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Merejkovsky – Jesus Desconhecido (II.10)

Dmitri Merejkovsky – Jesus Desconhecido. Tr Gustavo Barroso. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1935

**PARTE DOIS**

**VIDA DE JESUS DESCONHECIDO**

**X. SEU SEMBLANTE (No Evangelho)**

I

Por mais que nosso coração arda em nós, quando lemos o Evangelho, nele não reconhecemos nem vemos o semblante vivo do Homem Jesus, não porque aí não esteja, mas porque nossos olhos, como os dos discípulos de Emaús, “estão cegos”. Do mesmo modo que as aves noturnas, cegas pela luz do dia, não veem o sol, nós não vemos a face do Senhor no Evangelho. “Nós vos anunciamos a força e a presença, parusia,”, não a “segunda vinda”, porém a “presença” eterna “de Nosso Senhor Jesus Cristo, tendo sido testemunhas, epoptoi, de sua majestade… sobre a montanha santa (II Pedro, I, 16-18.)”, onde seu rosto se “tornou resplandecente como o sol” (Mt., 17, 2.). O sol da Transfiguração — o semblante do Cristo no semblante de Jesus — esse é o ponto equinocial de todo o Evangelho. Assim é na primeira testemunha, Marcos-Pedro, como na última, João: “… O que nós vimos com nossos olhos… nós vos anunciamos também, a fim de que estejais, por vossa vez, em comunhão com o Pai e com seu Filho, Jesus Cristo… e que vossa alegria seja perfeita (I Jo., I, 1-4.)”. “Bem-aventurados os vossos olhos, porque viram (Mt., 13, 16.)”, disse o próprio Senhor, falando da alegria perfeita dos clarividentes.

II

Se historiadores tão curiosos quanto nós tivessem perguntado aos discípulos de Jesus como era seu semblante no dia da Ascensão do Senhor, provavelmente esses não saberiam ou não quereriam lembrar-se, do mesmo modo que um homem que acaba de ser queimado por um raio não sabe ou não quer se lembrar da forma do relâmpago. Em ambos os casos, o próprio fato de fazer essa pergunta mostra que se é incapaz de compreender a resposta, seja ela qual for.

III

Para Pedro, testemunha ocular, o que caracteriza o semblante de Jesus, tal como dele se recorda — vê, é, no rosto divino, a divina força interior, DYNAMIS: “Eu vos anuncio a força de Jesus Cristo”. Todo traço exterior somente poderia limitar, prender essa força e desfigurar o próprio semblante. Por isso, os traços exteriores são completamente banidos do Evangelho. Nele, a imagem carnal do Homem Jesus se constrói, seu rosto vivo nasce, não de fora, mas de dentro. Eis por que o Evangelho nunca descreve o semblante do Senhor, pois o Evangelho todo é que é esse semblante. Um rosto visto num retrato ou num espelho? Não, na água negra de um poço profundo, em que um homem se tivesse olhado e em que seu rosto se tivesse refletido, iluminado de cima pelo sol, enquanto que, em baixo, continuasse escuro, misteriosamente rodeado de estrelas diurnas.

IV

Quando ouvimos a voz de um ente humano sem ver seu rosto, adivinhamos se quem fala é homem ou mulher, menino ou velho, inimigo ou amigo. No timbre da voz ouvimos, vendo, o semblante do que fala. Nos traços — o rosto exterior, o que se vê; nas palavras — o rosto interior, o que se ouve. Conforme o rosto exterior, reconhecemos o interior e vice-versa. “Fala para que eu te veja” — estas sábias palavras são mais justificadas no Evangelho do que em qualquer outra parte: “Bem-aventurados vossos olhos que veem e vossos ouvidos que ouvem (Mt., 13, 16.)”. Assim, o próprio Senhor une seus dois semblantes, o que se vê e o que se ouve, e seus discípulos fazem a mesma coisa: “O que ouvimos, o que vimos com nossos olhos nós vos anunciamos (Jo., 1, 1-2.)”. Em cada uma das palavras de Jesus se encontra seu semblante: ouvi-lo é vê-lo.

V

Toda alma humana que procura o semblante do Senhor no Evangelho é como Maria Madalena que, pela manhã cedo, quando ainda escuro, encontra o sepulcro vazio; procura o morto e se lamenta: “Quem o levou? Onde o puseram?” e não sabe, não vê que está vivo atrás dela. De súbito se volta e o vê, mas não o reconhece. “Mulher, por que choras? quem procuras?” diz sua voz e ela continua a não reconhecê-lo. — Maria! E de repente o reconhece, caindo-lhe aos pés, toda trêmula como antes, quando estava possessa pelos sete demônios; atira-se para ele, quer tocá-lo e não consegue. — Rabuni! (Jo., 20, 11-16.). Oh! por que não podemos, como Madalena, voltar-nos, vê-lo, reconhecê-lo!

VI

A arte é o menor cuidado de Marcos, quando, provavelmente segundo as reminiscências de Pedro, pinta com um sentimento que o maior dos artistas não igualaria — não o rosto de Jesus, porém a “força”, DYNAMIS, que emana desse rosto, na sua irresistível ação exterior sobre aqueles que o rodeiam. A primeira impressão que as pessoas sentem, desde o começo do ministério de Jesus, após a cura de um possesso na sinagoga de Cafarnaum, é um espanto misturado ao medo. “Que é isto? É um ensinamento inteiramente novo! . .. Aquele comanda com autoridade aos próprios espíritos impuros e eles lhe obedecem (Mc., 1, 27.)”. É o mesmo sentimento que, no último dia, experimenta Pilatos, quando, examinando o rosto do Preso, inconcebivelmente calmo diante dele, regiamente mudo, pergunta: “De onde és tu? PODEN EI SU? (Jo., 19, 9.)”. Todos sentem essa força. Ela atrai de longe as almas humanas como o ímã atrai a limalha de ferro. As multidões seguem-no passo a passo. “O povo se ajuntara aos milhares ao ponto das pessoas se esmagarem umas às outras (Lc., 12, 1.)”. Ele as evita, esconde-se. “Jesus não podia mais entrar abertamente numa cidade; porém ficava fora, nos lugares afastados. E vinham a ele de toda a parte (Mc., 1, 45.)”. “Então, disse a seus discípulos que lhe preparassem uma pequena barca, por causa da multidão, para não ser comprimido por ela (Mc., 3, 9.)”. “Mas, logo que desembarcaram, toda a planície de Genesaré se pôs em movimento (Mc., 6, 53-56)”.

VII

Ele atrai as multidões humanas como a lua, as ondas da maré. Que esperam esses homens dele? Sermões, sinais, milagres? Sim, porém alguma coisa ainda: parece que querem simplesmente estar com ele, ouvir-lhe a voz, ver-lhe o rosto, espantar-se, amedrontar-se, alegrar-se do que ele é, porque todos sentem confusamente que nunca houve sobre a terra semblante igual e que talvez jamais haja. Não é preciso provar aos crentes que o movimento provocado por Jesus é sem igual, único na história; porém os próprios incrédulos poderiam compreender isso. Todos os outros movimentos populares, por maiores que sejam, se alargam, enquanto esse se aprofunda; todos roçam o coração humano, esse penetra-o; todos são, segundo a razão humana, mais ou menos razoáveis, esse é perfeitamente “desarrazoado”: seu fim — o reino de Deus na terra como no céu — se não é uma verdade que ultrapassa a razão, é uma completa “loucura”; todos os outros vão até os confins da terra, esse vai além; todos somente se desenvolvem nas “três dimensões”, esse se desenvolve também na “quarta”; todos não passam de incêndios na planície, enormes fogos de palha, esse é uma explosão vulcânica, o fogo primordial que derrete o granito. O movimento provocado por Jesus foi logo reprimido, extinto à primeira faísca; porém, se a chama tivesse jorrado, se fosse propagado, é impossível imaginar como teria acabado. Tudo se passou num pedacinho de chão, num recanto obscuro de longínqua província romana, entre alguns milhares de pobres camponeses e pescadores galileus. E isso somente durou alguns meses, mesmo algumas semanas, pois o Senhor passou todo o resto dos dois ou três anos de seu ministério a evitar o povo, a isolar-se com seus discípulos. Tudo se concentrou em um único ponto, apenas visível, do espaço, em um único instante do tempo. Mas esse ponto, crescendo, abrasará o globo terráqueo; e os homens não esquecerão esse instante até a consumação dos séculos. Parece, às vezes, que, nesse ponto, nesse instante, um simples fio de cabelo separa a humanidade de alguma coisa que é realmente sem exemplo na história e que será para uns a perdição, para outros a salvação do mundo. Eis porque, olhando esse semblante, o mais comum, o mais extraordinário dos semblantes humanos, os homens sentem tanta alegria e tanto medo; todos sentem confusamente que é necessário fazer alguma coisa “depressa, depressa”, ou, como repete, gaguejando, Marcos-Pedro: “logo, logo” — que é necessário matá-lo ou morrer por ele.

VIII

As multidões humanas são escuras vagas rugidoras da maré; seu rosto é a lua tranquila que as atrai. “Tu és meu repouso, minha calma”, diz a seu Filho o Espírito-Mãe. O que há de essencial no seu semblante é que é calmo — o mais calmo, o mais forte do mundo. Pedro lembra-se e Marcos descreve. Uma tempestade sobre o lago de Genesaré. As vagas começam a encher a barca. Os remadores julgam-se perdidos. Mas o Mestre dormia à popa sobre um travesseiro, na embarcação prestes a afundar, como uma criança no berço. “Despertaram-no e disseram-lhe: Rabi, Rabi, não te importa que pereçamos? (Mc., 4, 38, Lc., 8, 24.)”. Ele levantou-se, olhou as águas furiosas, o céu trevoso, e seu rosto ainda ficou mais tranquilo, mais sereno. Disse ao vento e ao mar, como o amo diz ao cão que ladra contra o estranho: “Cala-te, fica quieto!” E o vento cessou subitamente, as vagas se alisaram, como sói acontecer no lago de Genesaré, onde o nordeste, soprando furiosamente pelos desfiladeiros das serras e caindo a prumo sobre as águas, desencadeia súbitos e terríveis temporais, que se acalmam também repentinamente (2). “E houve uma grande calma, GALÉNE MEGÁLE (Mc., 4, 39.)”. A mesma calma de seu rosto. E, olhando essa face familiar e ignota, íntima e estranha, “deles se apoderou um grande medo”, não menor, sem dúvida, do que o que lhes havia posto o perigo por que acabavam de passar. “E diziam uns aos outros: Quem é esse a quem o próprio vento e o mar obedecem? (Mc., 4, 41.)”.

IX

As tempestades interiores humanas também lhe obedecem do mesmo modo que as exteriores dos elementos. Chegando à outra margem, eles deixaram a barca e subiram a escarpa onde começa a triste planície de Gadara, toda de barro avermelhado, semeada de enfezadas touceiras de ervas que parecem as crostas de uma pele inflamada — lugar impuro, antigo cemitério pagão, onde, então, os porcos procuravam seu alimento (3). Apenas ali chegados, viram no plaino escuro e silencioso, sob as nuvens negras e baixas, desabar sobre eles outra tempestade ainda mais terrível. Não perceberam a princípio se era um turbilhão, um animal ou um homem que se precipitava para eles, soltando gritos inauditos, horripilantes, nem de gente, nem de bicho. De súbito, compreenderam: era o terror daqueles lugares, o demoníaco de Gadara, tão furioso que ninguém ousava passar por aquele caminho (Mt., 8, 28.) e cuja força desmesurada não permitia que o amarrassem, pois rompia as cadeias, quebrava os grilhões e fugia para longe dos homens, para o deserto, onde ficava noite e dia pelos túmulos e montes, urrando e se magoando com pedras (Mc., 5, 4-5.). Vendo-o correr em sua direção, os discípulos se esconderam atrás das rochas e teriam fugido, se não fosse a vergonha de abandonar seu mestre. Este, de pé, esperava imóvel. Todos fecharam os olhos com pavor, para não ver. Os gritos, o tropel se aproximavam cada vez mais. De repente, tudo ficou calmo. Abriram os olhos e viram: lastimável, inofensivo, nu, magoado, coberto de feridas, o homem estava caído aos pés de Jesus e este, curvado para ele, olhava-o como uma mãe olha o filho doente. Ninguém se lembrou mais muito bem do que em seguida se passou — foi algo de muito extraordinário, terrível, maravilhoso. Lembraram-se somente que, depois das duas primeiras tempestades, a dos elementos e a do homem, houve uma terceira, a dos animais: uma vara de dois mil porcos, fugindo num turbilhão de poeira, com gritos agudos e grunhidos, precipitando-se da alta ribanceira no lago. E, de novo, a calma. A gente das aldeias próximas acorreu e viu, sentado aos pés de Jesus, o demoníaco curado, vestido e são de espírito. Sobre seu rosto calmo, sereno, curvava-se o mais calmo e sereno de todos os rostos. E, vendo-o, ficaram apavorados como os remadores, após a tempestade, no lago. “Quem é ele, pois?” Em breve o saberão: “O rei de terrível majestade”, Rex tremendae majestatis.

X

“Nada mais do que um pequeno Judeu, der Kleine Jude” — dirão Nietzsche e muitos outros sábios, gloriosos e poderosos deste mundo, e terão razão: sim, é mísero, nu, desprezado, coberto de galhofa e de opróbrio — “um verme e não um homem” — “um pequeno judeu”. Mas olhem melhor seu semblante e ficarão loucos de pavor, caindo-lhe aos pés como o demoníaco de Gadara: “Não me atormentes!” — “Como é teu nome,” — Chamo-me legião, porque somos muitos (Mc., 5, 7-9). Sim, são hoje mais numerosos do que nunca — imensa vara de porcos quase possessos e prestes a se precipitarem no abismo com gritos e grunhidos de triunfo: “Viva o progresso sem fim! Viva o Reinado do Homem sobre a Terra!”

XI

Pedro não se recorda do rosto de Jesus e Marcos somente reproduz os olhos, ou melhor, o olhar. É compreensível: para Pedro o que há nesse semblante de essencial, de inesquecível, seu “dinamismo”, está nos olhos. Dois olhos maravilhosamente cambiantes, “variáveis”, varii — esse “sinal especial, particular” que se encontra no apócrifo de Lentulus, último eco talvez de uma tradição-reminiscência, que ignoramos, é confirmado por Marcos-Pedro. Antes da cura, na sinagoga de Cafarnaum, do homem da mão ressequida, quando ante a pergunta de Jesus: “É permitido no dia do sábado… salvar uma alma ou perdê-la?” os fariseus ficaram silenciosos, ele “passeia”, “lança” sobre eles um olhar rápido e penetrante, PERIBLEPHÁMENOS, indignado e aflito (tal é o duplo sentido da palavra SYNLYYPOMENOS) com o endurecimento de seu coração (Mc., 3, 5.). A indignação, a aflição, a piedade — tudo isso no mesmo olhar cambiante, “variável”, como as facetas de um diamante, reflexo multicor de um raio de sol.

XII

E eis um outro olhar ainda mais penetrante. De longe, um moço rico veio a ele, como o demoníaco de Gadara e, do mesmo modo, se lhe lançou aos pés: “Meu bom Mestre, que devo fazer para obter a vida eterna?” Jesus respondeu-lhe primeiro com lugares comuns: “conheces os mandamentos”; mas, de repente, tendo-o “olhado” profundamente nos olhos, EMBLÉPSAS, “o amou”. “Vai, vende tudo o que possuis, dá aos pobres… e vem, segue-me”. Mas, quando este, com o rosto “perturbado”, STYGNASAS, “se afastou com tristeza”, Jesus lançou “sobre os discípulos um rápido olhar (PEPHIBLEPSAMENOS, a mesma palavra que no relato da cura do homem da mão ressequida) e disse: “Como é difícil a um rico entrar no reino de Deus!” E como estes, espantados de suas palavras, lhe perguntassem: “E quem poderá, então, salvar-se?” com um olhar de amor, mais profundo ainda que o que acabara de mergulhar nos olhos do moço rico, ele lhes disse: “Isto é impossível aos homens, porém não a Deus, que a Deus tudo é possível (Mc., 10, 17, 27.)”. Em Betabara, ouvindo passos atrás de si, Jesus, embora caminhando, voltou-se bruscamente e viu dois homens que o seguiam: João e André. Sem dúvida parou e olhou-os, primeiro a ambos, depois um deles: “Que quereis?” — “Rabi, onde moras?” — “Vinde e vede” (Jo., 1, 38-39.). O “discípulo amado de Jesus” jamais esquecerá esse olhar, do mesmo modo que Pedro jamais esquecerá o olhar fulgurante do Senhor, quando lhe disse em Cesareia de Filipe: “Arreda de mim, Satan! (Mc., 8, 33.)”.

XIII

“Seus olhos são como uma labareda, PHLÓS PYRÓS (Ap., 1, 14; 19, 12)”. É assim que “o discípulo amado de Jesus” ou pelo menos alguém que o conheceu de perto se lembrará, verá — nas duas visões sobre-humanas talvez — os olhos humanos de Jesus. O olhar de Jesus tem uma pureza de fogo e todo o seu corpo é ardente e luminoso, bem entendido para os que veem, enquanto que para os cegos é como a lagarta de fogo, que parece escura de dia — “um pequeno judeu”.

XIV

Tem-se, às vezes, a impressão de que o “logo, logo, logo”, tão repetido por Marcos-Pedro (4), como no resfolegar de uma corrida precipitada, vem não somente deles, Pedro e Marcos, mas também do próprio Jesus: é a ávida precipitação de uma chama devoradora. “Eu vim lançar fogo à terra e como desejaria que já estivesse aceso! (Lc., 12, 49.)”. Nos seus olhos, já está aceso. Melhor ainda do que os homens, os demônios veem esse fogo que os apavora e os atrai irresistivelmente. De longe, correm, voam para ele, como borboletas noturnas para a chama de uma vela. Queimam-se, caem, debatem-se, gritam: “Tu me queimas, tu me queimas!” KAIEIS ME, KAIEIS ME (5). Os demônios sabem — o que os homens ainda ignoram — que um dia o mundo será abrasado e se consumirá como uma borboleta noturna.

XV

Nos milagres da cura é que Marcos sabe pintar ao vivo o “dinamismo” do rosto e dos olhos de Jesus: os homens veem nele uma força “mágica”, ora divina, ora demoníaca. “Os escribas diziam: ele está possesso de Belzebu e expulsa os demônios pelo maioral dos demônios (Mc., 7, 22.)”. Após a cura do demoníaco, os habitantes da planície de Gadara pediram a Jesus que “se retirasse de sua terra” (Mc., 5, 17.)· Cortesmente, sem recriminar a enorme perda (dois mil porcos) que haviam sofrido, afastaram-se, receosos que esse poderoso e terrível “feiticeiro” causasse outros prejuízos. “Jesus foi condenado como mágico, MAGOS”, dirá igualmente Trifo o Judeu (6).

XVI

Seu olhar “penetrante”, — “eficaz, mais penetrante do que uma lâmina de dois gumes, atingindo até a divisão da alma, do espírito, das juntas e das medulas” (Heb., 4, 12), é a arma mais poderosa de sua força curativa. Com esse olhar, ele abre as portas do corpo de outrem, como o dono da casa abre as portas de seu lar, e entra como na sua moradia. Antes, porém, de curar um enfermo, deve cair doente com ele para com ele se curar. Eis porque, no momento da cura, o doente lhe é mais caro do que um filho à sua mãe. Se diz “minha filha” à hemorroidária, meu “filho”, meu “menino”, TÉKNON (Mc., 5, 34; 2, 5.), ao paralítico de Cafarnaum, é porque os homens ignoram que há um amor maior do que o que se exprime com essas palavras; mas ele o sabe. Para o Evangelho, todas as enfermidades — os “flagelos”, MASTIGES (Mc., 3, 10.), são castigos divinos ou por pecados temporários, ou pelo pecado eterno, original (Jo., 9, 2.). E é seu corpo, em lugar do do enfermo, que o médico Jesus submete a esses “flagelos”, como se o Filho dissesse ao pai: “Se o feres, me ferirás com ele; se me poupas, me pouparás com ele”. No Gólgota, de um gole beberá a taça de todas as dores humanas, enquanto que, nas curas, a bebe lentamente, gota a gota. Aqui, não é mais abstratamente, porém tangivelmente, com toda a nossa carne dolorosa, que sentimos ou pelo menos podemos sentir o que querem dizer essas palavras: “Ele tomou nossas enfermidades e se carregou com nossas dores… e é por suas chagas que somos curados (Is., 53, 4-5.)”.

XVII

Todos os médicos são externos, aparentes; somente ele é o Médico interno. “Uma mulher doente de uma perda de sangue (RYGE AIMATOS) desde doze anos, que havia sofrido muito às mãos de vários médicos e que, depois de haver gasto toda a sua fortuna, não ficara curada, antes piorara, ouviu falar de Jesus e veio com a multidão, tocando por trás nas suas vestes. Porque ela pensava: se ao menos eu puder tocar nas suas vestes, ficarei boa (Mc., 25, 28.)”. Ela aproximou-se por trás, porque tinha vergonha de sua doença e a ocultava, do mesmo modo que todos escondem uns dos outros sua eterna “chaga vergonhosa” — o sexo. Marcos esqueceu. Mateus e Lucas lembraram-se que ela tocou, não as vestes, mas a “barra”, em grego KRASPEDA, em hebreu “tsitsi” ou ”kanaf“, da qual foi dito: “O Senhor disse a Moisés: Fala aos filhos de Israel e dize-lhes que façam, de tempos em tempos, uma franja à ponta de suas vestes e ponham um cordão azul nessa franja. Usareis essa franja e, vendo-a, vos lembrareis de todos os mandamentos do Senhor (Nos., 15, 37-40.)”. Outrora usada por todos os judeus, no tempo de Jesus só a traziam os mais puros observadores da Lei e, entre eles, o Rabi Jeschua: “Nem um jota, nem um traço de letra da Lei passará (Mt., 5, 18.)”.

XVIII

Para tocar a barra ou franja que pendia muito em baixo, ela teve, sem dúvida, de se curvar para o chão, de quase se arrastar com o risco de ser esmagada pela multidão dos que, atingidos de “chagas-flagelos”, “se atiravam a Jesus, a fim de tocá-lo” (Mc., 3, 10.). Aproximou-se dele por trás como uma ladra, tocou com o dedo ou com a ponta dos lábios uma das franjas empoeiradas e descoloridas pelo sol, e o milagre se deu: traspassada como por um raio pela “força” que emanava de Jesus, ela caiu toda trêmula a seus pés, “E, nesse instante, a hemorragia parou; e ela sentiu em seu corpo que estava curada de sua doença”. Ela quis esconder-se na multidão, mas não teve tempo. “Jesus, tendo sentido nele próprio que uma força saíra dele”, (como uma nuvem de tempestade, se pudesse sentir, sentiria o raio que dela partiu), “voltou-se no meio da multidão e disse: quem me tocou? Vês que o povo se comprime e perguntas: quem me tocou?” replicou Pedro com impaciência, como se houvesse esquecido com Quem falava. “Mas ele olhava em redor para ver quem tinha feito aquilo. Então, a mulher apavorada e trêmula, vendo que não podia ficar escondida… veio atirar-se a seus pés e contou toda a verdade. Jesus disse-lhe: “Toma coragem, minha filha, tua fé te salvou, vai em paz” (Mc., 5, 29-34; Lc., 8, 45-47; Mt., 9, 22.)”. Ele submeteu também seu corpo a esse “flagelo”; tomou também sobre si essa “chaga vergonhosa” de toda a humanidade — o sexo.

XIX

Chorava, às vezes, mas não ria nunca, aliquando flevit, sed nunquam risit, lembra-se ou adivinha Lentulus. A crispação do riso, que não é talvez humana, nem animal, mas diabólica, jamais desfigurou esse único semblante perfeitamente humano. Não ria nunca, mas certamente sorria. Em muitas parábolas, se encontra seu sorriso vivo como em lábios vivos. Pode-se, no momento em que se beija os filhos, imaginar seu rosto sem o sorriso? “Ele era jocoso, alegre, hilaris”, lembra-se ou adivinha ainda Lentulus. As criancinhas também choram, mas não riem; mais tarde, quando começam a rir, fazem-no ainda sem jeito, como se isso não lhes fosse natural, e, logo depois de rir, tornam a ficar sérias, quase severas: seus rostos parecem guardar ainda o reflexo da majestade celeste. Jesus está mais perto das criancinhas do que da gente grande: “Eu estava no vosso meio com as crianças e não me reconhecestes (8)”. Se não nos convertermos e não nos tornarmos como as criancinhas, não entraremos no Reino e não veremos sua Face. “Aquele que me procura me achará entre as crianças de sete anos, porque eu, que me oculto no décimo quarto Éon (a mais profunda eternidade), me revelo às crianças”. “Apresentaram-lhe algumas crianças para que as tocasse… E, tendo-as tomado nos braços, impôs-lhes as mãos e as abençoou (Mc., 10, 13, 16.)”. É o que existe de mais terno neste mundo, que é talvez o mais grosseiro dos mundos; dir-se-ia que, com as crianças, a carne de outro mundo entra no nosso, numa nuvem luminosa. Só poderia compreender toda a graça divina de seu semblante quem o tivesse visto aureolado de rostos infantis. As pessoas adultas ficam espantadas, amedrontadas por ele, enquanto que as crianças se alegram, como se, olhando-o nos olhos, o reconhecessem, se lembrassem do que os grandes esqueceram: o céu suave, o suave sol do paraíso.

XX

O que é infantil está mais perto de Jesus do que o que é adulto; o feminino mais próximo do que o masculino. O “Filho de Maria” — é assim que todos o chamam em Nazaré (Mc., 5, 3.), não porque José já tivesse morrido ou que o houvessem esquecido. Em todo o país se lembravam que Jesus era “Filho de David, filho de José” e na sua cidade natal ninguém poderia esquecer isso. Se é “Filho de Maria” e não de José é provavelmente porque o filho sai mais à mãe do que ao pai. Seu rosto parece tanto com ela que, olhando-o, todos olvidam o pai para só se recordarem da mãe. Se não é por acaso que Lucas aproxima esses dois semblantes com duas palavras da mesma raiz: KEGORITOMELE, KARIS, gratiosa, gratias “Alegra-te, cheia de graça e “Jesus crescia em graça (Lc., 1, 26; 2, 52.) — a autenticidade histórica desse traço, a parecença de Jesus com sua mãe, como todos os que se conservaram na Face Miraculosa, se acha confinada no Evangelho. “Ele tinha o rosto como todos nós, filhos de Adão”, diz João Damasceno, referindo-se provavelmente a testemunhos muito antigos, provindos talvez dos primeiros cristãos, e acrescenta um traço que, sem dúvida, mais fundamente se gravara na memória dos que haviam visto Jesus: “ele parecia com sua mãe” (10). O mesmo traço e quase as mesmas expressões se encontram em Nicéforo Calisto, que parece se referir, não ao Damasceno, mas a outros testemunhos antiquíssimos: “’Seu rosto parecia com o de sua mãe”. E repete, insiste, sentindo também aparentemente a preciosa autenticidade desse traço: “Era em tudo perfeitamente parecido com sua divina Mãe” (11).

XXI

Lembremo-nos do Apócrifo de Pistis Sophia sobre a perfeita semelhança do Menino Jesus e do Espírito, sua Mãe, Irmã, Esposa: Olhando-vos, tu e ele (ela), víamos que éreis perfeitamente semelhantes. E o Espírito te abraçou e te beijou, e tu fizeste o mesmo. E vos tornastes um (12). No primeiro Adão, imortal, o de antes da criação de Eva, os dois eram um (13); depois, se dividiram em um homem e uma mulher; e por essa divisão, essa “chaga vergonhosa” — o sexo — a morte penetrou no mundo: os homens começaram a nascer e morrer. Os dois tornarão a ser um novo Adão, Jesus, a fim de vencer a morte. . . Alguém lhe tendo perguntado quando viria o reino de Deus, o Senhor disse: quando dois forem um…. e o masculino for feminino, e não houver mais nem masculino, nem feminino (14).

XXII

“Tu és mais belo do que qualquer outro dos filhos do homem” — “Jesus é, com efeito, o mais belo de tudo o que há no mundo e do próprio mundo. Quando apareceu, como o sol, eclipsou as estrelas” (15). Em que, pois, sua beleza supera todas as belezas do mundo? Em não ser masculina nem feminina e sim “a reunião do masculino e do feminino numa perfeita harmonia” (16). “Eu venci o mundo” (Jo., 16, 38.). Para dizer isso é preciso ter sido perfeitamente homem. Entretanto, olhando o Filho, é impossível não lembrar a mãe. “Bem-aventurados os flancos que te geraram e o seio que te amamentou (Lc., II, 27.)”. Ele está nela — ela está nele: a eterna Feminilidade-Virgindade na Virilidade eterna: Dois em Um. Não é sem razão que os homens os amam juntos. A linguagem humana não tem palavras para exprimir esse amor, porém por mais que nos afastemos dele, O esqueçamos — lembrar-nos-emos um dia que só esse amor por Ele, por Ela, salvará o mundo.

XXIII

O que sentimos ou sentiremos um dia, procurando seu semblante vivo, é idêntico, embora contrário ao que sentiam seus discípulos no Monte das Oliveiras, no dia de sua Ascensão: “Ele os fez sair (de Jerusalém)… e, levantando as mãos, os abençoou. Enquanto os abençoava, começou a se afastar deles, dieste aplaiton, e a se elevar para o céu (Lc., 14, 50-51) ”. Afastando-se lentamente, continuou a abençoá-los e a olhá-los; eles lhe viam ainda o rosto. Porém foi se afastando cada vez mais e acabaram por não vê-lo. Só viam seu corpo diminuindo — adolescente, menino, pomba, borboleta, mosquito — e eis que de repente desapareceu de todo. Mas continuaram a fitar os olhos ansiosos no espaço vazio, procurando-o no céu limpo. “E como tinham os olhos pregados no céu… eis que dois homens vestidos de branco se apresentaram diante deles e lhes disseram: homens da Galileia, por que estais parados, olhando para o céu? Esse Jesus que foi levado (raptado, ÁNALEMPHTHEIS) do meio de vós, voltará do mesmo modo por que o vistes subir (At., I, II.)”. Eles mesmos sabiam que voltaria. Mas que tem isso? Quantos séculos, quantas eternidades a esperar! E agora estavam sozinhos, jamais veriam seu semblante vivo, jamais ouviriam sua voz viva. E ficara no mundo um vácuo horrível, como se Jesus tivesse morrido, ressuscitado e morrido de novo. “Eles voltaram a Jerusalém cheios de grande alegria”, conta Lucas (24, 52). Mas, antes dessa alegria, deviam ter sentido uma grande dor, senão não amariam o Senhor.

XXIV

O que, então, começou no Monte das Oliveiras prosseguiu durante dois mil anos no cristianismo para chegar a um ponto muito próximo de nós, porém ainda invisível, no passado ou no futuro, ponto em que se produziu ou se produzirá para nós alguma coisa análoga à que homens, voando da terra à lua, sentiriam no momento em que acabasse a atração terrestre e principiasse a atração lunar; lentamente, progressivamente, insensivelmente, depois bruscamente, incrivelmente, vertiginosamente, tudo se tornaria ao contrário para eles: havia ainda um instante que subiam e já iam descendo. Dá-se o mesmo conosco: num instante que ninguém notou, entre duas Vindas, a primeira e a segunda, entre duas atrações, de súbito tudo se tornou ao contrário ou se tornará. É, então, que em nossas buscas da Face do Senhor, começamos ou começaremos a sentir uma emoção ao mesmo tempo idêntica e contrária à dos discípulos do Senhor no Monte das Oliveiras, no dia da Ascensão. Fitamos no céu vazio o mesmo olhar ansioso, porém ali onde desapareceu para eles o derradeiro ponto de seu corpo que se elevava, veremos aparecer o primeiro ponto de seu corpo que desce; afastava-se deles, aproxima-se de nós; houve uma separação, haverá uma reunião. Nesse momento único, por mais espantoso e apavorante que isto seja, nós, os desgraçados, os enfermos, os pecadores, seremos mais felizes que os Grandes, os Santos.

XXV

Sim, por mais pavoroso que isso nos pareça, nós, homens do Fim, da Segunda Vinda, nós estamos mais perto do que ninguém nesses dois mil anos de cristianismo de ver seu rosto fulgurante: “Porque, como o relâmpago se abre no Oriente e brilha até o Ocidente, assim será também a vinda do Filho do Homem (Mt., 24, 27.)”. O raio consumindo o mundo, o trovão abalando terra e céu, vêm dele; mas Ele está calmo: “Tu és meu Filho bem amado, meu repouso, minha calma”, diz o Espírito-Mãe. Nós não o vemos ainda com nossos olhos, mas já o sentimos com nosso coração: o milagre dos milagres, o eterno e calmo relâmpago, eis seu semblante.