Guyon (HVM) – De três vias imperceptíveis

Extratos selecionados de Mariette Bruno da obra Les Torrents de Madame Guyon (HVM)

É dito na Escritura (Prov. 30, v. 19) três coisas que são excelentes a respeito do Interior. Não pode ser melhor comparado do que à via da serpente na pedra; à de uma embarcação sobre o mar, mas como diz Jó (Jó 9., v. 26), uma embarcação carregada de maçãs; e à via da águia no ar. Não resta nenhum vestígio dessas três espécies de vias.

A primeira é de pessoas já avançadas, mas que ainda estão longe da perfeição. Embora a serpente deixe poucos vestígios do lugar onde esteve sob a pedra, não se deixa de perceber uma trilha lamacenta e brilhante. São as primeiras almas, em quem restam alguns traços de certas luzes, gostos, sentimentos: esses traços são mesmo quase imperceptíveis. O que se discerne melhor é a pele velha da serpente que resta sob a pedra. Esta pele marca que esta pessoa trabalhou para mortificar seus sentidos e suas paixões de tal maneira que está despojada delas, e revestida de novos sentimentos e das virtudes opostas às suas paixões dominantes.

A embarcação deixa muito menos vestígios sobre as ondas do que a serpente sob a pedra; no entanto, vê-se por algum tempo como um sulco sobre as ondas, que é o vestígio que mal dura. Se, contudo, esta embarcação estivesse carregada de mercadorias de valor, estas mercadorias seriam uma marca e uma garantia dos lugares por onde viajou; mas não estando carregada senão de maçãs, que a água do mar corrompe, é-se obrigado, à medida que apodrecem, a jogá-las no mar, de sorte que a embarcação, chegando vazia, não resta nem vestígio da sua passagem, nem rastro das suas mercadorias. É a figura do perfeito despojamento da alma; não resta vestígio de seu caminhar que possa servir de apoio e garantia de que tenha seguido a rota desses vastos mares e que tenha passado por este caminho: nada aparece de sua carga, que se corrompeu pouco a pouco, e é esta corrupção que obrigou o divino piloto a jogar a mercadoria no mar; enfim esta corrupção torna-se tão grande, que se é obrigado a descarregar a embarcação de tudo o que transportava. É verdade que a miséria que a alma experimenta é algo de triste para ela, mas ela experimenta ao mesmo tempo algo a que não prestava atenção no início, é que quanto mais miserável se torna, mais leve se torna; encontra-se pouco a pouco livre do peso de si mesma; enfim, quanto mais a sua miséria aumenta, mais vazia se torna. A alma já não se encontra carregada nem embaraçada; pelo contrário, experimenta um certo vazio que lhe deu extensão e largura. A embarcação vazia encontra-se em estado de ser cheia das mais requintadas mercadorias. Nossa alma vazia é própria para tudo o que Deus quer fazer dela. Feliz embarcação! Acreditavas-te desprezível e todo envergonhado da tua carga, ruborizavas no segredo: é no entanto esta carga cheia de podridão que te esvaziou de tudo o que te pertencia, e do que havia de mais forte e de mais íntimo no amor de ti mesmo. O porão foi esvaziado, ou seja, estás livre da propriedade que te corrompia profundamente; assim estás inteiramente vazio, limpo e varrido da tua podridão. Procurou-se nos lugares mais recônditos, se não restava alguma podridão, para a jogar no mar. Eis-te chegado a uma nudez inteira!

A terceira é o rastro da águia no ar. Qual é o olho suficientemente perspicaz para descobrir seus vestígios? Quem pode discernir as vias de uma alma que se perde nos ares da divindade? Nenhum olho, a não ser o da própria águia. Mas o que vê esta águia? O que está diante dela, e de modo algum o que ela deixou. Não há trilha, nem rastro em seu caminho; no entanto, ela nunca se desvia. Onde mora, esta águia afortunada? Onde repousa depois de seu voo? Sobre os rochedos: faz seu ninho sobre as rochas fendidas (Jó 39, v. 28), como diz outra passagem da Escritura, nos buracos da pedra. Qual é esta pedra viva e vivente, senão Jesus Cristo? Ela repousa nele. Aqueles que consideram esta águia maravilhosa e que veem apenas rochas fendidas, uma espécie de escombros desta pedra viva, creem que não há nada de bom na águia, que ela não habita a pedra viva, já que faz seu ninho nas rochas fendidas. No entanto, é em Jesus Cristo que ela está a salvo, é em seu coração, é em suas chagas, que são como os buracos da pedra, é ele mesmo que a carrega e a esconde consigo no seio de seu Pai ].