Merejkovsky – Jesus Desconhecido (I.5)

Dmitri Merejkovsky – Jesus Desconhecido. Tr Gustavo Barroso. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1935

PRIMEIRA PARTE O EVANGELHO DESCONHECIDO

E o mundo não o conheceu. Καὶ ὁ κόσμος αὐτὸν οὐκ ἔγνω. (Jo. I, 10)

V

ALÉM DO EVANGELHO

I

Somente graças ao Cânone temos ainda o Evangelho. Era necessário encouraçá-lo contra os milhares de flechas inimigas — tantas falsas gnoses e monstruosas heresias; era necessário represar num tanque de pedra as águas vivas da fonte para que o rebanho humano não as sujasse, fazendo dela, o que amedronta dizer, a poça turva dos “Apócrifos” (no sentido moderno de “falsos evangelhos” que a Igreja deu a essa expressão); era necessário abrigar a mais delicada flor do mundo contra todas as tempestades terrestres atrás da rocha de Pedro, a fim de que o que há no mundo de mais eterno e também de mais leve — que existe de mais leve que o Espírito? — não fosse dispersado pelo vento como pétalas arrancadas.

Foi isso o que fez o Cânone. Seu círculo está fechado: “o quinto Evangelho jamais será escrito por ninguém, enquanto que os quatro Evangelhos chegaram até nós e chegarão, sem dúvida, até a consumação dos séculos tais quais são.

Mas, se é verdade que a prescrição do Cânone seja não mexer, não mudar, ficar sempre o que é, e que o destino do Evangelho seja a mudança perpétua, o movimento para o futuro, então, com o Cânone, não temos já Evangelho. Eis um dos numerosos paradoxos, das numerosas contradições aparentes do próprio Evangelho.

A lógica do Cânone foi levada ao extremo pela Igreja da Idade-Média, quando proibiu ler a Palavra Divina a não ser na igreja e somente na língua da Igreja, o latim, de modo que, no sentido próprio da expressão, o mundo ficou sem Evangelho.

II

O desenvolvimento do espírito humano não se deteve no século IV, quando o dinamismo do Espírito — o Evangelho — foi encerrado no Cânone imóvel.

O espírito crescia e a forma do Cânone, demasiado estreita para ele, estalava por todos os lados. O Cânone tornara-se muito pequeno para o espírito como uma roupa para a criança crescida. O vinho novo da liberdade, fermentando no próprio Evangelho, dilacerava o velho odre do Cânone.

O Cânone protegia santamente o Evangelho contra os movimentos destruidores do mundo, porém, se a obra do Evangelho é a salvação do mundo, essa obra se realiza além da linha imutável do Cânone, lá onde começa o movimento do Evangelho para o mundo, e do mundo para o Evangelho.

“A verdade vos fará livre (Jo., 8, 32.)”.

Esta palavra do Senhor santifica, hoje talvez mais do que nunca, a liberdade do espírito humano na sua marcha para a Verdade — a liberdade de crítica, porque no combate, o mais furioso de todos, entre a mentira e a verdade, entre os inimigos do cristianismo e o Evangelho, a espada da Crítica — da Apologética (esses dois gumes do mesmo gládio para aqueles que crêem na veracidade do Evangelho) é mais necessária do que a couraça do Cânone.

Libertar o corpo do Evangelho da couraça do Cânone, desembaraçar a face do Senhor dos ornamentos da igreja, é uma tarefa de dificuldade tão terrível, tão sobre-humana, desde que se não esqueçam quais são esse corpo e essa face, que é impossível vencê-la com a simples força humana; mas isso já se faz pelo próprio Evangelho — pelo Espírito de liberdade que eternamente respira nele.

III

Na contradição aparente, no real acordo discordante, concordia discors, de Um e de Três, de João e dos Sinóticos, reside, como já vimos, todo o dinamismo, todo o perpétuo impulso do Evangelho.

A própria Igreja teve o pressentimento, pois para ela o João do IV.º Evangelho é o João do Apocalipse. Mas, para não somente ver a si mesma e sim mostrar aos outros que a primeira e a última testemunha, Marcos-Pedro e João, estão de acordo, é preciso confrontá-los de novo, reabrir o debate indeciso entre as duas testemunhas que parece se contradizerem; e nós vimos que isso é impossível se permanecermos nos limites do Cânone; mas, apenas dado um passo além desses limites, nos encontraremos face a face com o Jesus Desconhecido do Evangelho Desconhecido. Existe alguma coisa além desses limites ou somente há o vácuo, a noite cimeriana, as trevas impenetráveis? A passagem pela crítica evangélica do limite do Cânone é tão espantosa, tão maravilhosa como a passagem da Linha pelo primeiro Navegante vindo de nosso hemisfério: ele vê num céu ignorado novas estrelas e não acredita nos próprios olhos; não compreende e ficará talvez muito tempo sem compreender que são as mesmas estrelas, mas de outro céu.

Os Agrapha, as palavras do Senhor que não estão anotadas no Evangelho e não figuram no Cânone, são invisíveis no nosso hemisfério e surgem misteriosamente do horizonte do Evangelho como outras estrelas do mesmo céu. E, de todas essas constelações, o Cruzeiro do Sul — sinal que une os dois hemisférios — é a mais misteriosa: “Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje, eternamente (Heb., 13, 8.)”.

IV

“Tenho ainda muitas coisas a dizer-vos, mais elas por ora estão fora de vosso alcance (Jo., 16, 12.)”.

Os Agrapha são essas “muitas coisas” que irão foram ditas por ele nesse momento e que mais tarde não foram anotadas no Evangelho.

“Jesus fez muitos outros milagres que não estão relatados neste livro (Jo., 20, 30.)”.

Isto é dito no penúltimo capítulo de João e repetido quase com os mesmos termos no último:

“Há ainda muitas outras coisas que Jesus fez; e, se se descrevessem minuciosamente, penso que o mundo inteiro não conteria os livros em que fossem descritas (21, 28.)”.

“Fez muitas coisas” — por conseguinte, também disse muitas. Trata-se, aqui, bem entendido, não do número material de livros não escritos, porém da medida espiritual dum único Livro que o mundo não pode conter, do “Evangelho não escrito” — dos Agrapha.

“Que o olhar espiritual se dirija para a luz interior da verdade não escrita que se revela na Escritura”, diz Clemente de Alexandria, ensinando-nos, assim, a procurar o agraphon no próprio Evangelho (1).

“Jesus dizia às vezes a palavra divina a seus discípulos em particular (em segredo) e às mais das vezes na solidão. Parte dessas coisas não foram escritas, porque os discípulos sabiam que se não devia escrever e revelar tudo”, relata Orígenes (2). E Clemente acrescenta: “O Senhor, na sua ressurreição, transmitiu o conhecimento secreto (a gnose) a Tiago o Justo, a João e a Pedro; estes o transmitiram por sua vez aos outros Apóstolos (aos Doze) e estes aos setenta (3). Bastam duas ou três horas para ler todas as palavras do Senhor relatadas no Evangelho; ora, Jesus ensinou durante dezoito meses pelo menos segundo os Sinóticos, durante dois ou três anos, segundo São João; assim, quantas palavras não foram guardadas! E quantas outras se perderam, porque não acharam eco naqueles que as ouviam — elas caíram à beira do caminho num solo pedregoso. Encontraremos talvez seu vestígio nos Agrapha.

V

É-nos impossível dizer tudo o que vimos e ouvimos do Senhor, — lembra nos Atos de João Leucius Charinus, testemunha do século II, que pertencia talvez ao círculo dos discípulos efésios do Presbítero João, — muitas grandes e maravilhosas coisas foram realizadas pelo Senhor e devem ser caladas, porque são indizíveis; não se pode falar delas nem ouvi-las”. “Conheço muitas coisas ainda que não sei dizer como ele quer (4).

“Tu nos revelaste muitos segredos; quanto a mim, tu me escolheste entre os discípulos e me disseste três palavras que me abrasaram e que não posso repetir aos outros”, recorda por sua vez Tomé o incrédulo, Tomé Dídimo, o qual, segundo uma tradição, igualmente muito antiga, seria o próprio irmão, o gêmeo do Cristo, didymos tou Christou, e teria dele recebido “as palavras secretas” (5).

“Eu sou aquele que não vês, do qual somente ouves a voz…

Eu não parecia o que era,

Eu não sou o que pareço”,

diz o próprio Jesus, falando, parece, no mesmo círculo de discípulos efésios do Presbítero João (6).

“Aqueles que estão comigo não me compreenderam”. Qui mecum sunt non me intellexerunt (7).

Vê-se de novo no Evangelho até que ponto essas palavras são autênticas senão pelo tom, ao menos pelo sentido.

“Não ouvis e não compreendeis ainda?

Tendes sempre o coração endurecido? Tendes olhos e não vêdes? Tendes ouvidos e não ouvis! (Mc., 8, 17-18.)

Mas eles não compreenderam nada disso, o sentido dessas palavras era oculto para eles e não entendiam o que Jesus lhes dizia (Lc., 18, 34.)”.

VI

Não esqueçamos que, antes de tomar forma, de tornar-se a “Escritura”, todo o Evangelho não foi mais do que um Agraphon — metal em fusão. Temos muita dificuldade em concebê-lo; entretanto, sem isso, é impossível compreender o que são os Agrapha, essas gotas de metal sempre fervente correndo pela borda dum cadinho; temos dificuldade em imaginar que há entre um Agraphon e um Apócrifo a mesma diferença que entre o Evangelho e o Apócrifo (esta palavra sendo tomada, bem entendido, não no sentido antigo de Evangelho “oculto”, mas no moderno de Evangelho “falso”); temos dificuldade em crer que palavras do Senhor, tão autênticas quanto estas: “todo sacrifício será salgado com sal” (Mc., 9,49.) ou “vós não sabeis com que espírito estais animados” (Lc., 9,55-56.), não são canônicas, tendo sido excluídas do texto evangélico da Vulgata adotado no século IV, mas figuram nos textos antigos do ano 140, o Cantabrigensis D e não entraram no nosso texto, a despeito do Cânone, senão graças aos códices itálicos (8). É assim que no seio do próprio Evangelho o metal em ebulição dos Agrapha continua a fazer estalar a forma do Cânone.

O admirável relato de João sobre a mulher adúltera (9,1-11.) — um Agraphon igualmente excluído outrora do Cânone — falta nos manuscritos até o século IV e Santo Agostinho o considera ainda “apócrifo”, sob o pretexto de que permitiria às mulheres a “impunidade do adultério”, peccandi immunitas, e “que um pecado tão grave ali é muito facilmente perdoado” (9). A Igreja, malgrado Santo Agostinho, o Cânone e ela própria, conservou o episódio, não tendo medo da mansuetude do Senhor, no que certamente fez muito bem.

Essas pérolas que quase foram perdidas para nós nos mostram que tesouros se podem conservar nos Agrapha.

O Evangelho dos Hebreus que nos chegou em míseros fragmentos e ao qual, provavelmente, se tomou por empréstimo o relato sobre a mulher adúltera, é um segundo Mateus, diverso do nosso, ou somente uma primeira versão, ou ainda uma tradição judaica absolutamente independente? Seja como for, se, como é igualmente provável, esse Evangelho é o único que veio a lume na terra natal de Jesus, na Palestina, pelos anos de 90, isto é, quase ao mesmo tempo que o nosso Lucas e o nosso João, pôde conservar um testemunho histórico, não menos autêntico do que aqueles (10). Desta forma um Evangelho inteiro é um Agraphon.

Pelo ano de 200, Serapião de Antioquia começou por autorizar o Evangelho segundo São Pedro, depois o interdisse, tendo-o julgado “contaminado pela heresia dos gnósticos”; não pensou, pois, imediatamente: “Há quatro evangelhos e não pode haver um quinto”. Por conseguinte, no fim do século II e começo do III, o Cânone, no sentido posterior dessa palavra, ainda não fora firmado — o metal em fusão do Evangelho continuava a ferver ainda.

VII

Como vieram os Agrapha até nós?

É provável que numerosos códices antigos, semelhantes aos códices Cantabrigensis D e Syrus-Sinaiticus, salvos por milagre, foram conservados nas bibliotecas dos conventos até o século IV, época em que foi estabelecido o Cânone (em 382, com o papa Dâmaso), e foram em seguida destruídos. Foi deles que os Padres da Igreja tiraram os agrapha. Assim, Atanásio do Sinai se serviu do códice Sinaiticus e Macário o Grande, dos códices conservados nas células do deserto de Sceté. Eis por que, nos escritos dos Padres, as palavras não “canônicas” do Senhor não se distinguem das palavras canônicas.

Somente com o Cânone nasceu e cresceu o receio que não fosse relatado no Evangelho, do que não fosse “canônico”, tanto que, no século XVI, o teólogo reformado Teodoro de Béze, tendo achado no mosteiro de Santo Irineu, em Lião, o códice D, um arquétipo judaico-cristão datando de 140, isto é duzentos e cinquenta anos mais antigo que o Cânone, contendo numerosos agrapha, ficou tão assombrado que o mandou secretamente à Universidade de Cambridge, com esta nota: Asservandum potius quam publicandum, “é melhor esconder do que publicar”, e o códice, com efeito, ficou escondido duzentos anos, como “uma candeia sob a lenha”.

Nos nossos dias, essa candeia, o Agraphon, não foi inteiramente retirada de sob a lenha, talvez porque se não possa revelar aos homens o mistério divino — ele é que se revela por si mesmo.

“Mais vale deixar em paz todos os agrapha”, aconselha um dos críticos mais liberais (13), e mesmo um sábio tão grande como Harnack, que não duvida da autenticidade histórica de grande número de agrapha, “desde que se toca na essência do cristianismo”, cala-os, esconde-os, como o velho Béze: “é melhor esconder do que publicar”.

VIII

No fim do último século, nos confins do deserto da Líbia, lá onde fora a antiga cidade egípcia de Oxirrinco, descobriu-se num túmulo cristão do século II ou do III três fragmentos de papiro meio consumidos, provenientes, sem dúvida, dum escapulário que o defunto trazia sobre o peito e haviam enterrado com ele. Nesses fragmentos, se haviam conservado milagrosamente quarenta e duas linhas de texto grego com seis agrapha e o início dum sétimo (14). Não se encontrarão ainda outros um dia nessa terra de que se disse: “Eu chamei meu Filho do Egito” (Os., 2, 1.) ? Para “aqueles que sabem”, esses fragmentos serão mais preciosos do que todos os tesouros do mundo.

Essas palavras do Senhor que se acaba de reconhecer — que acabam de ser ditas — varrem de nossos olhos, como pelo sopro dos Lábios Divinos, a poeira do hábito milenar — essa falta de admiração que mais do que tudo nos impede de ver o Evangelho. Fica-se como um cego que, recobrando subitamente a vista, se espanta — e se amedronta. É então que se compreende o sentido destas palavras:

“O primeiro grau do conhecimento superior (a gnose) reside no espanto. Que aquele que busca não repouse… enquanto não tiver achado; e, tendo achado, ficará espantado; estando espantado, reinará; reinando, repousará (15)”.

Em lugar de “espantado”, há em outra versão: “amedrontado” (16), o que é talvez mais exato: o espanto do primeiro navegante que avista novas estrelas parece-se com o medo.

IX

SEDE CAMBISTAS PRUDENTES

Esta palavra do Divino Pobre sobre os “homens da bolsa” e os “especuladores” de então, tão míseros quanto nós, porém mais humildes (eram “banqueiros” de rua, trapezitai, do termo trapeza, “mesa”, “contador”, de onde veio a “banka” italiana medieval — o futuro “Banco”), — essa palavra, esse peixinho salgado do lago de Genesaré foi avidamente absorvido pelo nosso século ganancioso. Ninguém põe em dúvida a autenticidade e, com efeito, ela é imediatamente sentida nessa “secura salgada” das logia aramaicas que tão bem conhecemos pelo Evangelho (17).

Eis talvez a melhor epígrafe de todos os outros Agrapha; sede cambistas prudentes para evitar os dois erros igualmente possíveis e terríveis: tomar o cobre por ouro e tomar o ouro por cobre. Parece mesmo que o segundo erro, para “cambistas” como nós, é mais fácil do que o primeiro.

X

“Eu sofria com os que sofrem,

Eu tinha fome com os que tinham fome,

Eu tinha sede com os que tinham sede (18)”.

Se alguém lhe tivesse perguntado: “Senhor, terias dito isto?” talvez ele respondesse com um sorriso inteligente — sim, com um sorriso de divina sabedoria, mas ainda de inteligência, simplicidade e alegria humanas: “Mas certamente o teria dito! Dizei-o por mim”. E fizeram muito bem em dizê-lo — tanto bem que não se pode mais distinguir se é ele quem fala ou se falam por ele.

XI

“Aquele que não carrega sua cruz e não me segue não pode ser meu discípulo”, assim, em Lucas (14,27.), o metal já esfria, enquanto que no Agraphon ainda ferve:

“Aquele que não carrega sua cruz não é meu irmão (19)”.

Como esta segunda versão é mais “espantosa” — mais “apavorante”, mais abrasada, mais perto do coração do Senhor!

“Quem está junto de mim está junto do fogo;

Quem está longe de mim está longe do reino (20)”.

Ali, é a ordem dum Superior; aqui, a súplica dum Igual. E é como um novo fogo sobre uma ferida antiga; esta também acabará por sarar, mas menos facilmente; e talvez para aquele que sabe — que se queimou bem — isso bastará para toda a vida.

Basta comparar as duas palavras, a do Evangelho sobre a cruz carregada pelo discípulo e a que não foi anotada, sobre a cruz carregada pelo irmão, para sentir por que liberdade interior na transmissão das palavras autênticas do Senhor se atinge o inacessível, para perceber, ao lado do hálito humano, o hálito do Espírito Divino, para ver amadurecer suavemente sua palavra sob seu próprio olhar — fruto edênico dourado por um sol que jamais se põe.

XII

“Tu viste teu irmão, tu viste teu Deus (21)”.

“Senhor, terias dito isso?” — “Eu nunca disse outra coisa”.

“Não vos alegreis senão quando virdes vosso irmão na caridade (na graça de Deus) (22). — Deve-se perdoar a seu irmão setenta e sete vezes… Porque se acharam palavras culposas mesmo entre os profetas ungidos pelo Espírito Santo (23)”.

Segundo a regra geral da crítica evangélica, que quer que uma palavra seja tanto mais autêntica quanto mais incrível, essa frase é autêntica, porque sua segunda parte sobre o Espírito é “incrível”.

“No estado em que vos surpreender vos julgarei (24)”.

É difícil acreditar que essa palavra não esteja no Evangelho tanto ela é memoravelmente autêntica, talvez porque tenha sido escrita por ele mesmo no coração humano. Uma vez ouvida essa palavra terrível, nunca mais será esquecida e aquele que a esquecer durante a vida dela se lembrará no momento de morrer.

XIII

O primeiro pedido da oração dominical no Evangelho: “Santificado seja o vosso nome” está para nós tão coberto pela poeira do hábito que quase nada mais significa; quando os lábios pronunciam essas palavras, o coração quase as não ouve mais, do mesmo modo que não ouvimos na poeira o rumor de nossos passos. Mas o Agraphon varre esse pó:

“Que o Espírito (Santo) desça sobre nós e nos purifique (25)”.

A candeia foi retirada de sob a lenha e toda a oração se ilumina com uma nova luz. Somente agora o terceiro pedido, o principal: “Venha a nós o vosso reino” recebe um novo sentido, “espantoso”: não é mais o primeiro, o antigo reino do Pai, nem o segundo, o do Filho, porém o terceiro, o futuro — o do Espírito.

A poeira foi varrida do caminho da humanidade, da história universal, pelo sopro do Espírito Santo, e quem não ouvirá seu passo retumbante?

XIV

“O Espírito Santo, minha mãe… (26)”.

É por essa palavra misteriosa — cochicho “na obscuridade, ao ouvido”, — talvez somente ao meio dos eleitos, dos três de entre os Doze, que Jesus começa, no “Evangelho dos Hebreus”, o relato da Tentação (porque quem, além dele, o poderia conhecer e relatar?).

A julgar pelo fato dessa palavra só poder ser compreendida ou pelo coração ou pelo entendimento humano, mas na língua natal de Jesus, o aramaico, pois é a única em que o termo “espírito”, Rucha, é, não masculino, como em latim, nem neutro, como em grego, porém feminino, esse Agraphon é um dos mais antigos e mais autênticos logia aramaicos. Mas não sabemos o que fazer dele, embora toque no dogma-experiência fundamental do cristianismo — a Trindade. Não sabemos; entretanto, as velhas e as criancinhas que oram singelamente à Mãe,

“Ardente Protetora do mundo regelado”, talvez saibam.

O Filho fala sempre de seu Pai e somente aqui de sua Mãe. “A semente da mulher esmagará a cabeça da Serpente”. Esse Proto-Evangelho, essa Proto-Religião da humanidade inteira — a religião da Mãe — só aqui é santificada pelo Filho; só aqui ele une o Novo Testamento ao Antigo; só aqui, fora do Cânone, fora, dir-se-ia, da Igreja (mas talvez a Igreja seja mais liberal do que ela própria supõe) se completa o dogma da Trindade: Pai, Filho e Mãe-Espírito.

E uma nova luz, mais forte ainda, ilumina o pedido principal da oração do Senhor — a do Reino: o primeiro reino é o do Pai; o segundo, o do Filho; o terceiro, o da Mãe-Espírito.

XV

Somente quem teve fome sabe o que é fome e compreenderá por que os “pobres de Deus”, os Ebionitas, não rezam inteiramente como nós. Eles não dizem: “O pão nosso de cada dia dai-nos hoje”, porém: “Dai-nos hoje nosso pão de amanhã” (27). Talvez as duas formas sejam igualmente autênticas: cada um reza a seu modo. A primeira é evidentemente mais elevada, mais celeste; a segunda, mais terra a terra, mais misericordiosa.

Nessa segunda forma, a agulha da bússola cristã imperceptivelmente variou, estremeceu invisivelmente, e todo o clima do cristianismo logo se modificou, mudando-se do polo para o equador.

Os pobres, os esfaimados preferem rezar assim e isso só lhes podia ensinar Aquele que também foi pobre e esfaimado: “Eu tinha fome com os que tinham fome e sede com os que tinham sede”.

XVI

“Tu me escutas com um ouvido e fechaste o outro (28)”.

Ouvimos com o ouvido celeste e fechamos o ouvido terrestre. Por isso não entendemos:

“Pedi as grandes coisas e as pequenas vos serão dadas de quebra, pedi as celestes e as terrestres e as celestes vos serão concedidas (29)”.

Kant ignora, mas Goethe talvez sabe que, sem o Cristo, o “grande pagão” que ele é não teria existido. “Jesus não imaginava mesmo o que fosse a civilização”, pensa Nietzsche (30), — e o pastor protestante Frederico Naumann, fundador do “socialismo cristão”, disse um dia a si mesmo pelos maus caminhos da Palestina: “Como foi possível que Jesus, andando e viajando por semelhantes caminhos, nada fizesse para melhorá-los?” e ficou decepcionado, cessando de nele ver o “benfeitor terrestre da humanidade que anda pelos caminhos terrestres”. (31). Mas, se agora voamos através do Atlântico, é talvez porque outrora pedimos “as grandes coisas”, “as celestes”, e “as pequenas coisas”, “as terrenas”, nos foram dadas de quebra; e, se cessarmos de pedir aquelas, estas nos serão tomadas: de novo, rastejaremos como vermes.

XVII

O Cristo só está no céu? Não, está também sobre a terra:

“Levanta a pedra e aí me encontrarás; fende a árvore e nela: estarei (32)”.

Se tudo foi criado por ele, como não estar ele em tudo?

“Quem vos arrastará para o Reino, se o Reino está no céu? Os pássaros do céu, e tudo o que está sob a terra, e todos os bichos da terra, e os peixes do mar, todos vos arrastarão para o Reino (33)”.

Eis o que significa em Marcos:

“Ele estava com os animais selvagens e os anjos o serviam (1, 13.)”.

XVIII

“Estive entre vós com as crianças e não me reconhecestes… (34).

Aquele que me procura encontrar-me-á entre as crianças a partir de sete anos, porque é aí que, no décimo quarto eon, depois de ter ficado oculto, eu me manifesto (35)”.

Conhecemos bem essa flor evangélica, mas ei-la limpa da poeira e de novo exalando uma frescura tão edênica que se diria outra flor, que acaba de desabrochar e que nunca víramos.

XIX

Há no Evangelho muitas palavras amargas que parecem demasiado humanas para o Cristo e que, entretanto, por isso mesmo são autênticas. Porém haverá mais amargas, mais autênticas do que estas?

“Estive no mundo e apareci aos homens em carne, e os encontrei todos embriagados, e ninguém que tivesse sede.

E minha alma se aflige pelos filhos dos homens (36)”.

E estas, também autênticas, também amargas:

“Abandonastes o vivo que está diante de vós e inventais fábulas sobre os mortos (37)”.

Como isso se parece terrivelmente conosco!

XX

Dir-se-ia que do colar das Bem-aventuranças evangélicas duas pérolas se desprenderam e foram apanhadas no chão pelos pobres:

“O bem deve vir ao mundo e feliz é aquele por meio de quem o bem vem (38).

Felizes os que se afligem com a perdição dos que não crêem (39)”.

As “crianças” deixam cair o pão sob a mesa e ele é apanhado pelos “cães” — pelos “infiéis”. Eis a palavra do Senhor que se encontra no Corão:

“Homens, ajudai a Deus, como disse o Filho de Maria: quem é aquele que é meu auxiliar em Deus? E seus discípulos responderam: nós (40)”.

Que Deus ajude aos homens — os “fiéis” sabem; que os homens ajudem a Deus — os “infiéis” sabem. Eis por que “aquele que não carrega sua cruz não é meu irmão”. Irmão, ajudai o Irmão. As “crianças” esqueceram e os “cães” se lembram. Como, então, poderia ele não dizer: “Em nenhum homem em Israel encontrei tão grande fé” (Mt., 8, 10.).

“Que podridão! exclamaram os discípulos, passando perto do cadáver dum cão. “Como seus dentes são brancos, disse Jesus” (41).

É uma simples lenda muçulmana e não um agraphon; mas aquele que a compôs sabia sobre Jesus e amava em Jesus alguma coisa que nós não sabemos mais e não amamos mais; dir-se-ia que o tinha fitado os olhos nos olhos e vira neles como Ele olhava tudo e o que Ele procurava em tudo: se achou aquilo numa carniça, o que não acharia num ente vivo?

“Que podridão!” dirão também de nossa carcaça, porém ele saberá ver alguma beleza em nós, e ressuscitaremos.

XXI

“Jesus — que a paz seja com ele — disse: o mundo é esta ponte; passa por ela, mas nela não construas a tua casa (42)”.

É uma inscrição árabe no frontão duma ponte desabada no meio das ruínas duma cidade que um imperador mongol construiu para sua glória, num deserto inacessível da Índia setentrional, depois abandonada. Embora essa palavra não seja autêntica, parece apanhada, senão pelo ouvido, ao menos pelo coração, no sermão da Montanha. Esse pólen da flor galilaica por que vento teria sido levado à Índia, a não ser pelo sopro de seus lábios, pelo Espírito?

Com quantos corações amantes teve de se alongar essa cadeia ardente que vai d'Ele até essa inscrição! Não é a prova que sua “voz viva e inesgotável”, de geração a geração, de século em século: “Vistes?” — “Vimos”. — “Ouvistes?” — “Ouvimos”, retumba, não só no cristianismo, na Igreja, porém em toda a humanidade? Isto significa que a única e invisível Igreja Universal é maior do que pensamos, maior do que ela própria pensa.

XXII

“Ali onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estarei com eles (Mt., 18, 20.)”.

Eis, no Evangelho, a fundação da Igreja visível; e aqui, num pedaço de papiro meio consumido, talvez um escapulário funerário, encontrado nos confins do deserto da Líbia, o fundamento da Igreja invisível:

“Ali, onde estiverem dois… não estarão sem Deus; e onde o homem estiver sozinho eu estarei com ele (43)”.

Se é verdade que atualmente estamos mais sós do que nunca, essa palavra, que parece acabada de pronunciar diretamente pela sua boca, é, entre todas, preciosa e autêntica. Cada um de nós não se deitará na tumba e dela se não levantará com esse escapulário: “Estou sozinho, mas Tu estás comigo”?

XXIII

Basta à paleontologia um pequeno osso para reconstituir um animal antediluviano, um mundo desaparecido; um raio de estrela é suficiente para a análise espectral reacender o sol apagado; talvez um Agraphon seja bastante para a crítica evangélica esclarecer o que há ainda de muito obscuro na vida e no semblante de Jesus Desconhecido.

Atualmente, porém, é quase o caso de dar graças a Deus que pouca gente o saiba e que se não possa revelar aos homens esse mistério divino, enquanto ele se não revelar por si mesmo. A fonte mais fresca é aquela em que ninguém ainda bebeu: essa, a frescura dos Agrapha. O primeiro beijo de amor é o mais doce. A doçura dos Agrapha é a mesma. Entretanto, faz medo: é como se ele próprio nos falasse baixinho, ao ouvido, na escuridão.

Se está conosco, “todos os dias até o fim do mundo”, certamente não se cala, mas fala, essa palavra eterna é o Agraphon. O coração do homem é, por sua vez, também, um agraphon do Senhor; e talvez sem essa palavra não se soubesse ler o Evangelho.

Para a crítica evangélica, os Agrapha serão um dia o que foi a “fonte pré-sinótica” para os Sinóticos, uma janela sombria na casa iluminada, dando para a noite de Jesus Desconhecido.

A crítica evangélica, e talvez todo o cristianismo, somente abandonará esse ponto morto, quando olhar além do Evangelho, lá onde a derradeira e a primeira testemunha, João e Marcos, estão de acordo, onde, em lugar de quatro Evangelhos, só existe um, o Evangelho “segundo Jesus”, e onde, entre as estrelas invisíveis que surgem do horizonte, cintila, mais misteriosa do que todas as outras, a constelação do Cruzeiro — o sinal que une os dois céus, o diurno e o noturno:

“Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje, eternamente (Hebr., 13, 8.)”.

Sempre por toda a parte o mesmo — tanto deste lado do Evangelho como do outro.

XXIV

Nove espelhos: quatro que vemos — nossos Evangelhos — e cinco invisíveis para nós: a fonte pré-sinóptica Q, comum a Mateus e Lucas, duas fontes particulares (Sonderquelle), uma para cada um deles; a camada inferior B do IV.º Evangelho, e, enfim, o espelho mais obscuro e mais próximo de nós — os Agrapha. Os nove espelhos estão colocados frente a frente, de modo a se refletirem um no outro: o único espelho de Marcos nos quatro de Mateus e Lucas; dois visíveis e dois invisíveis, e esses cinco espelhos se refletem no espelho invisível Q; e esses seis nos dois espelhos de João — o visível B e o invisível A; afinal os oito, no nono, o mais profundo e misterioso — os Agrapha.

A cada novo reflexo, a complexidade das combinações aumenta em progressão geométrica, o que faz do mais simples dos livros, o Evangelho, o mais complexo. Refletindo-se mutuamente, mutuamente se aprofundam até o infinito; os raios das luzes mais opostas se entrecruzam, se refratam, e, no meio de todos eles, está Ele. Assim somente pode ser representado o semblante irrepresentável. Se, na história universal, nada possuímos de semelhante para nenhuma outra figura, então conhecemos ou poderemos conhecer a vida e semblante de Jesus melhor do que a vida de qualquer outro personagem histórico.

XXV

E, apesar de tudo isso: ”vita Jesu Cristi scribi nequit, a vida de Jesus Cristo não pode ser escrita (44)”. Essa antiga tese de Harnack, que remonta aos anos 70, mas que parece não ter envelhecido, foi retomada em nossos dias por Wellhausen: mesmo em Marcos, não sabemos sobre Jesus senão o extraordinário, enquanto que o quotidiano — de onde é, quem são seus pais, em que época, onde e como viveu — nos escapa (45). Mas, em primeiro lugar, o conhecimento cada vez maior e mais exato do ambiente judaico religioso e social do tempo nos permite entrever o que foi a vida “quotidiana” de Jesus. Na verdade, é pouco, porém importante. Em segundo lugar, o próprio Jesus é tão extraordinário — o que mesmo Wellhausen admite — que não é razoavelmente para deplorar que as testemunhas de sua vida nos tenham contado as coisas extraordinárias e não as quotidianas. Afinal, em terceiro lugar, de Édipo, Hamlet e Fausto somente conhecemos o que tiveram de extraordinário; quanto aos últimos, sobre alguns meses de sua existência; quanto ao primeiro, sobre algumas horas. Todavia, nosso conhecimento é tão profundo que, se possuíssemos o indispensável dom poético, profético, poderíamos, com esse segmento visível, reconstituir todo o círculo invisível, relatar toda a sua vida. De Jesus também, só sabemos o “extraordinário”, porém durante pelo menos um ano, senão dois ou três anos. Por que, então, não poderíamos, se dispuséssemos do talento necessário, restaurar por esse trecho o círculo completo de sua existência?

Jülicher defende mais solidamente a tese de Harnack. “Não podemos saber pelos Evangelhos senão o que Jesus parecia ser à primeira comunidade dos fiéis, mas não o que ele realmente foi; nossa vista não alcança tão longe; o horizonte evangélico nos está para sempre fechado pelos altos cimos da fé das primeiras comunidades (46)”. Não, não para sempre: todos os “sinais de contradição” (Lc., 2, 35.), todas as “perplexidades”, todos os “escândalos” (feliz aquele que se não escandalizará de mim! Mt., 11, 6.), não somente das personagens evangélicas, mas talvez dos próprios Evangelistas, são outras tantas fendas na muralha aparentemente inteiriça da tradição; por elas nós avistamos ou podemos avistar, não só o que Jesus parecia ser, como o que realmente era.

XXVI

Para que a tese de Harnack fosse irrefutável, bastaria agora acrescentar estas duas palavras: “por nós”: por nós a vida de Jesus Cristo não pôde ser escrita. A grande dificuldade de conhecer não reside absolutamente na nossa experiência histórica, exterior, porém na nossa experiência interior, religiosa.

“Como a terra esfriada não permite mais compreender os fenômenos da criação primitiva, porque se apagou o fogo que a penetrava, assim as explicações refletidas têm sempre algo de insuficiente, quando se trata de aplicar nossos tíbios processos de análise às revoluções das épocas que decidiram a sorte da humanidade”, diz Renan do proto-cristianismo e Renan não pode ser suspeitado de excesso de apologética (47).

Todo conhecimento é experimental. Mas, para o proto-cristianismo em geral e com maior razão para seu ponto mais ardente, a vida do Homem Jesus, não temos experiência igual e correspondente em qualidade e quantidade ao que queremos saber. Enganamo-nos e enganamos os outros, contando essa vida, como viajantes que falassem dum país onde nunca tivessem estado.

Parece que Goethe ama mais o cristianismo do que o Evangelho e o Evangelho do que o Cristo; entretanto, ele também sabe que o espírito humano, por mais que tente se elevar, jamais poderá ultrapassar a vida e a pessoa do Cristo (48).

Harnack e Bousset, dois dos mais profundos pesquisadores e críticos evangélicos mais liberais de nossos dias, falam da vida de Jesus em termos quase idênticos, sem se terem combinado: “O divino ai aparece tão puro quanto podia aparecer na terra” (Harnack). — “Nunca Deus, em nenhuma vida humana foi de uma realidade tão viva como aqui” (Bousset) (49).

Lembremos também o gnóstico Marcião, ao qual será talvez muito perdoado em bem destas palavras: “ó milagre dos milagres, deslumbramento e motivo de estupefação, nada se pode dizer e nada pensar que ultrapasse o Evangelho; nada existe a que possa ser comparado (50)”. Se isto é verdade quanto ao Evangelho, que, apesar de tudo, não passa de pálida sombra do Cristo, quanto é mais verdade sobre Ele próprio!

XXVII

Para nós, a principal dificuldade, quando se trata, não de contar a vida de Jesus, mas simplesmente de vê-la, consiste precisamente em não poder ela ser comparada a coisa alguma. O conhecimento é uma comparação: para saber bem o que é uma coisa, devemos comparar o que estamos aprendendo com o que já sabemos. Mas a vida do Cristo não se parece com nenhuma coisa e nada temos com que compará-la, tão incomensurável, tão extraordinária, tão única ela é. Aí toda a nossa experiência da história universal nos trai e, se ficarmos nos seus limites, devemos reconhecer, embora em outro sentido que o de Harnack, que, com efeito, a vida de Jesus é incognoscível, “indescritível”, scibi nequit.

E, se apesar da insuficiência da experiência, quisermos assim mesmo fazer dessa vida um objeto de conhecimento, introduzi-la na história, precisaremos, partindo, não dessa experiência certa, embora insuficiente, que a vida de Jesus é realmente humana, mas da experiência falsa de que é somente humana e levando até o fim a lógica dessa experiência falsa, dizer com alguns dos críticos da extrema esquerda que é a vida dum “louco” (“ele saiu fora de si”, — “ele perdeu o senso”, como pensam seus irmãos. Mc., 3, 21.), ou, o que é pior, admitir com Renan que foi um “erro fatal”, que Aquele que é o maior do mundo se enganou e enganou o mundo como jamais alguém o enganara; ou ainda, o que é pior do que tudo, reconhecer com Celso que Jesus “acabou com uma morte miserável uma vida infame”.

Para fugir a essas deduções absurdas e blásfemas, somos forçados a reconhecer que a vida de Jesus não é somente uma vida humana, porém alguma coisa mais — talvez o que dela dizem as primeiras palavras da primeira testemunha, Marcos-Pedro:

“Começo do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus”.

XXVIII

Mas, embora saibamos não ter a experiência necessária para escrever uma “Vida de Jesus”, sabemos ou poderemos saber que certos a tiveram.

A palavra “mártires” significa “confessores”, “testemunhas”, — evidentemente do Cristo. São eles talvez os que possuem essa experiência que nos falta; são eles talvez os que sabem da vida do Cristo o que ignoramos.

Assim, São Justino Mártir, dizendo ao César romano com uma dignidade maior do que a de Brutus: “Podeis matar-nos, porém não nos podeis fazer mal (51)”. Assim, Santo Inácio de Antioquia (aí pelo ano 107), o qual, dirigindo-se ao Coliseu, rezava: “Eu sou o trigo do Senhor e serei moído pelos dentes das feras para me tornar o pão do Cristo (52)”. Também se os mártires de Lião, no ano 177, não tivessem crido tão firmemente que, na ressurreição dos mortos, Deus recolheria todas as parcelas das cinzas de seus corpos queimados atiradas ao Ródano, formando com elas exatamente os mesmos corpos que haviam tido em vida, mas já “glorificados”; se, para eles, o fogo que os queimava e o ferro que os torturava não tivessem sido menos reais e menos palpáveis que o corpo do Senhor ressuscitado, quem sabe se teriam podido suportar o suplício com tal constância que, ao outro dia, seus algozes convertidos ao Cristo se entregaram às mesmas torturas?

Quem sabe se, para esses “videntes”, essas “testemunhas”, a vida do Cristo não se ilumina com clarões fulgurantes até a profundezas que nenhuma vida humana jamais conheceu? Quem sabe não é, para eles, mais real, mais memorável, mais conhecida do que a sua própria?

De tudo isso resulta que, para melhor conhecer a vida de Jesus, é preciso viver melhor. Tal seja a nossa vida, tal conheceremos a dele. “Se eu me conhecesse, te conheceria, noverim me, noverim te (54)”. Em cada má ação, atestamos, “confessamos” que Jesus não existiu; em cada boa ação, que existiu. Afim de poder ler o Evangelho de nova maneira, é necessário viver de nova maneira.

XXIX

“Se mudas, não és a verdade”, assim Bossuet afirma a imutabilidade, a imobilidade do Cânone e do Dogma (55). Poder-se-ia replicar-lhe: “Se não mudas, não és a vida”. O Evangelho muda perpetuamente, porque vive perpetuamente. Tantos séculos, tantos povos e até tantos homens — quantos Evangelhos. Cada qual o lê, o escreve, exatamente ou inexatamente, tolamente ou sabiamente, culposamente ou santamente, porém a seu modo, — de nova maneira. E, em todos esses Evangelhos, só há um e o mesmo Evangelho, como em todas gotas de orvalho o reflexo de um único e mesmo sol.

Para aquele que abrir o Evangelho, todos os outros livros se fecharão; aquele que começar a pensar nisso não pensará mais em outra coisa e nada perderá, porque todos os pensamentos vêm dele e para ele vão. Depois desse sal, tudo é insípido; depois dessa “Divina Comédia”, todas as tragédias humanas são fastidiosas. E, se nosso mundo, a despeito de todas as suas terríveis chatices, continua terrivelmente profundo e santo, é unicamente porque ele passou pelo mundo.

XXX

O bandido espanhol Juan Sala y Serralonga, no momento de morrer na forca, disse ao carrasco: “Morrerei recitando o Credo, mas não me passe a corda ao pescoço antes que tenha dito: “Creio na ressurreição da carne!” (56) Talvez esse bandido, como o que morreu na cruz, sabia sobre Jesus muita coisa que ignoram muitos daqueles, crentes ou incrédulos, que escrutam a “Vida de Jesus”.

É provável que muitos dentre nós somente compreenderiam alguma coisa dessa vida com “o laço ao pescoço”. “Pensei em ti na minha agonia e derramei tantas gotas de sangue por ti”. Quando se ouviu isso, pode-se sentar a uma mesa, tomar de uma pena e começar a escrever uma “Vida de Jesus”?

“Entretanto, os cães comem sob a mesa algumas migalhas das crianças (Mc., 7, 28.) (57)”.

Talvez muitos de nós só se possam aproximar da vida de Jesus desse modo: as crianças deixarão cair as migalhas — os cães as comerão.

“Ele estava com as feras selvagens e os anjos o serviam (Mc., 1, 13.)”.

Quem sabe se sua imagem se não reflete tanto na pupila das feras como na dos anjos, em ambas Ele se reconhece?

XXXI

Como olhá-lo com olhos impuros? Como falar-lhe com lábios impuros? Como amá-lo com um coração impuro?

“Um leproso veio a ele e, ajoelhando-se, dirigiu-lhe esta súplica: Se quiseres, eu ficarei limpo. Jesus, cheio de compaixão, estendeu a mão, tocou-o e disse: Eu o quero, fica limpo (Mc., 1, 40-42.)”.

Só assim, como leprosos, poderemos tocá-lo. Talvez os pecadores saibam sobre ele mais do que os santos e os que perecem mais do que os que se salvam. Se o leproso sabia, nós também talvez saibamos.

XXXII

Para atingir a esse conhecimento, temos sobre todos os séculos cristãos uma vantagem inegável, embora talvez nós mesmos a ignoremos e não lhe liguemos importância: é, num ponto que de tudo decide, a semelhança de nosso tempo com aquele em que Jesus viveu. Nunca, tanto como então e hoje, o mundo esteve tão próximo de sua perdição, sem ter consciência disso, e esperou tão ansiosamente sua salvação; nunca o mundo teve uma tal sensação de abismo em que tudo vai sossegar. São hoje, como então, as mesmas dores dum parto súbito, a mesma voz que ninguém quis ouvir clamando no deserto: “Preparai as vias do Senhor!” o mesmo machado ferindo a raiz das árvores, a mesma rede invisível lançada sobre o mundo; o mesmo ladrão deslisando na noite, o dia do Senhor; a mesma palavra escrita com o mesmo fogo na escuridão ameaçadora dum céu cada vez mais tempestuoso: o Fim.

Embora ninguém pense ainda no Fim, o sentimento do Fim já se infiltrou no sangue de todos como o lento veneno dum contágio. E, se o Evangelho é o livro do Fim — “Eu sou o primeiro e o último, o começo e o fim” — então, nós também, homens do Fim, para nosso espanto ou nossa alegria, estamos talvez mais perto do Evangelho do que pensamos. Não o leremos nunca, seja; porém, se o tivéssemos lido, poderíamos contar a “Vida de Jesus” como jamais alguém a contou.

XXXIII

— E, entretanto, o mundo não vai aonde o chamava o Cristo e quem sabe se Ele não ficará numa terrível solidão? dizia-me o outro dia um homem inteligente e fino, empeçonhado até a medula pelo sentimento do Fim, mas que parece ignorar ainda, embora não cesse de pensar no Cristo ou de somente girar em torno dele, queimando-se como uma borboleta noturna na chama duma vela, um pouco envergonhado de falar assim, talvez com o sentimento confuso de sua vulgaridade.

Aliás, não se poderia julgá-lo severamente: agora, muita gente no mundo, senão todos, têm o mesmo pensamento, o que, evidentemente, não a torna mais sábia nem mais nobre; é possível que certos cristãos o tenham também e, se o calam, não é, provavelmente, por excesso de sabedoria ou de nobreza.

É muito difícil discutir sobre este assunto, porque seria preciso, para isso, colocar-se no terreno do adversário, o que não é possível sem se imbecilizar a si próprio.

Aceitar o julgamento da maioria sobre a Verdade, sobretudo na religião, o derradeiro e único domínio que ainda parece lhe escapar, reconhecer que a sentença da maioria pode transformar a verdade em mentira e a mentira em verdade, não é, com efeito, algo de imbecil?

XXXIV

Quanta gente, na hora atual, é pelo Cristo e não sabemos quantos são contra ele, porque não existe estatística em matéria de fé; aqui é a qualidade e não a quantidade que de tudo decide: para Heráclito e Jesus “um único homem vale dez mil, se for o melhor” (59). Mas, se soubéssemos mesmo que, atualmente, quase toda a gente é contra o Cristo e quase ninguém por Ele, estaria resolvido, porventura, o problema de saber se devemos ser pró ou contra o Cristo?

Quando fiz notar isso ao meu interlocutor, ele me pareceu ainda um pouco mais envergonhado. Infelizmente, porém, não é pela vergonha que se atua sobre os homens, sobretudo numa época como a nossa.

“Quando o Filho do Homem vier, encontrará a fé sobre a terra? (Lc., 18, 8.)”.

Se ele próprio perguntava, certamente era porque sabia que o mundo podia ir para onde não o chamava, deixando-o em “terrível solidão”. Todavia:

“Eu venci o mundo (Jo, 16, 33.)”.

Precisamente sua força é não ter vencido o mundo uma só vez, sobre a cruz, porém tê-lo vencido, seguidamente, muitas vezes, continuando a vencê-lo na “terrível solidão”, um contra todos. E, se o cristianismo tem qualquer semelhança com o Cristo, é justamente essa: não se pode dizer que ele não tenha vencido e não continue a vencer um contra todos. Eis onde se não deve ter medo de dizer: quanto pior melhor. Somente o vento das perseguições é capaz de atiçar a chama do fogo cristão, e isto a ponto tal que, às vezes, se crê que, para o cristianismo, não ser perseguido é não existir.

A prosperidade aparente, a indiferente benevolência são o que há de mais terrível para ele. A “prosperidade” durou séculos, porém, graças a Deus! está se acabando e o cristianismo vai tornar ao seu estado natural: a guerra de “um contra todos”.

XXXV

O diabo serve a Deus contra sua vontade, como uma vez confessa a Fausto Mefistófeles, um dos demônios mais inteligentes:

”… Eu sou uma parte dessa Força Que faz eternamente o bem, querendo o mal”.

Ein Teil von jener Kraft Die stets des Böse will und stets das Gute schafft.

Mas não confessa o principal: é para ele um inferno ser obrigado a servir a Deus.

Os comunistas russos, esses diabos medíocres, esses mesquinhos “anti-cristos servem agora o Cristo como nunca, desde muito tempo, ele foi servido. Varrer do Evangelho a poeira dos séculos, o hábito, torná-lo novo, escrito como se fosse de ontem, “apavorante”, “espantoso”, como nunca foi desde os primeiros dias do cristianismo, os comunistas estão realizando essa obra, hoje mais necessária do que nunca, além do que era de esperar, fazendo os homens desaprenderem o Evangelho, escondendo-o, proibindo-o, destruindo-o.

Se, ao menos, eles soubessem o que fazem! Mas o ignorarão até o fim. Só uns diabos tão mesquinhos e tolos como esses (são inteligentes e espertos em tudo, menos nisso) poderiam esperar destruir o Evangelho tão completamente que desapareça para sempre da memória dos homens. O outro, o verdadeiro, o Grande Diabo, o Anticristo, esse será muito mais inteligente: “Será em tudo parecido com o Cristo”.

Não, os homens não esquecerão o Evangelho; lembrar-se-ão dele, lê-lo-ão, não podemos mesmo imaginar com que olhos, com que espanto, com que pavor, e que explosão de amor pelo Cristo brotará dessa leitura.

Teria havido semelhante explosão desde o tempo em que viveu na terra?

Talvez da Rússia venha a explosão e o mundo a terminará.

XXXVI

Mas, mesmo que tudo não se passe assim, ou não venha tão depressa como acreditamos, poderá o cristianismo ser mais maltratado do que o é presentemente, não a seus olhos, bem entendido (a seus olhos “quanto pior melhor”), porém aos olhos de seus inimigos?

Ah! meu pobre amigo, borboleta noturna que se queima na chama da vela, pensai nisto unicamente: se devemos ver a tolice e vilania dos homens triunfarem mais uma vez do cristianismo, se o próprio Cristo deve cair numa solidão mais “terrível” ainda, quanto é preciso ser imbecil e celerado para abandoná-lo em tal momento e não compreender o que uma criança compreenderia: que é no instante em que todo o mundo o abandona, o trai e em que está sozinho que justamente é necessário ficar com ele, que é necessário amá-lo e acreditar nele, avançar ao encontro do suave Rei de Sião, para semear de ramos o seu caminho e estender alfombras sob seus passos, gritando com as pedras, se os homens se calarem:

Hosannah! Bem-aventurado aquele que vem Em nome do Senhor!“