AGOSTINHO DE HIPONA — SEXTA-FEIRA DE PÁSCOA
Tradução do Padre António Fazenda
3. Ponhamos agora a atenção na última pesca, e nela nos animemos e nos consolemos. Esta pesca fez-se depois da ressurreição do Senhor, porque significava qual havia de ser a Igreja depois da ressurreição. Fala-se aos discípulos quando estão pescando, fala-lhes o Senhor, fala-lhes da segunda vez como lhes falou da primeira; mas da primeira disse-lhes que lançassem a rede, agora diz-lhes para onde devem lançá-la, isto é, para a parte direita da barca. São, pois, tomados agora os que hão-de estar à direita, são tomados aqueles a quem se disse Vinde benditos de meu Pai, recebei o reino (Mt 25, 34). Lançam e tomam.
Lá na primeira pesca não se disse o número, só se disse a multidão; o número não foi determinado. Realmente há agora muitos acima do número, isto é, vêm, entram, enchem as igrejas; os que enchem os teatros enchem também as igrejas; enchem-nas a mais do número; não pertencem ao número que há de ficar para a vida eterna, se não se mudarem durante a vida. Porventura todos se mudam? Como? Nem mesmo os bons perseveram todos. Por isso lhes foi dito: Quem perseverar até ao fim é que será salvo (Mt 24, 13). E aos que ainda são maus se diz: Não quero a morte do pecador, mas que se converta e viva (Ez 33, 11).
Lá o número não foi dito porque há muitos acima do número, em tanta quantidade que diz o salmo: Abri a boca para falar, multiplicaram-se acima do número (Sl 39, 6). Agora «para a direita», não acima do número 153, mas grandes. Pois se acrescentou isto: E sendo tão grandes, não se rompeu a rede (Jo 21, 11). Então será a reunião dos santos, não haverá divisões nem separações de hereges, haverá paz e perfeita unidade, não haverá ninguém a mais, ninguém a menos, o número exato. Mas serão muito poucos, se forem só 153. Longe de nós que, mesmo só nessa nossa reunião, houvesse tão poucos, e menos ainda em toda a universal Igreja de Deus!
O Apocalipse do mesmo S. João Evangelista mostra que se viu tão grande multidão de santos e de bem-aventurados na eternidade que ninguém a podia contar. É o que lá está escrito. E contudo todos pertencem a este número 153 e fazem parte dele. Quero reduzir este número a um número ainda menor. São 153? Reduzamo-los a poucos: digamos que são 17.
Estes 153 são 17. 10 porquê? 7 porquê? 10 por causa da lei, 7 por causa do Espírito. A forma septenária é por causa da perfeição que se celebra nos dons do Espírito Santo1)). Descansará, diz o santo profeta Isaías, descansará, diz, sobre ele, o Espírito Santo (Is 11, 23). E, depois de dizer Espírito Santo, enumerou as sete virtudes: espírito de sabedoria e de entendimento, espírito de conselho e de fortaleza, aí tens quatro. Espírito de ciência e de piedade, espírito de temor de Deus. Começou pela sapiência e terminou no temor, falando como quem descesse de cima para baixo, da sapiência para o temor. De baixo para cima sobe-se do temor à sapiência, porque o princípio da sapiência é o temor de Deus.
É este o dom da graça. Por esta séptula virtude opera nos seus diletos o Espírito Santo, para que a lei tenha neles alguma força. Pois, se tirares o Espírito, que pode a lei? Pode fazer prevaricadores. Por isso foi dito: A letra mata (2 Cor 3, 6). Manda e não ajuda. Não te matava antes de te ser imposta; e se a providência tinha em ti um pecador, não tinha em ti um prevaricador. Manda-te e não fazes, proíbe-te e fazes; eis aí como a letra mata.
Ora a lei tem dez mandamentos. O primeiro mandamento da lei é adorar um só Deus, mais nenhum, não fazer nenhum ídolo. O segundo mandamento é: Não tomarás em vão o nome do Senhor teu Deus. Terceiro mandamento: Guarda o dia do sábado, mas espiritualmente, não carnalmente como os Judeus2). Estes três mandamentos pertencem ao amor de Deus. Mas como nestes dois mandamentos, diz, se encerra toda a lei e os profetas (Mt 22, 37), isto é, no mandamento do amor de Deus e no do amor do próximo, depois de teres ouvido o que pertence ao amor de Deus — unidade, verdade, repouso —, ouve o que pertence ao amor do próximo: Honra teu pai e tua mãe, aí tens o quarto mandamento. Não cometerás adultério, é o quinto. Não cometerás homicídio, é o sexto. Não furtarás, esse é o sétimo. Não levantarás falso testemunho, aí fica o oitavo. Não cobiçarás os bens do teu próximo, ouviste o nono. Não desejarás a mulher do teu próximo, chegamos ao décimo.
Quem diz: não desejarás, bate ao coração, sacode o íntimo dele, que é onde a concupiscência faz as suas. Eis, aí tens a lei em dez mandamentos. Mas que te aproveita a ti sabê-la, se não a cumprires? Serás prevaricador. Mas para a cumprires precisas de auxílio. Donde é que te há de vir o auxílio? Do Espírito. A letra mata, o Espírito é que vivifica.
Se aos 10 ajuntarmos 7 temos 17. Este é número em que está toda a multidão dos bem-aventurados. Como se chega, porém, aos 153? Como já vos expliquei outras vezes, já muitos me tomam a dianteira. Mas não posso deixar de vos expor cada ano este ponto. Muitos já o esqueceram, alguns nunca o ouviram. Os que já o ouviram e não o esqueceram tenham paciência para que os outros ou reavivem a memória ou recebam o ensino. Quando dois são companheiros no mesmo caminho, e um anda mais lesto e o outro mais lento, um mais de pressa e outro mais de vagar, está no poder do mais rápido não deixar o companheiro para trás. Quem ouve o que já sabia não perde nada, e, sobre não perder nada, deve ainda alegrar-se da instrução que recebe o que não sabia. Conta 17, começando por 1 até 17, de modo que faças a soma de todos os números, e chegarás aos 153. Porque estais à espera que o faça eu? Fazei vós a conta3).