, desse último, delgado como o gume de uma lâmina, em que se abre a brecha que leva deste mundo ao outro, das três dimensões à quarta, Lucas recai neste mundo, nas três dimensões, antes de ter tido tempo de lançar um olhar ao outro lado. Em Marcos-Pedro, como no próprio Jesus, o instante fulminante da visão-brecha é um ponto quase geométrico sobre a mesma extremidade, sobre o derradeiro limite entre o tempo e a eternidade: “logo-súbito, quando saía da água, ele (Jesus) viu os céus se abrirem”, enquanto que, em Lucas, é a linha do tempo que dura: “enquanto Jesus orava, o céu se abriu”. Aqui ainda, do traço fino como o gume de uma lâmina, Lucas volta para trás, no tempo sem ter podido lançar um olhar pela brecha da eternidade. Em Marcos, Jesus vê “o Espírito descer sobre ele como uma pomba”. Esse “como” pode ter dois sentidos: duas geometrias, dois mundos. Ou o Espírito tem o aspecto de uma pomba ou seu voo somente é suave e harmonioso como o voo de uma pomba; o hálito do Espírito parece o doce bater de asas da pomba. Em Lucas, só se conservou um desses dois sentidos e desabrochou; o outro desapareceu completamente e, com ele, a dupla geometria, a dupla medida de todo o evento. O Espírito Santo desceu sobre ele, em forma corporal, como uma pomba”. Aqui, já tudo se coagula, se torna pesado. O Espírito ainda se não “metamorfoseou” em Pomba, mas está a pique disso, como — coisa terrível de se dizer — os deuses, nas “Metamorfoses” de Ovídio, se mudam em animais. Em breve, a Pomba do Espírito será esculpida no mármore, como pelo cinzel pagão dos helenos. Não sabemos mais, nem nos lembramos mais — o próprio Lucas se lembrará? — por que o Altíssimo se humilha assim, porque o Espírito se torna um animal. Os signos se extinguem, se obscurecem, perdem sua ardente transparência, cada vez menos manifestam o que há por trás deles. Pertinho de Lucas, se não já nele, o milagre vai tomar corpo, endurecer-se, materializar-se· O próprio Lucas fica ainda no mistério — no que foi; mas, em qualquer parte, junto dele, é já o “mito” — o que não foi.
XVII
Entre Marcos e Lucas, eis Mateus. Vê-se também, segundo seu testemunho, de onde tudo vem e aonde tudo vai: “Logo que foi batizado, Jesus saiu da água; e eis que os céus se abriram e ele viu o Espírito de Deus descer como uma pomba e vir sobre ele (Mt., 3, 16.)”. Aqui, o ponto de apoio sobre que repousa todo o testemunho está ainda em Jesus, no que ele vê. E o instante fulminante, a brecha do tempo na eternidade, o duplo sentido na aparição da Pomba-Espírito, parece que se conservaram melhor. Mas já tudo aí não está; verifica-se pela voz vinda do céu e dirigindo-se não mais a Jesus somente: “Tu és meu Filho bem amado”, mas, senão a todos, pelo menos a duas pessoas, ao Batista e ao Batizado: “Este é meu Filho bem amado (Mt., 3, 17.) ”. Se em Mateus o centro de gravidade ainda não foi mudado, já se moveu, vai passar de Marcos a Lucas, do mistério ao mito.
XVIII
Como em muitas outras circunstâncias, João, a derradeira testemunha, volta a Pedro, à primeira testemunha. De novo, voa com divina leveza, para essa linha fina como o gume de uma lâmina, em que se abre a brecha, ao mesmo tempo espiritual e sensual, interior e exterior, do tempo sobre a eternidade, das três dimensões sobre a quarta. “João (Batista) deu ainda este testemunho: “Eu vi o Espírito descer do céu como uma pomba e pairou sobre ele” (Jo., 1, 32.)”. Aqui, porém, não é mais o testemunho do próprio Jesus, é somente o de João, e não mais no presente, sim no passado: para João, o instante fulminante do milagre é inexprimível ou, então, foi esquecido, se perdeu.
XIX
Além de nossos quatro Evangelhos, lemos ainda três outros testemunhos sobre o milagre de Betabara de igual autenticidade histórica e muito pouco posteriores (uma ou duas gerações); três evangelhos, não falsos, mas secretos, “Reminiscências dos Apóstolos”, segundo a palavra profunda de Justino. Todos três falam do mesmo acontecimento que, sem ter passado inteiramente em silêncio, não foi, em dois mil anos de cristianismo, ouvido quase por ninguém: a aparição da luz durante o batismo. “Essa ablução (batismo) chama-se iluminação, porque os que a recebem ficam com o espírito iluminado”. É o que diz Justino, recordando-se ainda dessa aparição da Luz, talvez porque, na sua mocidade pagã, fora também iniciado nos mistérios em que se conhecia bem essa Iluminação (38). Photismos — é essa mesma palavra que designava o mais sagrado episódio dos mistérios de Elêusis, que se realizava logo após a “descida ao inferno”, Katabasis, correspondente à descida do batizado na água, onde o velho Adão morre e renasce (43). A palavra “luz” é repetida seis vezes nos cinco versículos do primeiro capítulo do IV.° Evangelho, em que se fala de João Batista: “a vida era a luz dos homens”; “a luz brilha nas trevas”; João “veio para dar testemunho da Luz”; “Ele mesmo não era a Luz, mas devia dar testemunho à Luz”; “esta era a verdadeira Luz”. Pode-se dizer que se realiza já no próprio Evangelho o milagre, apagado nos nossos olhos cegos, da Luz de Betabara — da iluminação de Elêusis. Deslumbrado na estrada de Damasco por essa luz, “mais brilhante do que o sol”, Saulo ficou cego e foi Paulo quem recobrou a vista. É ainda a mesma luz que ilumina Santa Tereza pouco antes de sua visão da “Pomba com asas de escamas”, e quantos outros santos antes e depois dela! Pode-se dizer que é essa aparição da luz que constitui a primeira experiência dos santos. Tereza fala-nos de um “brilho que não deslumbra”, de uma “brancura tão suave”, com tanta simplicidade, tanta precisão experimental que é necessário ser um Smerdiakov sábio para não acreditar, não ver que não é “uma alucinação da vista”, mas coisa realmente acontecida· “Diante dessa luz, o sol perde de tal forma seu brilho que se desejaria não mais abrir os olhos. Há entre essas duas luzes a mesma diferença que entre uma água muito límpida, correndo sobre cristal e refletindo o sol, e uma água turva, correndo na terra sob o céu enfarruscado. Também essa luz divina se não assemelha em nada à do sol; somente ela parece natural e, junto dela, é a do sol que parece artificial. E o Senhor a faz aparecer tão bruscamente que, se fosse preciso unicamente abrir os olhos para vê-la, não teríamos tempo; mas, que importa que os olhos estejam abertos ou fechados, se nosso Senhor quer que a vejamos? Fiz muitas vezes a experiência”, diz a Santa (44). A primeira experiência foi feita em Betabara e anotada nas três “Reminiscências dos Apóstolos” que não acharam cabimento dos nossos Evangelhos.
XX
A primeira reminiscência se encontra no “Evangelho dos Ebionitas”, os “Pobres de Deus”, que são os primeiros discípulos do Senhor: “Ora, pois, — enquanto o povo se fazia batizar por João, Jesus veio também e se fez batizar, e, quando saía da água, os céus se abriram e ele (Jesus) viu o Espírito Santo, em forma de pomba, descer e entrar nele. E houve uma voz vinda do céu, dizendo: Tu és meu Filho bem amado, em quem pús minha benevolência. E ainda: Hoje eu te gerei. E logo esse lugar foi iluminado por uma grande Luz. E, vendo-a, João perguntou a Jesus: Quem és tu, Senhor? E, de novo, houve uma voz do céu, dirigindo-se a ele (Jesus): Este é o meu Filho bem amado, em quem pús toda a minha benevolência. E, prosternando-se a seus pés, João disse: Eu é que devo ser batizado por ti, Senhor. E ele (Jesus) o impediu, dizendo: Deixa porque, assim, devemos cumprir tudo (40)”. A segunda reminiscência se acha no “Evangelho dos Hebreus”, que é talvez o original aramaico ou a fonte do nosso Mateus: “Aconteceu, quando Jesus saía do rio, que o Espírito Santo, em sua plenitude, desceu e repousou sobre ele e lhe disse: Meu Filho, em todos os profetas eras tu que eu esperava para vir repousar em ti, porque és meu repouso, meu primogênito que reina pela eternidade (41)”. Embora este fragmento nada diga da aparição da luz, pode-se concluir que isso estava implícito, em vista de se referirem ao fato dois antiquíssimos códices latinos do Evangelho segundo São Mateus, o Verselense e o Sangermanense, como se os redatores houvessem compreendido, a despeito do Cânone, que o Batismo não podia ser obscuro. No primeiro códice: “Uma grande luz jorrou da água e iluminou tudo em redor, tanto que os que ali se achavam ficaram apavorados”. E quase a mesma coisa no segundo: “Uma grande luz jorrou da água (42)”. É muito provável que, no Evangelho dos Ebionitas, a “Fonte do Espírito”, o fogo que desce sobre Jesus, caia do céu em torrentes. O terceiro testemunho está num fragmento conservado por Justino das “Reminiscências dos Apóstolos”, dos Evangelhos que desconhecemos: “.. .No momento em que Jesus entrava na água, saiu um fogo do Jordão, e, no momento em que saia, o Espírito Santo voou sobre ele como uma pomba (43)”.
XXI
Essa chama do círio batismal queimando diante da face do Senhor foi assoprada na Igreja, no cristianismo e até no Evangelho; felizmente esqueceram de fazê-lo nesse recanto escuro e remoto — nos Evangelhos apócrifos, rejeitados pela Igreja. No milagre do fogo de Elias, no monte Carmelo, a água é absorvida pelo fogo, enquanto que aqui, no Batismo, o fogo é absorvido pela água. A Luz do Batismo se apagou e todo o cristianismo se obscureceu: suas águas escuras, mortas, correm para o mar Morto. O Batismo tornou-se de água, de lágrimas, batismo sem fogo, sem alegria, tão fácil de esquecer que nos lembramos tanto de nosso batismo quanto de nosso nascimento. Mortos, não nos recordamos mais que “a vida era a Luz dos homens” (Jo., I, 4.); cegos, não vemos mais que “a luz brilha nas trevas e as trevas não a receberam” (Jo., I, 5.).
XXII
Aquele que batiza pelo fogo poderia não ser batizado pelo fogo? Só isso atestaria a autenticidade histórica do testemunho dos Evangelhos não admitidos no Cânone, sobre a aparição do Espírito-Fogo. Mas seu rasto, inapagável como uma queimadura, igualmente se conservou nos nossos Evangelhos canônicos — na contradição entre as duas lições: a, mais tardia, de Lucas e Mateus: “o Espírito desceu sobre ele”, e a primeira, em Marcos, segundo os antigos códices pré-canônicos: “o Espírito entrou nele” (44). Se o Espírito desce sob forma corpórea, como uma pomba, não é possível compreender nem figurar como o corpo de uma pomba entra no corpo de um homem. Eis porque o primitivo nele foi substituído, “corrigido”, posteriormente por sobre ele. Todavia, se o espírito é o Fogo, o Relâmpago, compreende-se ou pelo menos se pode imaginar que o fogo tenha entrado em Jesus. Nos séculos IV e V, lembravam-se ainda que a Pomba era branca (45). O trêmulo cintilar da Luz de inefável alvura ora é figurado pelas “escamas de peixe”, ora pelas “penas da pomba”, enquanto que o cristal da branca Luz concentrada é o Peixe-Pomba de alvura fulgurante. Deus disse, no começo da criação: “Que a luz seja; — e a luz foi (Gen., 1, 2.)”. A luz aparecida no começo do mundo apareceu ainda no seu meio, ao meio-dia, minuto por minuto, com precisão astronômica, quando o sol entrou no signo do Peixe-Pomba. Eis um dos dois segredos perdidos do Batismo: “o Espírito é Luz”; e eis o segundo:
XXIII
“Tu és meu Filho bem amado, Eu te gerei hoje”. EGO SÉMERON GEGÉNNEKASE. Isto está no antigo códice Cantabrigense D, redigido segundo um arquétipo de 150, assim como nos códices italianos, enquanto que nosso texto canônico, que data do século IV, dirá: “Tu és meu Filho bem amado, em quem pús toda a minha benevolência (Lc., 3, 32.)”. A autenticidade da primeira versão é atestada por todos os Padres, de Justino a Clemente de Alexandria e Jerônimo (46). É muito pouco provável que Lucas tivesse podido conservar essa primeira versão, se a não houvesse encontrado numa fonte pré-sinóptica, porque a contradição é demasiado flagrante, demasiado “escandalosa”, entre as duas Natividades, a de Betabara e a de Belém, entre o batismal: “Eu te gerei hoje”, e o anunciador: “O Espírito Santo baixará sobre ti… Por isso, o Santo Menino que nascerá será chamado Filho de Deus” (47). Portanto, como e quando o Filho de Deus, o Cristo nasceu? Ao mesmo tempo que Jesus, em Belém, ou depois de Jesus, em Betabara, segundo ensinam os primeiros docetas judaico-cristãos: “Foi somente no Jordão, ao mesmo tempo que o Espírito Santo, que o Cristo entrou em Jesus” (48) ? Eis porque, desde que a concepção virginal se tornou um dogma imóvel, não sendo mais um milagre ao mesmo tempo interior e exterior, mas somente exterior, sem brecha aberta para outra realidade, desde que caiu da história mística na história somente, a contradição entre os dois nascimentos se tornou um “escândalo” tão flagrante e insuportável que a Igreja, para lhe pôr termo, foi forçada, apesar dos irrecusáveis testemunhos de todos os Santos Padres, apesar do próprio Evangelho, a substituir a antiga lição autêntica por uma nova lição não autêntica. Depois das palavras: “Tu és meu Filho bem amado”, as palavras “em quem pús toda a minha benevolência” só fazem repetir, enfraquecendo-o, o que já foi dito, porque a benevolência é menos do que o amor: isto equivale a dizer que a água é húmida e o globo, redondo. As maiores palavras que jamais foram ditas no mundo dão lugar a palavras destituídas de sentido. Para não ouvir do Espírito palavras incômodas, “escandalosas”, os homens o reduziram ao silêncio.
XXIV
Ninguém teria ousado fazê-lo durante a segunda ou a terceira geração após Jesus Cristo, na época em que vivia Justino Mártir, que ainda lia, não só no Evangelho de Lucas, como nos outros Evangelhos que não chegaram até nós, as verdadeiras palavras do Espírito. Entretanto, como se já pressentisse o “escândalo” possível, Justino procura, senão vencê-lo, pelo menos afastá-lo, atenuá-lo: “Foi preciso que se cumprisse o nascimento (o segundo), para a raça dos homens, no momento em que, para eles, começou o conhecimento d’Ele, “gnosis“ (49)”. Isto é verdadeiro e profundo, mas a contradição não foi totalmente suprimida, foi somente transferida da história para o mistério. O Espírito diz com muita clareza e precisão: “Eu te gerei hoje”, dando a entender que o dia de Betabara é, em certo sentido, o primeiro e o único, não só na eternidade, como ainda no tempo, não sendo de modo algum uma repetição simbólica do dia de Belém. É igualmente muito claro que, na terra, um homem terrestre, fosse embora o próprio Cristo, não podia nascer duas vezes no tempo. Por conseguinte, somente um de seus nascimentos é realmente carnal e o outro é unicamente simbólico, figurado, ou, o que será motivo de escândalo para os docetas, “aparente, falso”. E, de novo, a mesma pergunta se impõe: qual dos dois nascimentos é o real no tempo, na história? Aqui também, o aguilhão do “escândalo” foi escondido e não arrancado.
XXV
Parece bem que Lucas, pressentindo a contradição possível entre Betabara e Belém, não procura resolvê-la, contentando-se em mostrar que a vê e não a teme, quando põe a genealogia de Jesus, não antes de Belém, o que seria natural, como o faz Mateus, porém depois do Batismo, após o segundo nascimento. O Espírito diz a Jesus: “Eu te gerei hoje” e imediatamente: “Jesus era, segundo se cria, filho de José… Filho de David… Filho de Adão, filho de Deus (Lc., 3, 23; 31; 38.)”. Nesse segundo se cria se encontra ainda a mesma pergunta sem resposta: de quem é filho o Cristo segundo a carne? Qual é sobre esse ponto o pensamento, não dos outros, mas do próprio Lucas? Ainda aqui, o aguilhão do escândalo está somente imobilizado, enfeitiçado, mas não morto.
XXVI
“Que pensais do Cristo? De quem é filho? Mt., 22, 42.)”. A essa pergunta que dirigirá mais tarde aos Fariseus, o próprio Jesus responde desde sua conversa com Nicodemos. As iniciações aos mistérios se realizavam à noite; foi também à noite que Nicodemos foi ver Jesus (Jo., 3, 2.) e o Divino Mistagogo o iniciou no seu mistério — no segredo do Batismo, de seu segundo nascimento, segredo de todos os mistérios pré-cristãos, que é o novo nascimento, palingenesis. “Em verdade, em verdade te digo, se um homem não nasce de novo, não pode ver o reino de Deus”. Mas Nicodemos não compreende como não compreenderão os cristãos, escandaliza-se tanto quanto esses se escandalizarão: “Como pode um homem nascer, se já é velho? Pode retornar às entranhas de sua mãe e nascer segunda vez? Jesus respondeu: Em verdade, em verdade te digo, se um homem não nasce de água e de Espírito, não pode entrar no reino de Deus”. O primeiro que ali entrou, o próprio Cristo-Rei, não poderia entrar de outro modo. “O que nasceu da carne é carne, e o que nasceu do Espírito é espírito”. Que o Homem Jesus fala aqui não só de todos os homens, mas também dele mesmo; que o Filho do Homem não se separa mais aqui da humanidade no seu nascimento terrestre do que em toda a sua vida e sua morte terrestres, vê-se pelo que se segue: “Em verdade, em verdade te declaro que nós atestamos o que vimos”. Que esse “nós” significa “eu”, prova-o igualmente a continuação: “Se não credes, quando vos falo das coisas terrestres, como crereis, quando vos falar das celestes?” Ele falou de seu nascimento terrestre, não o acreditaram, e, quando falar de seu nascimento celeste: “Ninguém subiu ao céu, a não ser aquele que desceu do céu, o Filho do Homem que está no céu”, ainda menos acreditarão (Jo., 3, 3-13.).
XXVII
Outro segredo de todos os mistérios pré-cristãos é que a iniciação é uma morte. “A palavra e a coisa se parecem: teleutan e testhai — morrer — ser iniciado”, diz Plutarco, falando da “descida ao inferno” eleusiniana, que correspondia à imersão batismal (50). Nicodemos também é iniciado por Jesus nesse segundo mistério: o Batista é a Cruz. “É preciso que o Filho do Homem seja elevado” — sobre a cruz. “De tal modo Deus amou o mundo que deu seu Filho único” — à morte (Jo., 2, 3-16.). “Eu vim trazer o fogo à terra e como desejaria que já estivesse aceso! Há um batismo com que devo ser batizado e como me angustio até que se realize! (Lc., 12, 49-50.)”. dirá o Senhor na sua derradeira viagem a Jerusalém, ao Gólgota. Houve um batismo na água, haverá um no sangue; sempre a mesma gradação ascendente: Água — Sangue — Fogo — Espírito. E, de novo, na conversa noturna com Nicodemos: “A LUZ veio ao mundo”. A Luz: Jesus repete cinco vezes a palavra em dois versículos, como o Evangelista João a repete seis vezes nos cinco versículos em que se refere ao Batista. O círio batismal da Iluminação, apagado pela Igreja, brilha ali também; sua chama jorra novamente no Evangelho. E, logo após a conversa com Nicodemos, lemos: “Jesus… aí (na Judeia) batizava… João batizava também em Enon (Jo., 3, 22-23.)”. É preciso ser cego para não ver que todo esse Mistério Divino, a conversa noturna com Nicodemos, é consagrado ao mistério do Batismo, do segundo nascimento de Jesus. “Como pode ser isso?” pergunta Nicodemos, que continua a não compreender, como não compreenderão os cristãos. Os pagãos, Essênios, Pitagóricos, Órficos, todos os iniciados nos mistérios, teriam talvez compreendido; os Adâmicos-Atlantes, o “mais antigo povo do mundo”, a raça eterna, o resíduo da primeira humanidade milagrosamente conservado na segunda, talvez também compreendessem.
O mistério da Natividade — da Anunciação — brilha através do mistério do Batismo. “De quem é Filho o Cristo?” A essa pergunta de Jesus, do mesmo modo que à pergunta de sua mãe: “Como poderá isso acontecer, se não conheço homem?” o Espírito responde na aparição de Betabara: “Eu te gerei hoje”. Assim fala na eternidade o Espírito, a Mãe Celeste; assim poderia falar no tempo Maria, a mãe terrestre. Aqui, não há mais contradição entre os dois nascimentos, o aguilhão do escândalo foi retirado. A lembrança do original aramaico se conservou em grego nos quatro testemunhos de nossos Evangelhos canônicos, em que o símbolo do Espírito não é um pombo, peristeras, mas uma pomba, peristera. “Deus é Espírito (Jo., 4, 24.)”, essas palavras na boca de Jesus, que se exprimia em aramaico, não podem deixar de significar que Deus é, não somente Ele, Pai, mas também Ela, Mãe. Os fiéis já esqueceram isso, porém os heréticos ainda se lembram: “Desce, Espírito Santo! Desce, Pomba Santa! Desce, Mãe misteriosa!” Tal é a prece de batismo e de eucaristia nos “Atos de Tomás” (51). Do mesmo modo os gnósticos Ofítas são batizados e comungam em nome do Espírito — Mãe (52). “Minha Mãe, o Espírito Santo”, MENTER ÉON TO AGON PNEUMA, dirá, evocando o que se passou logo após o Batismo, o próprio Jesus, no Evangelho dos Hebreus. Na vida pública do Filho — o Pai; na vida oculta — a Mãe. Todo Jesus é conhecido no Pai; todo Jesus é Desconhecido na Mãe. Se o Filho tem um Pai celeste, por que não pode ter uma Mãe celeste? E, se tão horrorosamente esquecemos o Filho e o Pai, não foi porque esquecemos a Mãe? Mais do que nunca, a Virgem Maria, a mãe terrestre do Filho, é, neste momento, a esperança da humanidade. Não é em vão que os homens a adoram: só Ela os conduzirá à Mãe celeste — ao Espírito.
Três humanidades: a primeira desaparecida antes de nós — o reino do Pai; a segunda, a nossa, próxima da salvação ou da morte — o reino do Filho; a terceira, depois de nós, salva — o reino do Espírito-Mãe. É por isso que há três pombas: a primeira acima do Caos, a segunda acima do Dilúvio, a terceira acima das águas do Batismo.
“Meu Filho, em todos os profetas, eras tu que eu esperava para me repousar em ti, porque és meu repouso, minha doçura, eu me repouso em ti, porque és minha paz, meu repouso”, diz ao Filho a Mãe — o Espírito. Eis quando se realiza a visão profética de Elias o Ardente — o Doce, no monte Horebe: dentro, o milagre dos milagres ■—■ o eterno e suave clarão, a doce luz do Filho vinda da Mãe. “Porque, como o relâmpago parte do Oriente e brilha até o Ocidente, o mesmo acontecerá à vinda do Filho do Homem (Mt., 24, 27.)”. O eterno e doce Relâmpago do Espírito pairava acima do abismo no começo do mundo; o mesmo relâmpago iluminará seu Fim. Tudo o que será do começo ao fim do mundo Jesus viu no instante em que os céus se abriram sobre ele: a Água — o Fogo — o Peixe — a Pomba — o Espírito — a Mãe — e também o Último, o Inefável — o que nos faria morrer de pavor ou de alegria, mesmo que o não víssemos, se o ouvíssemos.
Houve talvez uma tempestade. O povo viu um relâmpago, ouviu o trovão e nada mais? Não, houve ainda alguma coisa. Nesse momento, como no primeiro encontro de João com Jesus, quando dois olhares, dois raios se cruzaram, toda a gente o sentiu: é Ele. Foi nesse minuto formidável que as forças celestes se desencadearam; as mãos dos Serafins inclinaram o eixo do mundo, o sol entrou no equinócio e o Cristo entrou no mundo.
O Senhor envia às vezes os mais maravilhosos sinais aos pecadores e não aos Santos, a fim de salvar aqueles, diz Santa Tereza. É assim talvez que a nós são enviados todos esses sinais do Fim. Há dois mil anos que o cristianismo dura e ainda ninguém, fora nós, poderia vê-los. Não adianta fecharmos os olhos. Mesmo nos olhos fechados rebrilha o clarão — o FIM.