Ruysbroeck (JRO) – A alma é...

Excertos traduzidos de Ruysbroeck, JRO O ESPELHO DA SALVAÇÃO ETERNA Toda a substância que Cristo recebera da Virgem Maria, sua mãe, isto é, sua natureza humana, foi por Ele dada. E assim entregou-se todo inteiro e indiviso de duas maneiras: seu corpo sob a espécie do pão e seu sangue sob a espécie do vinho, permanecendo, no entanto, todo inteiro e sem divisão sob cada uma das duas espécies. Pois seu corpo é o suporte de seu sangue, e seu sangue é o suporte vital de seu corpo; a alma é a vida de ambos, e esses três elementos reunidos formam uma única vida indivisa, que é Cristo, vida que Ele deu a seus discípulos e que nos deixou no Sacramento. Assim como, na consagração, todas as hóstias, nas mãos de todos os sacerdotes, são todas, sem divisão, uma única substância e a mesma natureza do pão, da mesma forma, após a consagração, elas são a única substância do corpo de Nosso Senhor, que não pode ser dividido. O mesmo se deve dizer do vinho que se consagra em seu sangue. CAPÍTULO VII A essa claridade não servem nem a razão nem os sentidos, nem a consideração nem a distinção: tudo isso deve ficar abaixo; pois a claridade sem medida cega os olhos da razão e os obriga a ceder à luz incompreensível. Mas acima da razão, no mais profundo do entendimento, o olho simples está sempre aberto, contempla e fixa a luz com um olhar puro, iluminado pela própria luz, olho contra olho, espelho contra espelho, imagem contra imagem. Esse triplo processo nos torna semelhantes a Deus e nos une a Ele; pois a visão, para nosso olho simples, é um espelho vivo que Deus fez para sua imagem e onde a imprimiu. Sua imagem é sua claridade divina, com a qual encheu todo o espelho de nossa alma, para que nenhuma outra claridade ou imagem pudesse entrar. Mas a claridade não é intermediária entre nós e Deus; ela é aquilo mesmo que vemos e a luz que nos faz vê-lo, mas não nosso olho que vê. Pois, embora a imagem de Deus esteja sem intermediário no espelho de nossa alma e lhe seja unida, no entanto, a imagem não é o espelho, e Deus não se torna criatura. Mas a união da imagem ao espelho é tão grande e tão nobre que a alma é chamada a imagem de Deus. CAPÍTULO XVII O LIVRO DO TABERNÁCULO ESPIRITUAL Além disso, cada tábua tem uma medida e meia de largura. Com isso aprendemos que cada determinação livre se assemelha a isso, no sentido de que o livre arbítrio abraça a alma e o corpo como uma medida inteira e meia medida, para servir a Deus por seu intermédio. A alma é a medida inteira, pois possui uma atividade perfeita em si mesma, que consiste no amor e no conhecimento. No entanto, ela precisa da meia medida, pois, se não estivesse unida ao corpo, não poderia merecer. Todavia, o corpo é apenas meia medida, pois nenhuma atividade corporal, sem a operação do espírito, pode alcançar Deus nem merecer a bem-aventurança, e é por isso que a alma e o corpo constituem um só homem, para que a natureza corpórea do homem, com todas as suas atividades, possa receber nobreza, liberdade e imortalidade, pela nobreza, liberdade e imortalidade da natureza espiritual, com a qual é uma só pessoa e um só homem. Eis como cada tábua, que representa a determinação livre, deve ter uma medida e meia de largura, sem o que não se adaptaria ao tabernáculo. CAPÍTULO XV O LIVRO DAS DOZE BEGUINAS O olho simples da alma, transformado na unidade, que, acima da razão e fora dela, é elevado a uma visão simples e pura, contempla sempre a face do Pai, como fazem os Anjos que nos servem; pois o olho simples da alma não tem diante de si outra coisa senão essa imagem, que é o próprio Deus. Ali ele vê Deus e todas as coisas, na medida em que são uma só com Deus, em uma visão simples; e isso lhe basta, e é o que se chama contemplatio, isto é, contemplar Deus de maneira simples. É dessa forma que a potência intelectual da alma é como um espelho vivo, onde Deus habita com sua graça; e ela recebeu dele seu Espírito de verdade e, sob a influência de sua luz, o olho da razão é iluminado, de modo a poder conhecer em formas, imagens e semelhanças Deus e todas as criaturas, na medida em que Deus quer revelar. Esse mesmo Espírito ordena à razão assim iluminada que governe e ordene a vida dos sentidos, segundo a lei de Deus e os preceitos da santa Igreja, na caridade e na verdadeira discrição. CAPÍTULO XII No entanto, é preciso notar que o nada em si mesmo não é nem bom nem mau, nem feliz nem infeliz, nem pobre nem rico, nem Deus nem criatura. No entanto, essas pessoas, em sua loucura, dizem que a essência da alma é o nada, e que a essência de Deus é esse mesmo nada das almas que chegaram ao repouso: isso é falso e contra a fé. Pois Deus é tudo em tudo, o ser eterno, todo-poderoso, infinito e incriado, autor de todas as criaturas: é o que testemunha aos olhos da inteligência e confessa de muitas maneiras tudo o que criou. Ele vive por sua graça nas potências de nossa alma e nos ordena realizar obras de salvação eterna, pois Ele mesmo é uma operação eterna. É por essas boas obras da eternidade que Lhe somos semelhantes e permanecemos sempre com Ele, crescendo e progredindo em graças cada vez mais abundantes. Acima da graça e das boas obras, Ele ainda vive por Si mesmo na própria essência da alma: é ali que Lhe somos unidos e somos elevados à vida santa e bem-aventurada. Mas entre essa união com Deus acima de nós e a semelhança com Ele dentro de nós mesmos, devemos colocar o intermédio das obras benditas que atraem Sua complacência, e que Ele nos ordenou e aconselhou: não podemos de outra forma alcançar a união com Deus, tornar-nos santos nem bem-aventurados. CAPÍTULO XXII Depois vem o terceiro modo, que flui do primeiro rio da graça, nos conduz a Deus e nos une a Ele. Esse modo pode melhor ser chamado sem modo do que modo. Ele começa quando a alma racional esgotou todas as suas forças e todo o seu poder no amor. Ali começa o amor sem modo; acima do amor ordenado, o entendimento puro e despojado; acima das virtudes, a virtude fundamental; acima das práticas da virtude, a inação; acima de todo modo, o ser sem modo; acima das práticas interiores racionais, a vida contemplativa. Pois, na revelação de Deus, onde Deus Se mostra a Si mesmo, a razão da alma é como o olho do morcego, que se torna cego à claridade do sol. Ali começa o espírito amoroso, verdadeira vida da alma, que sem cessar adere a Deus por amor. Ele se assemelha à águia cheia de nobreza, que, sem vacilar, contempla e fixa a claridade do sol; e é isso que faz o olho simples e claro do espírito amoroso, que recebe o brilho da claridade de Deus, acima da razão e sem intermediário. O Pai celeste diz então ao espírito amoroso: “Abre teu olho simples e contempla quem Eu sou: o ser, a vida, a sabedoria, a verdade, a bem-aventurança eterna, o amor sem fim. Eu te liberto, permanece comigo; perde-te em Mim, assim poderás encontrar-te em Mim, e Eu em ti, com todos os espíritos amorosos elevados como tu e unidos a Mim. Sê livre em ti mesmo e liberdade em Mim; sê bem-aventurado em ti e bem-aventurança em Mim. Eu te dou um conhecimento claro e simples de Mim mesmo em ti; e uma ignorância sem fundo e impenetrável de Mim mesmo, é isso que Eu te dou. Perde-te e morre de ti mesmo em ti; sê sem distinção uma simples bem-aventurança comigo.” CAPÍTULO LIII O ORNAMENTO DAS BODAS ESPIRITUAIS Essa riqueza e altura incompreensíveis e a disposição de Deus para Se derramar universalmente enchem o homem de admiração; e o que ele admira particularmente é o fato desse derramamento universal sobre todas as coisas. Ele vê, de fato, como a essência divina incompreensível é o gozo comum de Deus e de todos os santos. Ele contempla as Pessoas divinas dando-Se generosamente a todos, derramando as graças ou os bens da glória, de maneira natural e sobrenatural, em todas as condições e em todos os tempos, entre os santos e entre todos os homens, no céu e na terra, em todas as criaturas racionais ou não, dotadas de razão ou materiais, segundo a dignidade, a utilidade e a capacidade de cada um. Ele vê ainda como o céu e a terra, o sol e a lua, os quatro elementos, com todas as criaturas e o curso dos astros, foram criados comuns a todos. Deus é para todos com todos os Seus dons; os Anjos se dão a todos; a alma é comum a todas as suas potências, ao corpo inteiro, a todos os membros, e toda inteira a cada um deles; pois ela não pode ser dividida, exceto pelo pensamento. As potências, tanto superiores quanto inferiores, o espírito e a alma podem ser distinguidos em razão; no entanto, são um todo na natureza. Assim, Deus é todo inteiro e em particular para cada um, e no entanto é comum a todas as criaturas; pois todas as coisas são por Ele, e é nEle e a Ele que estão ligados o céu e a terra e toda a natureza. LIVRO II - A VIDA INTERIOR CAPÍTULO XXXVIII É preciso saber, portanto, que a essência da alma é, para Deus, de maneira semelhante, um reino espiritual, cheio de uma claridade divina que ultrapassa todas as nossas potências, exceto no modo em que elas se tornam simples, do qual quero me calar por agora. Vede, abaixo da essência da alma, onde Deus reina, está a unidade de nosso espírito, semelhante ao primeiro móvel, pois é nessa unidade que o espírito é movido de cima pelo poder divino, natural e sobrenaturalmente; pois nada temos de nós mesmos, nem na natureza, nem acima da natureza. Ora, esse movimento de Deus, enquanto sobrenatural, é a causa primeira e principal de todas as virtudes; e em certos homens iluminados esse mesmo movimento faz brilhar os sete dons do Espírito Santo, como sete planetas que iluminam e fecundam toda a sua vida. LIVRO II - A VIDA INTERIOR CAPÍTULO L